Palestra de Roberto Romano na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, 2006.
Conflito de Interesses
Do ponto de vista antropológico: o conflito é definido por uma situação na qual os sujeitos desejam um objeto ou valor e precisam decidir entre eles ou perdê-los. Conflito porque ao mesmo tempo precisam conseguir o objeto ou valor referidos, deixando os outros sem eles. A relação conflitiva exige pelo menos três sujeitos. Se apenas um deseja outro ser humano ou coisa, ela não se instala fortemente. Se dois desejam, o conflito aparece. Rene Girard A violência e o sagrado.
Não existe nenhum coletivo, em especial de pesquisadores e intelectuais, que não esteja sempre em conflito, seja ele potencial ou efetivo. Não por acaso Hegel, ainda no século 19, dizia que o mundo intelectual, sobretudo a universidade, é o “reino animal do espírito”, onde todas as feras lutam entre si tendo em vista recursos, apoio do Estado ou das corporações. Como todos desejam seu nome conhecido para conseguir aquelas vantagens, nenhum deixa de enxergar o colega como adversário potencial. Como todos querem ser reconhecidos universalmente, todos lutam contra todos, de modo velado ou explícito. O conflito é eminente e perene. Um comentador de Hegel, Alexandre Kojève, com ironia tremenda, diz que o mundo dos intelectuais é o reino dos ladrões roubados. Ali se finge que nada é devido aos outros indivíduos ou grupos, e se reivindica para os trabalhos a originalidade total, mas se olvida o acúmulo trazido pelos intelectos e mãos do passado, a base aprendida no ensino para a sua investigação. Naquele território violento, muitos não hesitam em colocar o seu próprio nome em produções alheias. O plágio não é um acidente infeliz que ocorre de século a outro. Ele possui uma frequência bem maior. Tudo isso torna o ambiente intelectual um seminário de conflitos éticos. O cientista e o acadêmico são seres humanos, não vestem roupas angélicas ou infernais quando entram no local de trabalho. Para ele, trazem desejos, paixões, sonhos e pesadelos.
Dos inúmeros documentos relevantes com propostas de saída para o cipoal jurídico, econômico, ideológico e religioso que envolvem o conflito de interesses, e devido à brevidade de meu tempo, tomo apenas um, o Relatório sobre uma Conferência sobre os Conflitos de Interesses, ocorrida em Washington (DC), nos EUA (2004). Tal colóquio teve o patrocínio da OMS. É do referido documento que retiro as noções de conflito de interesse que informam as recomendações finais do encontro, as quais comentarei.
Os congressistas que redigiram o Relatório mencionado citam Thomas Murray, em escrito de 2004: () “Um conflito de interesses é uma situação que engendra a tendência ou a tentação de chegar a um juízo tortuoso, tomar medidas tortuosas ou aconselhar tortuosamente”. (A situation that fosters a tendency or temptation to reach a biased judgment, take a biased action, or give biased advice). Logo a seguir vem a definição da Sociedade Canadense de Cardiologia, sobre o Conflito de Interesses: “Há conflito de interesses quando uma pessoa ou organismo examina escolhas que fazem intervir interesses ou vantagens concorrentes. Há então dualidade de empenhos. O conflito existe quando é escolhida a senda que proporciona vantagens pessoais, em vez da que se alinha segundo os princípios da ética e do interesse públicos. Pode se tratar de recompensas financeiras, de melhoria de seu posto, ou de outras vantagens….”.
A primeira definição indica os procedimentos intelectuais na justificação de práticas opostas à ética. A segunda, descreve o modus operandi e os desejos dos que assim agem. Em toda sociedade, o domínio ou administração de seres humanos, coisas ou valores ocorre segundo normas a que todos devem obedecer. Nas sociedades antigas, regiam as normas familiares, da tribo ou clan. Nas modernas, as normas são fornecidas pelas religiões, direito, poder político, ideologias. Só existe conflito, em sociedades políticas, quando a administração de pessoas, coisas ou valores entra em choque com a lei ou com a sua interpretação. Éste é o trabalho dos juristas. O da ética é descrever os comportamentos das pessoas, os seus valores ou coisas a que aspiram, as normas e a sua aplicação. Não basta à ética constatar os desejos, crenças ou ideologias. É preciso compará-los às normas para verificar como elas expressam valores dos indivíduos ou grupos, valores indicados na lei de modo positivo ou negativo. O mais árduo é analisar o valor dos próprios valores, tendo em vista os indivíduos ou coletivos que os professam ou recusam.
