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quinta-feira, março 15, 2007

LEIGOS E CORPORAÇOES

A Folha traz hoje, em sua seção Tendencias e Debates, um artigo escrito segundo os padrões habituais de arrogância exibidos pela corporação dos advogados. O autor poderia perfeitamente apresentar as suas teses, com o mesmo brilhantismo, sem tombar em insultos à cultura, aos conhecimentos científicos e humanísticos do público leitor. É vezo de todos os campos profissionais tentar ridicularizar e destruir argumentos com base na carteirinha. Os economistas, os médicos, os psiquiatras, os policiais, os padres, os pai de santo, os técnicos de futebol, e toda uma coleção sublime de pessoas que defendem o seu emprego, usam idioletos que dão aos seus saberes o tom esotérico, de caráter iniciático. Enquanto se defendem, tudo bem. Mas quando procuram desqualificar os demais com base no seu conhecimento especializado, precisam de algo mais do que adjetivos. Entre os desprezados leigos, existem diferenças de saberes e de informação. O truque retórico do artigo mencionado é criar um imaginário homem da rua, um leigo, etc. sem lhe dar nome e endereço. É fácil vencer com tal modelo "argumentativo". Insisto: tudo o que o autor disse (dele discordo, mas não importa) seria perfeitamente exposto sem a pedante arrogância exibida. Peço a leitura do texto abaixo, e a análise dos conteúdos e formas: os observadores isentos poderão constatar o que digo. Boa leitura e, sobretudo, boas esperanças de que um dia as corporações saberão o significado da palavra "respeito". É dificil, basta consultar O Elogio da Loucura, para ver que o uso do cachimbo é antigo, muito antigo, naqueles setores já criticados por Erasmo de Rotterdam.


TENDÊNCIAS/DEBATES

Alguma coisa fica
SERGIO BERMUDES

Deplorável e deprimente é que reportagem desperte, pelo descuido na elaboração, conjecturas de desavisados e desencadeie maledicências

TANTO NÃO pode um juiz acusar sem fundamento, como fez o ministro Joaquim Barbosa, do STF, imputando ao advogado e ex-ministro Maurício Corrêa o crime de tráfico de influência, quanto não deve uma reportagem sugestionar os leitores, deixando-lhes a impressão de que um juiz do Supremo descumpriu sua função de julgar com imparcialidade. A matéria hostil deixa o magistrado em desvantagem porque, pela natureza do seu cargo, ele não pode entregar-se a polêmicas e bate-bocas. Só leigos podem impressionar-se com a insinuação de que houve os erros imputados ao ministro Gilmar Mendes na reportagem da Folha de domingo, dia 11, pois os critérios da lei, de aplicação obrigatória, muitas vezes não coincidem com os da opinião pública.

É visível a balela de que Mendes teria enriquecido, ilicitamente, dando aulas em curso jurídico de que seria quotista, "no horário de trabalho", quando advogado-geral da União, cargo que se exerce todo tempo, sem recebimento de horas extras.
A improbidade consistiria na remuneração das tais aulas, segundo a ação, proposta por procurador sabidamente singular nos seus juízos, que tem dado mostras de achar que a inocência é desaforo.

Tolice supor que um ministro da Suprema Corte se indispusesse com o Ministério Público em geral por causa de uma ação sem pé nem cabeça, proposta por um dos membros da instituição. Milhares de vezes, após a ação, o ministro prestigiou o Ministério Público, adotando seus pareceres.

Gilmar Mendes, respeitado por sua cultura de um dos melhores constitucionalistas brasileiros, não decide sozinho. Os seus votos só prevalecem se acompanhados pelos demais ministros, mulheres e homens de notável saber e reputação ilibada, requisitos constitucionais da sua investidura. Seria tolice acreditar que esses ministros pudessem acompanhar às cegas o voto de um relator. Isso nunca acontece, como demonstram os anais da jurisprudência, nos quais se vê que, em dúvida, o ministro pede para examinar pessoalmente o processo.

