Quebra de patente
Entrevista
JORGE ZAVERUCHA
Cientista político, diretor do Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas da Universidade Federal de Pernambuco
Presidente vacila diante dos militares e revela a fragilidade do governo civil, diz especialista
Aureliano Biancarelli
Na sexta da semana passada, sargentos controladores de vôo insatisfeitos com salários e horários se amotinaram. Paralisaram o sistema aéreo e provocaram caos nos aeroportos. Por telefone, dos EUA, o presidente autorizou negociações e prometeu atender aos pedidos. Ao negociar com amotinados, Lula cometeu um deslize grave no rígido conceito de hierarquia militar. Na segunda-feira, os comandantes das três armas peitaram o presidente e ele voltou atrás. Os amotinados foram chamados de “traidores” e ameaçados de prisão. Nessa quinta-feira, os sargentos divulgaram carta onde pediam “perdão” à sociedade, prometiam “paz nos céus” e desejavam “Feliz Páscoa”.
Mesmo que a paz volte aos céus, o episódio deixou em solo seqüelas perigosas. Ao ceder aos comandantes militares e descartar seu ministro da Defesa - a quem as Forças Armadas estão subordinadas -, o presidente revelou ao País que a democracia instalada ainda depende da doutrina militar.
“Lula teve medo de ser apeado do poder”, diz Jorge Zaverucha, doutor em ciência política pela Universidade de Chicago e especialista nas relações entre civis, militares e polícia. “Estamos num equilíbrio instável. Os militares estão quietos na caserna, desde que não mexam com os seus interesses.”
Diretor do Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas da Universidade Federal de Pernambuco, autor, entre outros, do livro FHC, Forças Armadas e Polícia: Entre o Autoritarismo e a Democracia, 1999-2002, pai de duas filhas, 51 anos, torcedor do Sport Clube do Recife e baterista aprendiz, Zaverucha é conhecido por suas polêmicas sobre a ameaça militar.
No seu entender, o episódio atual revela que os governos civis não conseguiram se fortalecer depois da transição. Na falta de diretrizes, os militares não encontram papel num País sem inimigos externos, “embora a fronteira amazônica esteja toda esburacada”. Diante do crescente descrédito do poder civil, especialmente na segurança pública, os militares estão se voltando para a segurança interna e aumentando seu prestígio junto à população. “Se a democracia é incapaz de garantir minha sobrevivência física, então eu apelo para a espada”, diz Zaverucha, citando o filósofo inglês Thomas Hobbes.
O motim dos controladores foi um fato isolado ou revelou insatisfações ainda não reveladas das Forças Armadas?
Insatisfação existe nas três Armas, mas nesse episódio as demandas eram corporativas, salário e questões operacionais. A situação foi empurrada com a barriga, ora o ministro da Defesa defendia os sargentos e o fim da militarização do controle aéreo comercial, ora o comandante da Aeronáutica manifestava sua posição contrária. O presidente Lula deveria demitir o ministro ou o comandante da Aeronáutica. Preferiu enfraquecer o ministro. A desordem começa aí, porque uma cadeia de comando foi quebrada.
A origem dessa desordem estaria na criação do Ministério da Defesa?
O ministério foi criado para ser um órgão frágil. Sem um ministro da Defesa, o Brasil não teria chance de ganhar uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, como vinha pleiteando. A falta desse ministério mostrava que o poder civil era fraco, que não conseguia enquadrar os militares, mas as Forças Armadas eram contrárias. Fernando Henrique então negociou com os militares um Ministério da Defesa para inglês ver. Ou seja, “eu vou criar um Ministério da Defesa, mas vou destituir o ministro de prerrogativas de mando”. O ministro virou um tigre sem dentes.
Há um pacto entre civis e militares?
Os militares se consideram fiadores da Nova República. Na cabeça deles, o pacto foi o seguinte: “Eu concordo com a restabelecimento da democracia eleitoral, desde que meus enclaves autoritários sejam mantidos”. São áreas em que os militares acham que o poder civil democrático não tem condições de penetrar. Um exemplo? A Polícia Militar. O Brasil é a única democracia do mundo em que o controle da sua principal polícia ainda é feito parcialmente pelo regime militar. A Justiça Militar funciona hoje de modo muito parecido ao do regime militar. O artigo 142 da Constituição diz que as Forças Armadas são responsáveis por garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem. Esse artigo não existe em nenhuma democracia do mundo. O papel das Forças Armadas é cuidar das fronteiras e da soberania do País, não da ordem interna. Mas, quando os constituintes ameaçaram tirar essa prerrogativa dos militares, o general Leônidas falou: “Se vocês não voltarem atrás, vou zerar a Constituinte”.
