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quarta-feira, setembro 03, 2008


CORREIO POPULAR DE CAMPINAS.


Publicada em 3/9/2008


Abin: segredo e grampos

Roberto Romano

A “novidade” é a escuta imposta pela Abin ao presidente do STF e a várias autoridades. O escândalo é novo, mas o fato é antigo. A democracia começa e termina com o segredo, algo que não pode ser atribuído só ao Estado e às suas instituições. Antigo (Simmel diz que o sigilo “é uma das maiores conquistas da humanidade”), atualmente o fato atinge pleno sentido político. A sua prática passou das corporações medievais aos modernos dirigentes. O segredo, enuncia Simmel, não pertence nem ao campo do ter nem ao do ser, mas ao do agir.

Passado os pesadelos totalitários do século 20, o poder estatal ainda apresenta agudos desafios. Na ordem democrática anterior aos totalitarismos, os demagogos prometeram plena transparência ao povo, mas precisaram assumir o segredo estatal. Eles foram eleitos pelo voto secreto e, nos palácios, usaram o segredo para domar as massas que os sufragaram, é o que se passou em tiranias como a nazista. A resposta do poder ao segredo do voto foi o reforço e a manipulação inaudita do segredo de Estado. Com a Segunda Guerra e a Guerra Fria, o segredo aumentou sua abrangência e os países quebraram a fé pública em proveito dos governos. Hoje, no mundo inteiro (incluindo o Brasil), renasce o segredo contra os cidadãos. H. Arendt afirma que o totalitarismo pode ser entendido como reunião de “sociedades secretas estabelecidas publicamente”. O paradoxo é só aparente. Hitler examinou os princípios das sociedades secretas e os usou nos modelos que impôs ao povo. Ele promulgou em maio de 1939 algumas regras do seu partido. Primeira regra: ninguém que não tenha necessidade de ser informado deve receber informação. Segunda: ninguém deve saber mais do que o necessário. Terceira: ninguém deve saber algo antes do necessário.

Consideremos a lição de N. Bobbio: “O governo democrático desenvolve sua atividade em público, sob os olhos de todos. E deve desenvolver a sua própria atividade sob os olhos de todos porque todos os cidadãos devem formar uma opinião livre sobre as decisões tomadas em seu nome. De outro modo, qual a razão os levaria periodicamente à urnas e em quais bases poderiam expressar o seu voto de consentimento ou recusa? (…) o poder oculto não transforma a democracia, a perverte. Não a golpeia com maior ou menor gravidade em um de seus órgãos essenciais, mas a assassina”.

A democracia moderna surge com a transparência exigida contra governos que exasperam a prática de esconder os pontos maiores das políticas no setor público. Paradoxo: o público é definido fora do público. Mas o segredo é de fácil descoberta. Simmel adverte: porque as regras são facilmente desobedecidas, todo sistema de regulamentação deve ser imantado por valores. “A preservação do segredo é instável, as tentações de trair são múltiplas; a estrada que vai da discrição à indiscrição é em tantos casos tão contínua, que a fé incondicional na discreção envolve uma incomparável preponderância do fator subjetivo”. Logo, “o segredo é cercado pela possibilidade e tentação de trair; e o perigo externo de ser descoberto é entretecido com um perigo interno, que se parece com o fascínio de um abismo”. A Veja obteve a prova dos grampos da Abin seguindo tal regra: um espião caiu no abismo.

A imprensa atenua o segredo de Estado e os demais sigilos (da vida privada à religiosa, sem esquecer a economia). Ela, no entanto, insere-se num complexo de interesses que a tornam atriz e vítima dos poderes. Muitos nela enxergam um instrumento. Empresas e indústrias, bancos e cúpulas eclesiásticas, gabinetes políticos ou militares, partidos e seitas cortejam a imprensa para popularizar “mensagens”, obter lucros e favores de governos, ameaçar concorrentes. E todos a criticam quando não conseguem efetivar, por seu intermédio, aqueles fins.

Analisemos o ocorrido na Polícia Federal e na Abin: a espionagem de autoridades e de particulares não é fruto de “algum descuido ou traição”. Ela resulta da cultura estatal não democrática. Duas ditaduras do século 20 ensinaram que o Estado (no Brasil quer dizer “o governo”) tudo pode e que ninguém possui direitos garantidos. É tempo de mudar tal comportamento político hediondo. É tempo de lutar pela democracia.


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