Censure-se, então, a reportagem também no ponto em que, tal como compreenderão os leitores, ela faz ao Supremo Tribunal Federal a acusação gravíssima de haver seguido Mendes, trancando, indevidamente, ações contra magistrados e réus denunciados pela Operação Anaconda. Antes de criticar de modo consistente um julgamento, é indispensável examiná-lo, inclusive com a ajuda de especialistas. Freqüentemente, o homem da rua não entende e não aprova decisões judiciais como a do STF que rejeitou a denúncia do procurador-geral da República contra Fernando Collor por considerá-la inepta, o que, em linguagem técnica, significa apenas a falta de aptidão para apresentar um pedido à Justiça. Quando, cortejando a opinião pública, oscilante nos seus julgamentos, o juiz negar a proteção do direito a quem, segundo a voz corrente, seja culpado, ele estará abrindo caminho para a desproteção dos inocentes.

Reconheça-se que, muitas vezes, se torna difícil compreender certos julgamentos sem a adequada formação jurídica. O homem da rua não aceita que um tribunal aplique o inciso LVII do artigo 5º da Constituição ("ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória") quando se tratar de pessoa para cuja culpa, segundo a mídia, todos os fatos apontam. Também não entende como uma sentença, clamorosamente ilegal, prevaleça apenas porque a parte perdeu, por um dia, o prazo para recorrer dela.

Podem-se criticar as decisões dos juízes. Assim procedem, diariamente, os advogados, em especial quando recorremos delas. Uma coisa, entretanto, é criticar os pronunciamentos; outra é noticiá-los de modo a influenciar o leitor, deixando nele a impressão de que houve um julgamento propositalmente errôneo para beneficiar alguém. A matéria jornalística não poderia qualificar de erradas as decisões do ministro, nem insinuar isso, senão depois do exaustivo exame das circunstâncias processuais em que ele as proferiu.

A reportagem saiu do sério, publicando a insólita declaração de uma procuradora, de que seria pretensiosa e ofensiva a decisão do ministro Gilmar Mendes que julgou inepta denúncia subscrita por Claudio Fonteles. Muito ilustre embora, esse procurador não está imune dos erros que autenticam a humanidade de cada um. Agrippino Grieco apontou cincas e tropeços dos melhores autores no livro "Disparates de Todos Nós".

Deplorável e deprimente é que uma reportagem de jornal desperte, pelo descuido na elaboração, conjecturas de desavisados e desencadeie maledicências. Dê-se razão a Beaumarchais: depois da calúnia, alguma coisa sempre fica.

SERGIO BERMUDES é advogado e professor de direito processual civil na PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro).
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Segue cópia de um artigo arcaico, de 2000, que publiquei quando colegas do autor citado acima redigiram coisas que seguem na mesma linha corporativa. Paguei caro pela publicação do artigo, muito caro mesmo. Mas fiquei em paz com a minha consciência. Numa terra em que impera o do ut des, isto não é pouco.
Roberto Romano

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Folha de São Paulo, 21/Agosto/2000

ROBERTO ROMANO

Nós, os leigos

"Leigos em Direito (...) têm a tendência de falar sobre ele com uma desenvoltura que não teriam se se tratasse de medicina ou de antropologia. Por isso, além de "julgar" os casos de acordo com o "clamor público" -que é o mesmo que leva a linchamentos-, ainda "julgam o julgador", esquecendo que, no Estado de Direito, paga-se um preço pela garantia de todos e de cada um, de tal forma que só após a conclusão de um processo regular é que se pode obter uma certeza jurídica." (Américo Lacombe, Celso Bandeira de Mello, Fábio Konder Comparato, Folha, 10/8)

Prezados juristas , porque fomos invocados no artigo de vossas senhorias, pedimos vênia para nos apresentar. Nós, os leigos, temos uma história muito antiga. Na Grécia, éramos conhecidos como "laós", em oposição aos nossos chefes. É verdade que também fomos identificados por um nome de maior prestígio, "demos". As funções arriscadas da cidade eram nossas, especialmente a de lutar com nossas armas, prestando a chamada liturgia em prol dos concidadãos. Não temos muita idéia (nos apontam como ignaros) das causas que nos transformaram de povo em plebe. Primeiro nos alcunharam como "os muitos", opostos aos "melhores". Em Roma, disseram que éramos o "improbante populo", ou a "imperita plebs". Os grandes do universo nos bajulavam, mas tinham nojo de nossa presença.