Algum governo bateu de frente com os militares?
Em todos os governos houve acerto com os militares, ninguém peitava as Forças Armadas, o poder civil sempre foi frágil diante delas. É como se você tivesse uma situação de equilíbrio, nem os militares têm força suficiente para dar um golpe de Estado, nem os civis tem força suficiente para impor um controle sobre os militares.
Até agora tinha-se a impressão de que as Forças Armadas estavam quietas na caserna. É isso?
Elas estão quietas se você não mexer com os interesses delas. Esse sentimento de que não há risco de um golpe de Estado é porque, toda vez que há um confronto entre civis e militares, os civis cedem. Foi o que aconteceu agora. Isso mostra que não estamos nem num autoritarismo, nem numa democracia. Estamos num equilíbrio instável.
O senhor acha que o Estado democrático correu risco no episódio dos controladores?
A maneira drástica com que Lula voltou atrás é sinal de que recebeu uma pressão muito forte dos militares. Chamou para o Palácio do Planalto quem não tinha nada a ver com a história, os comandantes da Marinha e do Exército, quando o problema era com a Aeronáutica. E o ministro da Defesa nem foi chamado. A desobediência dos sargentos foi seguida de uma reação dos comandantes dos Cindactas, que não consultaram seus superiores. Ninguém mandava mais em ninguém, havia o risco de se perder o controle. Se isso chegasse ao Exército e à Marinha, seria ao casos. Aí eu não descarto um golpe, de jeito nenhum. Acho que Lula, ao retroceder, evitou um golpe de Estado. Não é que os comandantes tivessem essa intenção, é que a situação poderia evoluir para um ponto sem retorno.
O ministro Viegas, o primeiro nomeado no governo Lula para o Ministério da Defesa, não seguiu a cartilha dos militares.
Ele tentou se rebelar, mas foi rechaçado. Na visão dos militares, o pacto para a criação do Ministério da Defesa previa que o ministro devia ser um despachante dos interesses das Forças Armadas, e Viegas quis ter autonomia. Quis fazer mudanças na ESG, a Escola Superior de Guerra, os militares não aceitaram. Quis que as investigações sobre a explosão de um foguete em Alcântara, em 2003, fosse um inquérito aberto. A Aeronáutica queria que fosse um inquérito policial-militar interno. Depois peitou o comandante do Exército ao defender a abertura dos arquivos militares. O comandante era o Francisco Albuquerque, que claramente se indispôs com o Viegas. O desgaste culminou quando da divulgação de fotos do jornalista Vladimir Herzog. Albuquerque não queria que o tema voltasse à tona e publicou uma nota elogiando o regime militar. Na crise, Lula optou por tirar Viegas do Ministério da Defesa, deixando claro que os militares tinham mais poderes que seu próprio ministro. Como Viegas, o ministro Valdir Pires também não está agindo como despachante, tomou posições que desagradam aos militares. Por isso já não tem mais força, já caiu.
O senhor acha que o governo está cedendo no caso dos arquivos da ditadura?
A questão dos arquivos vem desde que começa a transição. O próprio Fernando Henrique foi várias vezes pressionado para abrir esses arquivos, os militares simplesmente diziam que os documentos não existiam. Quatro dias antes de passar o poder a Lula, ele assina um decreto adiando a divulgação desses documentos. O governo Lula está mantendo o status quo. Mandou entregar alguns papéis para o Arquivo Nacional, mas os familiares dizem que parte deles foi retirada, fizeram uma limpeza. Diferentemente do que acontece no Chile e na Argentina, onde o governo criou comissões para ajudar as famílias na busca de informações, aqui o Estado exige provas para indenizar os familiares das vítimas, mas as provas estão trancadas pelo próprio Estado. No caso da guerrilha do Araguaia, a resistência é ainda maior, porque há uma suposição de que os documentos revelariam a existência de uma tortura institucionalizada, com o uso de aviões para jogar os corpos. Se isso é verdade, as Forças Armadas passariam para a história com essa pecha de que patrocinaram a tortura, e elas não querem isso. É muito fácil você vender que a tortura foi praticada por indivíduos isolados. Com esse episódios dos sargentos, a possibilidade de mexer nesses arquivos fica ainda mais remota. Porque saiu fragilizado, o presidente no momento só quer agradar aos militares, diz até que vai criar um PAC para as Forças Armadas. A última coisa que vai querer agora é patrocinar uma medida que possa irritar os militares.
