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terça-feira, março 06, 2007

O Poder Lobisomen






Foto: www.marciobrigo.blogger.com.br/2004_01_01_arc...


Correio Popular de Campinas 6/3/2007


O poder lobisomen, da Grécia ao Brasil

Roberto Romano

Um encanto da escrita filosófica antiga, sortilégio que se prolonga nos textos medievais e do Renascimento, encontra-se nos símiles por eles empregados, entre os seres humanos e os demais seres vivos. Semelhante imaginário permite aos pensadores indicar qualidades ou defeitos nossos, sob forma cruel ou meiga. La Fontaine, adversário como os seus amigos jansenistas do poder absoluto, mantido na França por Luís 14, apresentou ao mundo deliciosas fábulas sobre a ética, a moral, a religião e a política de seu tempo. O mote que o fez redigir os candentes versos contra a tirania encontra-se numa tese de Plutarco e de outros escritores: os animais não seriam desprovidos de razão. Se os brutos ostentam racionalidade, o que seria possível dizer do pretenso animal lógico, o homem, quando usa a força e a astúcia para estraçalhar os semelhantes?

Platão construiu uma crítica radical da política desenvolvida em seu tempo, utilizando os símiles dos animais. Os bichos são usados como termo de comparação: os soldados devem ser como os cães, terríveis contra estranhos, suaves diante dos que habitam uma casa. Numa sociedade bélica como a grega, o exemplo do cão serve ao filósofo, na República, inclusive para sugerir o treino mais eficaz dos meninos que serão soldados. Eles deveriam ser postos sobre cavalos quando houvesse uma guerra "como espectadores, e, quando fosse possível sem maior perigo, (seria bom) aproximá-los da batalha e fazê-los tomar gosto do sangue, como a cães novos" (República 537a). Como se nota, Platão tem muito pouco do "idealismo" a ele predicado pelos ignaros de todas as escolas e ideologias. Seu realismo é pior do que o defendido por muitos teóricos da guerra moderna. Se forem abertas as páginas dos Diálogos, além dos cachorros surge uma fieira enorme de feras, do cavalo selvagem ao domesticado, dos porcos às ovelhas, do leão ao javali, do lobo às serpentes. Também os pássaros e os insetos são evocados pelo magnífico escritor político, somando-se às abelhas, aos zangões, as cigarras e as formigas, a ostra, a esponja, os anfíbios, as rãs, a medusa, etc.

A descrever a passagem do regime democrático ao tirânico, Platão descreve com arte e maestria os animais humanos que devoram aquela forma de governo. Cada grupo ou indivíduo encontra seu correspondente no mundo animal, mas neste trecho da República é sublinhada a existência de três raças que dominam a cidade onde o povo é soberano. A primeira delas é a que, em virtude da licenciosidade, se desenvolve tanto na democracia quanto na oligarquia. Sem crédito entre oligarcas, os indivíduos da raça licenciosa se espalham no plano democrático, agem sempre em bando (hoje diríamos quadrilhas). É tal raça "que governa quase exclusivamente; os mais exaltados do bando discorrem e agem; os outros, sentados junto à tribuna (na assembléia, RR) zumbem e fecham a boca ao contraditor; de sorte que, em tal governo, todos os negócios são regrados por eles, à exceção de um pequeno número" . Como o regime é corrupto e corrompido, surge uma terceira raça, a dos que enriquecem com os assuntos públicos, parasitas como os zangões. A terceira raça é o povo que trabalha com as próprias mãos, é alheio aos negócios e quase nada possui.

Fique atento agora, caro leitor, às frases de Platão: sendo o povo o conjunto mais numeroso, estando o poder nominalmente em suas mãos, é preciso convir que o mesmo povo "tem o hábito invariável de pôr à sua testa um homem cujo poder ele nutre e torna maior" . (565 c) Assim, "onde quer que o tirano medre, é na raiz deste protetor e não alhures que ele se entronca" . Quando começa a mudança do líder protetor do povo em tirano? Platão recorda a fábula do templo de Zeus Liceu. Esta última palavra designa o lobo. A fábula diz apenas: "aquele que provou entranhas humanas, cortadas em postas (...) é inevitavelmente transmudado em lobo" . Assim também, "quando o chefe do povo, seguro da obediência absoluta da multidão, não sabe abster-se do sangue dos homens de sua própria tribo (...) exila e mata acenando com a supressão das dívidas e uma nova partilha das terras" . (565 e - 566a)

Paro por aqui. O leitor terá interesse em seguir a exposição platônica sobre a gênese do tirano. Os traços essenciais foram dados. Homero põe na boca dos heróis frases sobre os reis, "devoradores de presentes" . Eles também seriam "devoradores de povos" . Um problema importante de quem deseja guardar a democracia, sem os defeitos que a desnaturam, seria vigiar os zangões das Assembléias. Mais importante é repelir os zangões auxiliares que zumbem alto e atacam os que, nas mesmas Assembléias, discordam do líder popular. Sem tal vigilância, chega-se ao instante em que o Líder prova sangue humano. E gosta. Aí é tarde para invocar leis, disciplina, respeito, amizade entre cidadãos. O lobisomem governante tem forças para devorar a todos. Quem tiver espírito atilado, perceba no presente brasileiro a moral da fábula sobre Zeus Liceu.

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