Roberto Romano Moral e Ciência. A monstruosidade no sec. XVIII
Silence et Bruit. Roberto Romano
terça-feira, março 13, 2007
Em defesa do cinismo.
Escola de Atenas, Diógenes o cínico.
Folha de São Paulo 13/03/2007
O "sociocinismo" do PT
CLÓVIS ROSSI
Só ontem consegui entender o voto de desconfiança que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sapecara em seus companheiros do PT ao escalar parlamentares de outros partidos para todas as três lideranças do governo no Congresso.
Aliás, os três (Romero Jucá, José Múcio e Roseana Sarney) são exemplares acabados do que o PT pré-governo chamaria de representantes da "oligarquia reacionária" do Norte-Nordeste.
Depois que Lula tomou posse e passou, a cada passo, a redescobrir o Brasil (e a si próprio), são lídimos companheiros.
Se um dos três líderes fosse de um partido que não o PT, seria normal em um governo de coalizão. Dois seria exagero. Todos equivale a dizer publicamente que o PT não tem gente qualificada.
Mas faz todo o sentido. Afinal, o tal Campo Majoritário, a corrente predominante no partido, volta a se definir, em documento oficial, como "socialista". Lula já havia dito, não faz muito, que quem é de esquerda, na maturidade, não passa de um tolinho. Logo, deve achar seus companheiros "socialistas" um bando de tolinhos. Como conseqüência inescapável, não pode lhes dar papel de liderança.
Mesmo desairado, o PT se cala. Engole tudo o que vem de Lula pela simples e boa razão de que só lhe restou, dos velhos tempos, uma bandeira, chamada exatamente Luiz Inácio Lula da Silva.
Rotular-se de "socialista" não é uma demonstração de senilidade, como decretou o grande gerontólogo Lula. É puro cinismo.
A não ser que "socialismo" tenha passado a ser o predomínio dos banqueiros, a nova classe eleita dos deuses. Afinal, quatro anos de governo Lula produziram, ano após ano, lucros recordes para os bancos, como se viu no mesmo jornal que anuncia que o Campo Majoritário defende ainda o "socialismo". Peculiar socialismo esse do PT.
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Prezado Clovis Rossi: acho um erro o uso constante do termo "cínico" para designar calhordas. Como escrevi na Folha, há bom tempo, num artigo intitulado "Em defesa do cinismo", aquela palavra nomeia uma das filosofias mais sérias e mais éticas de todos os tempos. Cínico vem de cão, em grego. Os filósofos daquela escola, dignos acima de tudo, não perdoavam as hipocrisias das pessoas comuns e dos governantes. Eles "mordiam" a vaidade, as mentiras, as simulações e dissimulações de todos. Eram inclusive e sobretudo, críticos de si mesmos. Diógenes, quando viu um jovem tomar agua com as conchas da mão, jogou fora a sua caneca. A má fama daqueles pensadores e ativistas veio, justamente, dos que bajulavam os donos do mundo, dos hipócritas que não suportavam as mordidas cínicas.
É injusto enfeitar os nossos operadores políticos, em todos os partidos, com a nobreza cinica. Eles são covardes, aduladores,
improbos, etc., menos cínicos.
No caso em pauta, a atitude do PT diante do Poderoso, faltou portanto, caro Clovis Rossi, dizer que se eles lambem as botas do governante, usam os caninos para estraçalhar todos os que ousam criticar o governo. Se não mordem diretamente, porque "não pega bem", mandam os militantes, os desqualificados de sempre que nada têm a perder, e que não mais rosnam, mas pulam direto na jugular dos opositores. É o mesmo que ocorreu na Alemanha nazista, na Itália fascista, no Estado Novo, etc. Quando passam as ditaduras, ficam os nomes dos ditadores. Os militantes que destruiram vidas honestas, e que fizeram o "sale boulot" (o serviço sujo) para os líderes, desaparecem na poeira dos tempos, ou no lixo da história. Medíocres só podem morder. Mas não no sentido do cinismo, que mordiam as almas e as corrigiam. Eles mordem corpos e reputações, ameaçam inclusive com a morte os livres, os que se recusam a idolatrar os deuses do poder.
Caro Clovis: aposente por gentileza a palavra "cínismo", ou use-a apenas no sentido correto. Os sujeitos de sua excelente crônica de hoje não merecem a honraria do espírito.
Roberto Romano
Apenas enquanto lembrança, segue o artigo da Folha, de 2001, sobre o cinismo.