Fala-se muito em reforma do Estado civil, mas não se fala em reforma nas Forças Armadas...
Um reforma administrativa, de gestão, poderia enxugar a tropa , priorizar ações, usar melhor o dinheiro. O Brasil, comparativamente a seu efetivo, tem mais generais do que os EUA e Israel. Mas na área militar a democracia não entra, seria mexer com vara curta e os civis não querem isso. As Forças Armadas reclamam dos salários e de investimentos, mas seu orçamento é o terceiro do país, só perde para o da Previdência e o da Saúde, e recebe mais que a Educação. Mas, se eu não tenho nenhum inimigo externo, por que investir nas Forças Armadas mais do em educação, em habitação? O país precisa decidir o que é mais importante.
Qual, enfim, a função das Forças Armadas num Estado democrático?
Defender as fronteiras do Estado, a soberania nacional. O Estado moderno faz uma separação entre Forças Armadas e forças policiais. As primeiras tomam conta da ameaça externa, as policiais cuidam da ordem interna. Mas, no Brasil, constitucionalmente, as Forças Armadas são responsáveis pela lei e pela ordem interna, e isso está levando a um processo de militarização da segurança pública. As polícias estão desacreditadas, tanto pelo governo como pela população, e quem está sendo chamado a exercer o papel de polícia em situação de conflagração urbana é o Exército. Agora foi criada a Doutrina da Garantia da Lei e da Ordem, GLO, que explica como o Exército deve agir em ações de polícia. Por exemplo, pegaram uma brigada de Campinas, que era mecanizada, e a transformaram em brigada de infantaria leve, para ser utilizada nessas operações. Como não tem um espaço de ação, não tem um inimigo externo, o Exército está se voltando cada vez para a área interna, sabe que tem um papel importante como polícia. Enquanto isso, a Amazônia continua com as fronteiras esburacadas como um queijo suíço. Em lugar de comprar um porta-aviões, caro e lento, poderíamos ter uma marinha fluvial. Mas para isso precisa ter uma discussão política.
Os militares carregam a herança de um regime militar do qual não participaram e que não é bem-visto pela população. Isso, aliado aos baixos salários, não cria um desânimo na corporação?
Não vejo dessa forma porque todas as pesquisas de opinião pública dão que a instituição de maior credibilidade no País são as Forças Armadas, só perde para a Igreja, que não é laica. O Congresso, os partidos, estão lá embaixo. A resistência pode estar numa classe média intelectualizada. Se as instituições civis estão perdendo credibilidade e as Forças Armadas ganhando confiança como aquela capaz de estabelecer a ordem, então não vou estranhar se amanhã tiver um retrocesso autoritário. Não é que a população queira uma ditadura, mas, se houver um quadro que leve ao caos, a um estado de anarquia, quem vai colocar ordem é a instituição que tem mais credibilidade na sociedade, que são as Forças Armadas. Nenhuma sociedade pode viver sem um mínimo de ordem, logo você vai para uma solução “hobbesiana”. Se a democracia é incapaz de garantir minha sobrevivência física, então eu apelo para a espada. Porque a minha necessidade de viver está acima de qualquer ideologia.
Como foram as relações com os militares nos governos anteriores?
Os militares estiveram e estão presentes em todos os governos. No caso do Sarney, quem deu a palavra final para que assumisse foi o Exército. Havia uma disputa jurídica para saber quem deveria assumir, se era o Ulisses Guimarães ou Sarney. Houve até reunião de ministros do STF para tentar definir essa disputa jurídica. Prevaleceu a espada do general Leônidas. Sarney só tomou posse depois que o general telefonou dizendo que o presidente seria ele. Já o Collor peitou os militares, acabando com o SNI, reduzindo o orçamento militar. Mas, com o processo de impeachment, enfraqueceu e passou a agradar aos militares. Era tarde demais. Itamar foi consultar os militares antes de assumir o poder para saber se eles o apoiavam. Recebeu carta verde e, como agradecimento, nomeou nove ministros militares.
Jornal O Estado de São Paulo.
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segunda-feira, abril 09, 2007
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