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quarta-feira, abril 11, 2007

É permitido enganar o povo? Novamente a Eisangelia, em artigo antigo...de 2002

Correio Popular de Campinas,

Publicada em 23/7/2002

Roberto Romano

É permitido enganar o povo?

Em tempos eleitorais, todos ouvimos pessoas cultivadas ou despossuídas de saberes que retomam lugares comuns, antigos como a vida em sociedade. Um deles refere-se aos políticos, "todos mentirosos e ladrões". Certos partidos que julgam possuir missão divina, e pensam ter descido à terra direto do paraíso (naturalmente antes do pecado original), insistem em alimentar aqueles chavões. No seu interior só existiriam seres íntegros. Fora deles, apenas desonestos, todos "farinha do mesmo saco".

Com esse discurso, eles prestam desserviço à democracia e a si mesmos. Prejudicam a democracia, pois justificam a representação reacionária e conservadora, que sempre buscou desqualificar as eleições livres, a liberdade de imprensa, a escolha religiosa, o Estado democrático de direito. E prejudicam a si mesmos, porque nenhum ideário se repete de modo perfeito na existência. Sempre surge, no meio do regimento angélico, um ou outro ladrão ou mentiroso. E o que seria pequena falta caso o referido grupo se considerasse humano, transforma-se em crime enorme e sem desculpa. Seres falíveis existem em toda parte. Mas, na pressa de desqualificar quem não aceita suas doutrinas ou ilusões, os militantes das legiões angélicas, quando erram, a exemplo de Lucifer, tombam das luzes divinas para as trevas diabólicas. Com seu orgulho sectário, eles se fragilizam em demasia.

A democracia sempre conheceu um desvio, que ela deve combater com vigor. A demagogia e a mentira são encontráveis em qualquer regime político. Mas nela tais atos são letais. Um tema persistente na filosofia política é o da trapaça preparada pelos líderes contra o povo. Platão, Aristóteles, Maquiavel, Erasmo, Rousseau, Diderot, Hegel e muitos outros pensadores descreveram tal prática. Mas ela é justificada pelos maquiavéis de quinta categoria que infestam a cena pública, a universidade, as igrejas. Os "realistas" imaginam que mentir integra o rol das coisas "normais" em política. Com os anjos citados acima, eles são os piores flagelos do regime popular.

Se os "anjos" fingem santidade e só enxergam desvios nos outros, os maquiavéis de fancaria justificam a própria canalhice considerando-a "esperteza". Para eles, tudo deve ser aceito pelo candidato a qualquer cargo eletivo, mesmo o que reduz o
postulante à indignidade. Raros honestos têm a coragem de erguer um "não" a esta leniência axiológica. E não raro, recebem, como prêmio da sua integridade, os ódios dos anjos e o deboche dos espertalhões. Hegel, na "Filosofia do Direito" (§317) cita a questão apresentada por Frederico 2 aos acadêmicos de Berlim, em 1778 : "é permitido enganar o povo?". Pergunta importante num Estado autoritário como era a Prússia por ele governada. Na Grécia, discutem os historiadores políticos, existiria uma lei proibindo enganar os cidadãos. Um político poderia ser processado e sofrer impeachment (Eisangelia) "se ao prometer algo, engana o povo". O nome desta lei era "nomos eisangelikos".

Como analisa um comentador (Hesk, J. "Deception and Democracy in Classical Athens"), tal lei já significaria que o regime democrático se fragilizara. Se é preciso ordenar legalmente algo que seria próprio do regime, é porque a trapaça tinha sido praticada de muitas maneiras. Leis escritas em papel, e não nas almas dos homens, adverte Platão, indicam apenas tolice ou insânia...

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