Existem duas categorias de normas que regulamentam os conflitos de interesse. A primeira define as regras impostas pelo Estado a determinada profissão, seguindo reais ou supostos interesses públicos, justificados por principios jurídicos. A segunda, define regras adotadas por setores profissionais, devidas a este ou aquele coletivo. Esta divisão peremptória, no entanto, é simplificada em demasia.
Os conflitos de interesse profissionais surgem mais comumente na segunda categoria, porque nela encontra-se a auto-regulação. As determinações da primeira categoria pertencem à soberania estatal e aos tratados entre soberanias. Os conflitos de interesse próprios aos políticos, no Parlamento, no Executivo ou Judiciário, e mesmo nos Exércitos e forças policiais, recebem nome pouco agradável, pouco eufônico, eles são chamados de corrupção, espionagem, traição da segurança nacional, etc. É possível agir para modificar os ordenamentos legais —para melhor ou pior, segundo a optica da pesquisa científica e técnica— com uso de informações científicas cuja fonte são os profissionais que justificam tais mudanças. Não é possível ignorá-los ou desobedecer as leis sem risco para quem assim age, porque não apenas eles podem cair na jurisdição policial simples, como podem se enredar no pantanal da corrupção política, econômica, etc.
A auto-regulação também provoca riscos. O primeiro é ferir leis estabelecidas pelas soberanias ou tratados internacionais. O maior deles é violar segredos de Estados, podendo uma associação ser acusada de lesar a segurança política e societária de certo poder estatal. Dentre os segredos, a confidencialidade das técnicas, procedimentos, etc. podem ou não ser considerados exclusivos por este ou aquele Estado soberano. Também é possível agir para que o segredo se atenue por razões de ordem científica, axiológica, etc. mas tal ação tem limites definidos pelo poder soberano nas terras onde operam as associações. A confidencialidade de um procedimento laboratorial pode ser mantida, incentivada, proibida, segundo o juízo do Estado. Nada, entretanto, é fixo no amplo setor que vai da ciência e técnica rigorosas, ao ondulante terreno das ideologias, religiões, interesses políticos, militares, econômicos, etc.
Dentre os problemas que envolvem esse ponto, são graves os que implicam a mobilidade das pessoas que pertencem a certo coletivo profissional em regiões de seu país ou estrangeiras. As restrições aos diplomas, os salários, os incentivos técnicos, sociais, etc. tudo é pouco se considerarmos que o estrangeiro é sempre estrangeiro, mesmo convidado pelos pares ou aceito pelas autoridades locais. Esta situação existencial opera, e muito, quando um indivíduo ou grupo devem escolher entre cenários diversos ou conflitantes. O ato sem maiores problemas numa hora política nacional ou internacional pode se transformar em perigo para o integrante de uma associação, quando tensões internacionais devidas à ideologia, à potência militar, econômica, etc. tornam-se contraditórias. Os casos clássicos deram-se na Guerra Fria, mas se patenteiam hoje nos embates entre Islã e Ocidente, etc.
A própria percepção do conflito é dificil, dadas as conexões estabelecidas entre os múltiplos segmentos internos de uma profissão, os seus elos com outras fronteiriças, etc. Cada setor possue ramos que se entrelaçam a outros e, todos, são do interesse das várias soberanias, das lutas econômicas, políticas, ideológicas, religiosas. Alguns setores podem agir com maior liberdade na sua auto-regulamentação, mas ligam-se a outros, menos livres. Quando, por exemplo, se trata do trabalho em biologia e medicina, tudo muda se o poder estatal proíbe ou aprova pesquisas com celulas tronco, o ponto limite em que aprova ou desaprova, etc. O mesmo ocorre com organismos geneticamente modificados em agronomia. Um plano de pesquisa pode ser prejudicado quando o setor que lhe serve como continuidade científicamente lógica, ou tecnicamente logica, está sob intervenção ou proibição legal.
Como as regras dos setores auto-regulados dependem das leis nacionais, tem-se o choque possível das várias leis. Os profissionais precisam conhecer os vários sistemas para que a eles se adequem ou se preparem para questioná-los junto ao Estado, por pressões sobre os poderes Executivo e Legislativo, ou junto à opinião pública. Esta atividade complexa escapa a muitos dos profissionais pois trata-se de tarefa política que supõe saberes refinados e rigorosos sobre os valores jurídicos, políticos, religiososo, ideológicos. Sempre que a ação dos que defendem mudanças legais (tendo em vista as normas internas de sua associação) é feita ignorando-se este quesito, resultam choques que atrasam o alvo, ou reduzem parcialmente as conquistas no plano dos direitos à pesquisa.
