Roberto Romano Moral e Ciência. A monstruosidade no sec. XVIII
Silence et Bruit. Roberto Romano
domingo, abril 01, 2007
Um triste aniversario, uma lembrança, um temor.
João Goulart e a indisciplina dos sargentos (Manchete)
João Goulart e os sargentos no Clube Militar (Manchete)
Hoje o Golpe de Estado militar atinge a idade de 43 anos. Recordo-me bem: na Semana Santa, os sargentos amotinados foram exibidos na TV e em todos os jornais impressos. Eles forneciam a desculpa derradeira para a intervenção militar. O princípio da disciplina é essencial às Forças Armadas e à Igreja Católica. Dissolvida a hierarquia, um abismo abre-se sob os pés dos bispos e dos generais. a menira de recuperar a hierarquia e a disciplina foi o golpe. No trecho abaixo do meu livro Ponta de Lança, analiso o fenômeno do golpe e de alguns motivos relevantes do mesmo, como é o caso da desobiência às ordens superiores, tanto na Igreja quanto nas Forças Armadas.
As fotos saidas ainda ontem em todas as televisões e jornais, de soldados que se deitam no chão, em atitude de rebeldia contra a disciplina, o fato do comandante Saito ter sido desautorizado pelo presidente da República, desmoralizando o princípio da hierarquia, trazem recordações e apreensões. Pense quem puder. Mas a situação é mais grave do que se imagina. Como diria Spinoza : CAUTE !
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Discutamos a outra instituição que, desde a Colônia, assegurou o território nacional e o Estado: as Forças Armadas. Para elas, como para a Igreja, a ordem hierárquica é essencial. Após a ditadura getulista, quando houve certa unidade de comando e obediência nas casernas, os soldados se preocuparam com a pequena democratização do governo Dutra, as crises do governo democrático de Vargas, as sucessivas formas de golpes e contragolpes de setores parlamentares que buscavam apoio nos quartéis (as famosas “vivandeiras”) antes do governo Juscelino. Após todos esses eventos, quando foram duramente questionadas a unidade de comando e a hierarquia, ocorreu a renúncia de Jânio Quadros, acuado por um parlamento hostil, sem maioria sólida possível. Na ocasião, com o veto do Alto Comando à posse de Goulart e com o parlamentarismo instalado pelo Congresso, ocorreu uma fratura perigosa aos olhos dos militares. Essa fenda ameaçaria a Federação, de um lado, e a unidade das Forças Armadas. Refiro-me ao apoio do III Exército e demais setores leais ao vice-presidente da República, sob liderança de Leonel Brizola. Dada a cura provisória da crise institucional e federativa, com o parlamentarismo, os militares aparentemente aceitaram o status quo obtido pelos que dirigiam o Congresso. Mas a fratura ocorrida no interior dos quartéis, de modo público e notório, permaneceu na consciência militar à espera do que poderia ocorrer. As sucessivas manifestações de insubordinação dos soldados e patentes menores evidenciaram um processo geral de perda da autoridade do Executivo. As manobras políticas a diminuíram ainda mais. Seria preciso dar um basta aos que assim quebravam a hierarquia. A Igreja colocou massas nas ruas. As Forças Armadas prepararam a tomada das mesmas ruas pelos canhões. Quando as duas maiores forças de imposição do mando, uma espiritual e outra física sentem que estão à beira da ruptura interna, e se quebra a linha de comando, elas reagem para sobreviver e tentam cortar a fonte de seus males, pelo menos a mais aparente. Se o governo não conseguia impor sua autoridade, mas até incentivava gestos de rebelião, era urgente substituir o governo, com a conivência do Congresso, manifestada sempre que golpes civis ou militares anteriores foram perpetrados.
É preciso ter uma idéia muito realista do soldado profissional no mundo político. Um soldado é feito para executar o monopólio da força física estatal na guerra. Seu alvo é garantir a integridade do Estado com armas letíferas contra inimigos exteriores. Em caso de conflito civil, sua função continua tendo como essência a morte dos adversários. Para que este fim seja alcançado plenamente, o militar deve obedecer às ordens de modo perfeito. Um movimento muito importante na propaganda golpista, em 1964, foi a Sociedade Brasileira Tradição, Família e Propriedade (TFP). Aquele setor foi inspirado pelos teóricos da contra-revolução romântica do século XIX, incluindo o pensador espanhol Donoso Cortés. “Um soldado”, enuncia Cortés, “é um escravo em uniforme”. A frase encontra-se no famoso Discurso sobre a Ditadura (1849). Ali, o teórico ataca a democracia representativa e ironiza todos os que confiam numa Constituição estável e permanente. Segundo Cortés, nada no mundo pode garantir estabilidade porque o próprio Deus age por meio de golpes – os milagres – e age ditatorialmente. Cito o espanhol cuja presença fez-se notar nos piores golpes de Estado, na Espanha e na América do Sul, de Franco aos que derrubaram Salvador Allende:
“Gobierna Dios siempre con esas mismas leyes que el mismo se impuso en su eterna sabiduría y a las que nos sujetó a todos. No señores; pues algunas veces, directa, clara e explicitamente manifiesta su voluntad soberana quebrantando esas leyes que El mismo se impuso e torciendo el curso natural de las cosas. Y bien, señores: cuando obra asi, no podria decirse, si el lengaje humano pudiera aplicar-se a las cosas divinas, que obra dictatorialmente?”
