Roberto Romano Moral e Ciência. A monstruosidade no sec. XVIII
Silence et Bruit. Roberto Romano
domingo, março 04, 2007
Folha de Sao Paulo, no lançamento de O Desafio do Islam
O SOTAQUE TEXANO DA RAZÃO DE ESTADO
Márcio Senne de Moraes
da Redação
Professor de filosofia da Universidade Estadual de Campinas, Roberto Romano está lançando "O Desafio do Islã e Outros Desafios" (ed. Perspectiva), em que debate os grandes impasses e problemas que pairam sobre as sociedades ocidentais. "Há um grande perigo quando [George W.] Bush proclama, mesmo que implicitamente, a superioridade do mundo ocidental. Ele usa a razão de Estado com sotaque, o que a torna quase ininteligível para outros países ou outras culturas", diz o autor de, entre outros, "Conservadorismo Romântico" e "Lux in Tenebris", na entrevista a seguir.
O sr. diz que o ideal iluminista de transparência foi destruído pela razão de Estado. Qual é a conseqüência disso?
A conseqüência é que houve, concomitantemente, um espalhamento da razão bélico-tecnológica e da estratégia, utilizadas pela razão de Estado, e que não existiu uma disseminação da base da própria razão, que é muito mais ampla que a razão de Estado. Se há um ideal de razão, que foi herdado dos gregos, elaborado pelos romanos e teve uma forte tintura do pensamento judaico-cristão e do islã, ele acaba sendo desprezado nessa lógica. Se desconsiderarmos o que foi feito no mundo islâmico no que tange à matemática, à ótica, à medicina e à transmissão dos textos filosóficos gregos à cultura cristã, não teremos a totalidade da experiência histórica da razão.
Com a expansão do Ocidente -feita a partir de uma base tecnológica herdada de outras culturas-, houve uma fragmentação do fato racional. Nos movimentos atuais, que substituíram os movimentos pela descolonização, existem as microrrazões que operam com uma lógica própria. Ainda não há, portanto, uma possibilidade de diálogo desses vários segmentos com um fundo racional mais amplo. Há as grandes potências, que usam um idioleto da razão, como no caso de Bush e de Tony Blair, e os vários movimentos terroristas que operam segundo seus idioletos. Há uma espécie de babel política, cuja saída é praticamente impossível, já que cada um desses setores tem sua lógica própria. Isso impede que o sonho de regulação universal seja concretizado.
Mas o projeto da paz perpétua não é algo utópico?
Sim, na prática. Contudo ele contém uma idéia de razão, da qual Kant é o grande representante, que pôde modificar um pouco o antigo status quo. O problema é que, na vida pública, nunca há ganhos definitivos. Gosto de uma frase de Diderot, que era visto como alguém que acreditava no progresso, que diz que uma nação pode chegar a um nível bastante elevado de civilização e, em seguida, regredir.
Nesse contexto, as políticas aplicadas pela atual administração americana são um retrocesso?
Sim. Há um grande perigo quando Bush proclama, mesmo que implicitamente, a superioridade do mundo ocidental. Ele observa as prioridades do Ocidente a partir de uma lógica privada e usa a razão de Estado com sotaque, o que a torna quase ininteligível para outros países ou outras culturas. A disputa ocorrida na ONU entre a União Européia, liderada pela França e pela Alemanha, e os EUA mostra essa impossível tradução da razão de Estado americana. Todavia não se trata apenas de um fenômeno de lógica ou de racionalidade. Há uma disputa pelo poder. Paris e Berlim não têm uma atitude filantrópica, já que têm planos típicos de uma potência.
A mídia, segundo seu livro, tornou-se um mero instrumento da política externa americana, que é classificada de "xenófoba". Não há mais imprensa livre nos EUA?
Não, não posso imaginar que, em algum lugar do mundo, não haja ao menos um pouco de liberdade de imprensa. Por uma questão filosófica, não creio que tenha existido na história um Estado totalitário ou uma sociedade verdadeiramente totalitária.Nesse caso, não haveria nenhuma possibilidade de ruptura ou de movimentação nesses Estados. Se dissermos que a URSS ou a Alemanha nazista foi um totalitarismo pleno, negligenciaremos as resistências silenciadas e as fraturas, imaginando que houvesse um bloco indissolúvel entre a sociedade e o Estado. Até na URSS, havia imprensa clandestina. No caso americano, até na grande imprensa, existem fraturas e vozes divergentes, embora haja uma tentativa de controle por parte do governo. O Estado americano tem uma tradição democrática que ainda não foi vencida pelas tendências encarnadas por Bush. Como o momento em que escrevi meus textos era muito tenso, talvez meu tom reflita essa tensão.
O princípio que guia a guerra ao terror liderada por Bush é: "Nós contra eles". Que impacto esse princípio tem sobre o mundo islâmico?
O efeito é devastador. A retórica de Bush é algo surpreendente para mim, pois a sociologia e a antropologia americanas são muito refinadas, tendo uma grande capacidade de influência sobre as decisões políticas e sobre os sistemas de regulação. Noto que o padrão da sociologia dos EUA continua alto. Mas o que acontece com esse saber quando um grupo essencialmente fundamentalista assume o governo e utiliza um discurso tosco sobre diferenças culturais? Temos algumas pistas quando vemos que até textos da CIA foram negligenciados pelo governo em alguns casos. Trata-se de algo assustador. No caso de um governo que tem uma forte vontade de dominar, seria vital levar em conta as diferenças culturais para buscar estabelecer pontes, deixando de lado, portanto, a idéia de que o jogo é travado entre "nós" e "eles". Há um tipo de autismo nos EUA que leva a atos nocivos a seus próprios interesses.
Qual é a razão desse fenômeno?
Uma das causas internas é o fato de o exercício da Presidência ter-se tornado muito forte. Ou seja, o Legislativo é cada vez mais subordinado ao Executivo. Essa atribuição ditatorial do presidente deixou o Executivo menos atento ao diálogo com sua própria sociedade e com países estrangeiros. O descolamento do Executivo do restante do Estado é perigoso.
Qual é o grande desafio representado pelo islã?
Ele diz respeito ao "nós" usado pelo governo americano. É tentador para nós, que vivemos num meio impregnado de valores cristãos, acusar o islã de ser a matriz do terrorismo. Isso faz com que esqueçamos nossa própria história. Afinal, há uma tradição na cultura judaico-cristã de uso da adaga para fazer justiça. Isso foi muito usado nos séculos 17 e 18. Contudo não podemos esquecer que temos grande responsabilidade pela tecnologia e pela racionalização do terror. Temos doutrinas, lógicas e técnicas. E, quando se trata do terror político mais radical, devemos lembrar que ele foi inventado na cultura ocidental, tendo até dado início à Primeira Guerra Mundial -começada após o atentado de Sarajevo. Assim, o desafio do islã é o nosso desafio. Só poderemos entender o terrorismo islâmico se compreendermos nosso próprio terrorismo. É por isso que quis pôr em meu livro um texto sobre Erasmo, um pensador clássico ocidental que pregava uma relação de tolerância com o islã.
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