Mas é preciso também refletir sobre o seguinte: se o Estado sanciona positivamente um campo de pesquisa, proibindo-o ou permitindo seu funcionamento, mesmo atividades legalizadas nem sempre atuam segundo o interresse público. Aumenta em nossos dias a oposição de setores mais fracos da cadeia produtiva (econômica, de pesquisa ou financeira) contra a erosão gradual de regras profissionais. Os conflitos de interesse surgidos desse modo tornam-se patentes sobretudo na Europa e nos EUA. A vigilância da midia traz notícias diárias sobre esses pontos. Veja-se o caso dos investimentos bancários e de sua administração, com os fundos de pensão e assimilados. O trabalho não auditado feito para a Enron, que erodiu a independência e integridade de muitos profissionais, foi permitido legalmente. Ele, no entanto, foi condenado pelo interesse público. Logo, nem sempre o Estado soberano que permite ações sancionadas legalmente, consegue ou almeja cumprir papel prudente na defesa do interesse público contra grandes firmas. Seria possível compatibilizar os setores oficiais e o interesse público, quando se trata daquelas empresas, de modo a manter os direitos dos setores com menor potencial econômico, político, ideológico?
Temos posto o embate entre ética e mercado. É difícil distinguir os limites de um campo e de outro. As justificativas para os vários procedimentos costumam misturar os ângulos, tendo em vista justamente condenar um grupo ou outro de interessados. Preciso voltar ao início de minha fala: nos conflitos entre ética e comércio, o choque não ocorre diretamente entre pesquisadores e Estado, ou entre pesquisadores e seitas religiosas, opinião pública, etc. Ele ocorre sempre, pois se trata de lutas ao redor da lei e da auto-regulamentação, com a mediação de juristas e do aparato jurídico. Ele ocorre, portanto, mediado por profissionais que também sofrem conflitos de interesse e devem ler a lei, interpretando-a para a parte que defendem. E não raro, todo grande ou pequeno escritório de advocacia usa recursos para influenciar a midia e a opinião pública.
As várias associações de profissionais, dentre elas a dos pesquisadores, encontram-se enredadas numa teia fina e consistente de normas legais, instituições mediadoras (dos partidos políticos às igrejas, destas aos escritórios de auditoria e de advocacia, etc), sendo que todas elas apelam para fundamentos éticos conflitantes entre si. Jamais um conflito de interesses surge de modo simples, desprovido da cadeia que os cerca. Tome-se a polissemia do termo “cadeia” rigorosamente, visto que os pesquisadores e demais profissionais tanto são envolvidos, às vezes no mais intimo de si mesmos, pelos valores contraditórios, quanto podem mesmo ir para a cadeia, dependendo da força social, política, ideológicas de certos segmentos sociais, que defendem certos valores.
Das recomendações oferecidas pelos que redigiram o Relatório sobre uma Conferência sobre os Conflitos de Interesses temos o seguinte: Devem ser identificados os conflitos de interesse e, para isto, é preciso entender quais princípios éticos entram como elementos a serem considerados. A tarefa é mais árdua do que parece. No plano ético, o levantamento e descrição dos valores em choque exige cautela e rigor. Num mundo definido pelo “politeísmo dos valores” (fruto da democracia e do incentivo à pesquisa científica, técnica, artística, humanística) em conflito com os vários monoteísmos que servem de raíz ética para bilhões de pessoas (cristianismo, judaismo, islamismo), as variantes axiológicas são muitas. Mais polifacetas ainda são as atitudes práticas em situações conflitivas. Identificar conflitos de interesse tendo em vista os princípios éticos leva tempo e exige objetividade que, infelizmente, as supostas ciências humanas estão longe de possuir.
Os critérios usados para designar os conflitos de interesse devem ser claramente definidos pelos pesquisadores, instituições e examinadores. É preciso adotar, em nível institucional, políticas detalhadas sobre o tema, as quais orientarão os comportamentos em vez de restringí-los. Seria conveniente elaborar políticas nacionais sobre o assunto, chegando-se a um “modelo” para uniformizar os regimes das instituições.