Veio a Igreja Católica e passamos a constituir um tipo de gente menor, sem qualificações plenas para viver, por nossos próprios méritos, na terra. Recebemos todos o epíteto de "laicus", em oposição, como no Egito dos faraós, aos sacerdotes. Justiniano consagrou esse insulto singular no seu código. Dionísio Areopagita imaginou o universo como imensa hierarquia, dos arcanjos aos padres. Fomos relegados à base da escada celeste. Leigo era sinônimo de pura tolice. Certo dia, um poeta e crítico dos padres, Dante Alighieri, começou, com outros escritores, a louvar uma política não-sacralizada. O poder, dizia ele, deve ser secular. Sacerdotes e teólogos o perseguiram por meios interpostos.

A partir dessa época, as coisas pioraram para os donos do saber e do poder sacerdotal. Lutero incomodou muito aqueles senhores dizendo que nós, os leigos, éramos sacerdotes! Ainda ouvimos as frases do antigo monge: "Über das sind wir Priester". Deus nos acuda: a patuléia elevada ao estado sacerdotal! O reformador se referia, às vezes, à nossa pessoa como "o senhor todo mundo", com desprezo. Mas, a partir daí, homens de cabeça quente começaram a escrever (e nas doutrinas do direito!) que somos a fonte da soberania. E que, numa República, constituímos a vida. Tais homens não possuíam nem um átimo sequer do grande saber jurídico brasileiro do século 20, seu nome era modesto, como certo Althusius.

No século 18, uma revolução foi feita para apagar os resquícios do mando clerical sobre a política. Nas mudanças trazidas por ela, o princípio de igualdade e de nossa soberania foi definido e proclamado. O nome de Rousseau surgiu em todas as bocas. Com ele, a condenação de todas as corporações que pudessem usurpar as prerrogativas nossas, os soberanos. Não mais cabia a distinção clerical entre "leigos" e "sapientes". Mas os contra-revolucionários do Termidor disseram que o povo nada sabia dos assuntos de Estado. Um deles, D'Anglas, retomou a idéia de que homens sem propriedades, de coisas ou de saberes, seriam nocivos à vida pública. E vieram os engenheiros positivistas da sociedade, os novos advogados. O romantismo conservador viu em nós "eternas crianças", como o poeta Novalis, grande entusiasta da ressacralização política.

Assistimos, os leigos, às lutas ao redor da boa definição republicana. De um canto, alguns nos jogam fora do Estado e de sua gerência, pois confiam apenas nas elites, treinadas em economia, leis, direito. De outro, existem os sonhadores, ou tolos, que asseguram ser a democracia o império dos leigos, um ideal sublime. Temos aliados na imprensa, entre promotores e procuradores públicos (afinal, público também se liga a povo...). Mas eles sempre recebem insultos dos sacerdotes jurídicos e econômicos, quando não dos eclesiásticos, para que deixem a mania de tudo pesquisar segundo os nossos interesses. Com isso, seguimos ignorando o nosso papel no mundo. A nossa única certeza é não mais confiar nas falas sagradas e "infalíveis" dos que fizeram esta monstruosidade que aí está, e que eles chamam "democracia" ou "Estado de Direito", expulsando o juízo do povo. Por falta de nossa confiança, tornou-se ingovernável a República. Mas essa é uma outra lenda, da qual falaremos um dia. Por enquanto fica o nosso testemunho do mais profundo respeito pelas vossas figuras jurídicas, apesar da arrogante amostra de sacralidade corporativa, evidenciada no vosso último artigo coletivo.


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O artigo recebeu, no dia seguinte, o comentário no Painel do Leitor:

Em defesa dos leigos:

"Comovente o artigo de ontem de Roberto Romano ("Tendências/Debates'). Desde quando um douto sábio afirmou que "quem crucificou Cristo foi a opinião pública", faltava uma grande resposta para nos defender à altura. Obrigado, Romano."
Rogério Bonsaver (São Paulo, SP)

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