Esse discurso inspirou o já mencionado Carl Schmitt, jurista que muito colaborou com Adolf Hitler, bastante lido por pessoas como Francisco Campos e outros personagens de nossa República. Quando Cortés diz que o soldado é escravo em uniforme, ele afirma um traço vital que esteve presente no golpe de 1964. Ainda Elias Canetti fornece uma chave antropológica para a compreensão das Forças Armadas em 1964. A sentinela que permanece imóvel é o melhor exemplo da constituição psíquica do soldado. Os motivos habituais de ação, como os desejos, o temor, a inquietude que constituem a vida humana, são reprimidos dentro dele. Todo ato seu deve estar sancionado por uma ordem. O momento vital na existência de um militar é o da posição atenta diante do superior. A educação do soldado começa no instante em que lhe são proibidas muito mais coisas do que aos demais homens. O aspecto anguloso do soldado mostra que ele se adaptou aos murossendo um prisioneiro satisfeito. Para ele, a ordem tem valor supremo. Integra a sua formação que ele aprenda a obedecer, sozinho ou na companhia de outros, às ordens. Os exercícios o habituam a movimentos executados com os demais. Todos devem realizá-los de modo absolutamente idêntico. O indivíduo torna-se igual aos outros. É a mesma ordem, pouco importando que seja apenas um que a recebe, ou todos. O uniforme, além das outras funções bélicas, evidencia a perfeita igualdade de todos na obediência às ordens.
A disciplina define o exército. Trata-se de uma dupla disciplina. A declarada é a ordem, tal como descrita acima. A outra é a promoção. Esta última corresponde à capacidade de um militar para ser aguilhoado internamente pela ordem. Para cada ordem atualizada, fica um espinho dentro dele. Se é soldado raso, ele não pode desfazer- se desses espinhos, aninhados em seu corpo e alma. Ele obedece e se torna cada vez mais rígido em sua obediência maquinal. Para sair desse estado, só com a promoção. Quando promovido, ele se desfaz – nos outros – dos seus aguilhões/ordens. A disciplina secreta consiste no uso dos aguilhões/ordens armazenados. Essa disciplina responde pelo fato de os exércitos mais poderosos do mundo terem seguido ordens de partidos totalitários, pelo menos até que vislumbrassem a derrota, sem pestanejar. “Estou cumprindo ordens”. Sem tal frase, inexistiriam o fascismo, o nazismo e o stalinismo. O Alto Comando é o que menos ordens recebe, mas mesmo assim ele as recebe de quem possui autoridade para tal. Essa cadeia verticalizada de obediência, no caso dos soldados rasos, só explode nas situações de guerra onde o inimigo é disseminado, como nas guerras de guerrilha. Nessas horas a solidariedade horizontal conta mais do que as ordens vindas de cima. Há um bom livro de David Hansen, The Western Way of War: Infantry Battle in Classical Greece,16 que evidencia esse traço. Na vida comum, quando não há guerrilha do inimigo externo ou interno, o exército segue a disciplina e a ordem das promoções. Para que ambas existam é preciso que a hierarquia e o próprio instituto militar sobrevivam. É absurdo para um soldado que cumpriu ordens a vida toda e subiu até o posto de coronel ou general de brigada, imaginar que suas próprias ordens não serão obedecidas. Nesse caso, mesmo que o Alto Comando permita a “insubordinação” e mesmo que o comandante supremo – o Chefe de Estado – assuma uma suposta “abertura democrática” face aos exército, quebrando a ordem rígida e a disciplina, eles serão desobedecidos, numa suprema tentativa de restaurar a ordem comum, com o golpe de Estado.
No Brasil, em 1964, unidos à inquietude das altas hierarquias religiosas e à insubordinação ao governo civil e às angústias diante das movimentações de massas na sociedade e nos quartéis, os militares seguiram quem lhes prometia restaurar a ordem e manter a carreira, a promoção. Quando a sociedade no seu todo – por suas lideranças – não sente-se ameaçada, o ato dos militares não encontra terreno fértil, mesmo dentro do exército. Lembremos, no início da redemocratização espanhola após a ditadura franquista, a tentativa de golpe em que os protagonistas ficaram sozinhos com seus revólveres no Parlamento ameaçado. Recordamos aquela situação tragicômica, com os políticos agachados e os golpistas a gritar frases desconexas.
Um golpe militar ocorre quando, às tensões externas, somam- se a angústia e as incertezas internas de manter toda uma existência baseada na disciplina, na hierarquia das ordens, na carreira e na promoção. Foram decisivos o pânico e a insegurança sentidos nas duas maiores instituições da ordem no país, a espiritual, a Igreja Católica, e as Forças Armadas, com seu medo de se fragmentarem, perdendo-se irremediavelmente. Assim, tivemos pelo menos três elementos importantes na geração do golpe de 1964 (muitos outros existem e eles serão tratados pelos demais participantes do simpósio): em primeiro lugar, a pregação jurídica contrária ao liberalismo, bem conhecida de autores como Francisco Campos e outros. Em segundo, a Igreja Católica, com a hierarquia. Em terceiro, as Forças Armadas com a disciplina. Da síntese desses três elementos, somados aos demais, surgiu a justificativa do golpe de Estado. Não é preciso ser adepto de Gabriel Naudé para constatar que os anos da ditadura, sem nenhuma exceção, exercitaram a diabólica missa negra que danou indivíduos e grupos de modo irremediável: torturas, assassinatos praticados nos estabelecimentos do Estado, censura, intolerância e violência anônima. Os perseguidos deveriam provar a sua inocência, sem que ao Estado se exigisse a prova de sua culpa. Vivemos muito tempo sem direitos e sem o Estado de Direito. A única comemoração que faz plena justiça ao golpe, será a feita no cotidiano de nossa vida cívica. Por pior que seja a democracia, ela garante pelo menos parte dos nossos direitos à vida e ao pensamento. Os donos do estado de exceção desconhecem direitos. Respeitemos o regime democrático. Este é o culto mais indicado, se os cidadãos quiserem fugir dos horrores vividos pela ditadura instituída em 1964.
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