Ainda bem que os redatores colocaram aspas na palavra “modelo”, porque esse ponto é difícil como o primeiro. O termo deriva de paradigma (no grego, deiknumi) cujo sentido é “mostrar”, “demonstrar”, “indicar”. Quando acrescido da partícula para, significa “fornecer um modelo”. A raiz deik-, refere-se ao ato de “mostrar mediante a palavra”, mostrar o que deve ser, donde a consequente união com dike, a lei, a regra. () Entende-se o embaraço com o termo “modelo” para propôr a prática e os valores de certa profissão, em plano nacional e internacional. Para se atingir a uniformidade proposta, não apenas o plano interno das associações e instituições de pesquisa devem ser levadas em conta. Como enunciei no início, o poder estatal e as ordens societárias detêm o monopólio da lei, da diké. Assim, para atingir um modelo uniforme, os campos éticos e práticos devem ser apurados com ajuda dos saberes jurídicos e das ciências humanas. Tais saberes não consistem ainda, mesmo nas mais refinadas universidades, em redes capazes de elaborar, com base na ciência efetiva e atual, semelhante suporte.
c) Separar, o quanto for possível, a gestão financeira da gestão da pesquisa nas instituições. Certa educação dos interessados se impõe, para que eles saibam reconhecer situações onde interesses e obrigações estão em concorrência. Cada rede de relações pode engendrar diversas sortes de obrigações e interesses institucionais, de modo que a formação ajudará os atores a notar os conflitos de interesse.
Aqui, uma cautela que precisa ainda mostrar sua eficácia, a separação entre gestões financeiras e de pesquisa (líderes de pesquisa ainda são, em boa parte os que conseguem recursos e os administram) une-se à um problema grave quando se trata da formação ética e moral dos pesquisadores. Como separar a educação ética, tal como se passa no mundo da pesquisa, das outras formações éticas e morais da sociedade com a familia, as religiões, partidos políticos e ideológicos? Essas forças são poderosas na consciência dos “interessados” para usar a linguagem do documento. Eles podem receber noções gerais e abstratas de ética, mas o seu juízo ético (a capacidade de aplicar regras universais aos casos particulares e seguir dos fatos particulares ao universal) é formado antes dos bancos escolares, a eles precede e sucede. A educação ética, ou leva em conta esses elementos, ou labora em terreno minado. É por tal motivo que, no Estado democrático de direito, as leis levam em consideração as religiões, as ideologias, os interesses econômicos, mas não podem a eles serem submetidas. Aqui, a relevância dos conceitos modernos que deram nascimento às democracias européias, norte-americana e, mesmo, à nossa Constituição de 88 : a autonomia das instituições civís devem ser harmonizadas às instituições jurídicas. O ensino laico sustenta a vontade geral, que não se confunde com a vontade da maioria. Conflitos entre as duas vontades são inevitáveis, mas jamais podem receber resolução para atender à maioria. O estudante deve aprender, das escolas primárias à universidade, que embora a prática da ciência e da técnica possam exibir valores negativos, elas são em si mesmas valores positivos para a vontade geral. O juízo ético, inclusive quando se trata de reconhecer conflitos de interesses, numa sociedade democrática e no Estado de direito, deve ser educado tendo em vista esse ângulo. Caso contrário, brechas enormes abrem-se, mesmo na comunidade científica, para a desvalorização insidiosa da ciência e da técnica. E o conflito entre a vontade da maioria (por exemplo, religiosa) e a vontade geral, pode parecer aos indivíduos e grupos como conflito de interesses no exercício da atividade profissional. Um profissional pode ter juizo negativo sobre aspectos da pesquisa com células tronco ou organismos geneticamente modificados. Mas contra ela apresentar razões mais baseadas nas crenças, mesmo que hegemônicas, é ir contra a vontade geral.
d) A transparência é necessária, quando se trata de divulgar os conflitos reais de interesses, aparentes ou eventuais. E também revelar completamente todas as relações com a indústria e todas as relações consultivas com instancias que regulamentam a pesquisa. É essencial divulgar completamente e em tempo oportuno os resultados de todos os ensaios clínicos, para reduzir os conflitos que podem decorrer do controle das informações que a eles se relacionam.