TENDÊNCIAS/DEBATES
Em defesa do cinismo
ROBERTO ROMANO
Nos últimos tempos da República brasileira, os eventos políticos atingiram um grau inédito de corrosão. De momentos assim, só me lembro os que antecederam o golpe de 1964. Mas hoje as coisas são mais graves. Não é o Executivo nem são os quartéis a ameaça ao Parlamento, mas a sua autocorrosão. Os analistas que procuram descrever os costumes de nossos representantes no Congresso sempre repetem uma palavra mágica. A atitude e a fala dos parlamentares e dos agentes do governo, para não falar nas togas, têm sido alcunhadas de "cínicas".
Em defesa da verdade factual e histórica, é preciso dizer que isso é uma injustiça gritante. Os cínicos receberam tal apelido (do latim "cynicus", de origem grega, para designar o cachorro) porque mordiam como cães ferozes os hipócritas e os poderosos. O modo cínico de agir é o exato oposto do empregado pelos senhores do Parlamento. O bom padre Vieira, no atualíssimo "Sermão do Bom Ladrão", elogia o cínico Diógenes, "que tudo via com mais aguda vista do que a dos outros homens", quando ele, apontando o dedo para os "ministros da justiça" que levavam à forca uns ladrões, "começou a bradar: "Lá vão os ladrões grandes enforcar os pequenos" ". Quem vive em tempos de Nicolau dos Santos Neto percebe a justeza dessas frases do jesuíta austero, inspiradas na conduta cínica.
Aqueles filósofos ensinavam que a alma humana é imortal, sendo preciso bem administrá-la, pois a sua estrutura, embora mais elevada do que a do corpo, possui uma imensa fragilidade. O autoconhecimento mostra-se estratégico, bem como a vida em perfeita amizade ("um amigo é uma só alma em dois corpos"). Dentre os empecilhos à boa amizade, ensinam os cínicos, estão a lisonja, a inveja, a ignorância e as humilhações recíprocas. Contra elas, o treino ascético é fundamental. Quem se acostuma a bajular o próprio corpo logo estará apto, na alma, a ser bajulado pelo primeiro inimigo disfarçado.
A felicidade só pode ser atingida se resultar da mais rigorosa justiça e da mais rigorosa liberdade. Não depender dos confortos ilusórios trazidos pela riqueza e pelo mando político é o modo de ser livre e de conquistar a plena autarquia, o domínio sobre si mesmo. Sem ela, a escravidão ronda as almas e os corpos. Assim falavam os cínicos.
Disso resulta a franqueza da língua. A palavra livre, segundo os cínicos, é a mais bela das conquistas humanas. Nem preso aos ricos e poderosos nem sujeito à multidão, o verbo consciente recusa a lisonja pessoal e a demagogia.Do mesmo cínico Diógenes é a frase famosa: "Quando sou aplaudido por muitos, certamente devo examinar-me para saber se não disse uma bobagem". A liberdade assim percebida se baseia na ascese (leia o belo texto de Goulet-Cazé, M.O: "L'Ascèse Cynique"). A virtude ascética fez o filósofo jogar longe o seu caneco ao ver um menino bebendo da fonte com a palma da mão.
Os cínicos receberam tal apelido porque mordiam como cães ferozes os hipócritas e os poderosos Apenas o necessário à vida, sem luxos, sem pedantismos e sem lauréis. Essa é a doutrina cínica. Os cínicos ajudam-nos, até hoje, a romper com a hipocrisia da fala "politicamente correta". Tamanha potência da virtude fez o pensador gritar ao poderoso Alexandre: "Saia daí. A tua presença me retira a luz do sol". Ah, se os nossos políticos e "democratas" fossem de fato cínicos! Todos os ensinamentos dessa escola resistiriam ao tempo e aos regimes políticos. O prisma negativo que essa escola recebeu foi dado justamente pelos ardilosos donos do poder, político ou religioso. A calúnia perdura até os nossos dias, em proveito dos inimigos da disciplina, da liberdade de atos e palavras e dos que amam a riqueza (sobretudo a pública) para seu conforto e ostentação.
O cachorro é símbolo, na cultura grega, da amizade política mais nobre. Platão afirma que os dirigentes da república devem ser como os cães: gentis e leais para com os de casa; ferozes contra os inimigos. E o tirano seria como o lobo que devora os bens dos cidadãos em proveito próprio. Daí a tese de Jean Bodin sobre a tirania: "Tirano é o que usa os bens dos súditos como se fossem seus". Vivemos em contínua tirania neste país. Tudo entre nós está invertido e pervertido. A começar pelo tom errado que damos à uma das mais rigorosas éticas filosóficas do Ocidente, a cínica. Os políticos, lobos que dominam o picadeiro de Brasília, se distanciam dos cínicos. Eles são hipócritas e corruptos, amolecidos nos costumes e luzidios de riqueza roubada. Se não temos a coragem dos cínicos, pelo menos não aceitemos as calúnias contra eles, que apenas servem para absolver os seus alvos, os relaxados na moral que enodoam as instituições públicas brasileiras.
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