Se até agora os problemas eram complexos, aqui entramos na Caixa de Pandora das desgraças dos pesquisadores e dos meios de financiamento e de gestão. A transparência requerida choca-se com procedimentos éticos de boa parte dos institutos públicos que financiam pesquisas, procedimentos éticos que, não raro, são anti-éticos. O mesmo problema aparece em boa parte dos periódicos. Só para exemplificar com a avaliação entre os pares que ocorre no segredo (efetivo ou simulado). Nela, à rede oficial de procedimentos institucionais, acrescentam-se redes ligadas a interesses de grupos, setores políticos, ideológicos, etc. É mais comum do que se imagina que comitês administradores e avaliadores deixem-se levar por recusas ou consentimentos de recursos por razões alheias ao mérito da pesquisa, e que assessores Ad hoc anônimos julguem, soberanos inquestionáveis, solicitações de recursos. A cautela invocada para o sigilo —garantir a objetividade do juizo— não raro serve para proteger interesses que, em muitos casos sequer são escondidos em pareceres redigidos em estilo partidário ou corporativo. Algo próximo aparece no assessoramento de periódicos. Com dose desigual, diversas áreas padecem desses males. Este aspecto merece análise, sobretudo quando se trata de recurso público. Se instituições privadas usam o sigilo, este pode ser admitido desde que, em empreedimentos comuns, recursos públicos não estejam somados aos privados. A transparência torna-se fábula piedosa, ou impiedosa, quando pesquisas são cortadas no nascedouro por conflitos de interesses inconfessáveis.
Falar em transparência, por outro lado, ignorando os interesses mais amplos que envolvem as soberanias nacionais, os interesses coletivos que não podem ser revelados sem perigos para a coletividade, merece discussão. Quando se vive, como os cidadãos de quase todos os Estados contemporâneos, em plena visibilidade diante dos poderes e quase nenhuma privacidade pessoal ou familiar, o anseio maior e compreensível é o de abrir todas as caixas pretas dos Estados. Mas a prudência recomenda lembrar que o Estado em que vivemos, bem ou mal, nos representa e representa a nossa população. É por tal motivo que, no início, recordei a condição de estrangeiro que todo pesquisador possue, nos documentos ou na pele (mesmo no sotaque) em terra alheia. Por mais que o internacionalismo e a retórica da globalização operem hoje, as fronteiras dos Estados não são apenas físicas. Elas são culturais, étnicas, religiosas, são éticas.
Que os tratos e contratos entre pesquisadores e suas instituições com o Estado, a indústria e o comércio, devam ser ao máximo transparentes, não segue-se que a referida transparência ultrapasse as raias da ingenuidade de se fornecer, contra o interesse público nacional, informações que possam colocar o país em condição ainda mais grave de fragilidade.
e) A gestão das pesquisas que sigam a transparência deve impôr as regras sobre os conflitos e encorajar uma cultura a elas conforme. Os conflitos devem ser geridos recorrendo-se a fontes independentes e avaliadores externos, recorrer a gestores profissionais dos investimentos.
Aqui chegamos a uma solução que levanta muitos problemas. É sonho dos pesquisadores livrarem-se da espinhosa gestão dos recursos, para a dedicação privilegiada aos laboratórios, bibliotecas, etc. Mas, como se vê em muitos setores, nem sempre a gestão profissional é sinônimo de entendimento das pesquisas necessárias ao interesse público, e nem sempre o profissionalismo é sinônimo de rigor ético. O caso Enron é apenas um deles. Compatilizar profissionalismo na gestão e objetividade científica —que não significa realizar pesquisas mais exigidas pelo mundo político ou pelo mercado— é desafio que ainda está longe de ser encaminhado.
(1) Murray, T., : Thinking critically about conflicts of interest in biomedical research, apresentação feita na conferência intitulada Conflicts of interest, Privacy/Confidentiality, and tissue Repositories: protections, policies, and practical stretegies (Boston, Mass, 3 a 5 de maio de 2004. Site: HYPERLINK "http://www.columbia.edu/itc/hs/medical/bioethics/cire/conference/May04.html" http://www.columbia.edu/itc/hs/medical/bioethics/cire/conference/May04.html
(2) Cf. Chantraine, P. : Dictionnaire étymologique de la langue grecque. (Paris, Klinksieck, 1983), página 257 e Benveniste, E. : Vocabulario de las instituciones indoeuropeas (Madrid, Taurus, 1983), páginas 301 a 303.
Roberto Romano Moral e Ciência. A monstruosidade no sec. XVIII
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