Violência brasileira
Roberto Romano
Impossível falar sobre a violência social colocando sua causa numa só origem. Há enorme gradação de motivos e de hierarquia no surgimento desta ou daquela forma do fenômeno. Entre as lutas pelo alimento do próprio corpo, o vestuário, o abrigo, e as mais sutís experiências anímicas como a educação, a ciência, artes e religiões, existe uma série histórica que orienta as prioridades quando nos referimos ao amplo setor antropológico designado vagamente como “violência” ( ).
Tomemos a quebra dos limites legais para garantir a vida, em situação injusta na distribuição das riquezas, o roubo para alimentar o próprio corpo ou o da prole. Evoco um texto de G.W. F. Hegel onde concentram-se faces diversas do violento modo humano de existir. Nas Lições sobre a Filosofia do Direito é discutida a propriedade, apresentando o filósofo elementos para a sua relativização. Nas mencionadas Lições ( ) o parágrafo 127, enuncia o seguinte: “Em caso de perigo supremo e nos conflitos que surgem a propósito da propriedade jurídica de outrem, a existência pessoal tem um direito de necessidade (Notrecht) que deve prevalecer. Não se trata apenas de direito”.
Hegel avança exemplos do direito a que se refere: a necessária imunidade a ser concedida ao devedor, a quem o credor, em tempos remotos, deveria deixar seus instrumentos de trabalho, roupas, casa, o necessário à sua manutenção. Em nota, o filósofo é ainda mais explícito. “Enquanto é conjunto de fins, a vida tem um direito contra o direito abstrato” (“Das Leben....hat ein Recht gegen das abstrakte Recht”). Semelhante tese causa espanto e provoca reflexões em nossos dias. Não se trata de caridade. Poucos pensadores são menos apegados à esmola do que Hegel. Seu desejo é que o Estado, um dia, se desenvolva de tal modo que reine a justiça, tornando impossível a existência dos desvalidos entregues à piedade pública ou religiosa. Ao integrar o sonho comum dos pensadores sociais durante o século 19, a doutrina hegeliana é tudo, menos sentimental. O direito de necessidade, por ele assumido, resulta de sua vista ampla do direito efetivo.
Vejamos como segue o parágrafo indicado acima: “Se o roubo de um pão pode prolongar a vida, é manifestamente um atentado à propriedade de um homem, mas seria injusto (unrecht) considerar esta ação como roubo comum. Se não fosse permitido ao homem, cuja vida é ameaçada, agir deste modo, nós o consideraríamos como um ser privado de direitos (rechtlos) e negaríamos sua liberdade recusando-lhe o direito de viver”. Adestrados pelo sentimentalismo de Holywood, fruto dos romances piegas do século 19, os bem nutridos sorriem diante de semelhante imagem. Mas basta abrir o jornal diário para saber que homens, mulheres, crianças são mortos em super-mercados brasileiros pelos “seguranças”, porque roubaram um pão ou bolo. Os saques às lojas, quando não recebem impulso demagógico, evidenciam o “direito da necessidade”. O sorriso diante do parágrafo hegeliano torna-se amarelo....
Contra esse estado de miséria muito tem sido feito entre nós. Campanhas contra a fome e em favor do emprego agitam consciências bem pensantes e pouco afeitas à justiça. Existem planos e mais planos governamentais para corrigir, num futuro mítico, tais descalabros. Voltemos ao texto hegeliano: “é no presente que precisamos viver, o futuro não é absoluto e está exposto às contingências. Por isto, só a necessidade do presente justifica uma ação contrária ao direito, pois, se nos abstivéssemos de praticar esta ação contrária ao direito, cometeríamos uma injustiça ainda mais grave, negando totalmente a existência da liberdade”.
O texto é claro como o sol. O direito de propriedade vai até onde começa o direito à sobrevivência física e espiritual. A propriedade não é absoluta. O texto acima atenua o pensamento hegeliano, devido à violência da censura que submetia os alemães de seu tempo. O suposto “teórico do Estado alemão” na verdade foi censurado (como Imanuel Kant e os entusiastas dos direitos humanos, frutos da Revolução Francesa) pelos funcionários governamentais. Como produto da censura oficial, o próprio Hegel, para evitar problemas, cortou trechos relevantes de suas obras. No pedaço sobre o “direito de necessidade” há uma passagem que só podemos ler hoje, nos manuscritos e nas edições críticas: “o homem que morre de fome tem o direito absoluto de violar a propriedade de um outro; ele viola a propriedade de um outro apenas em seu conteúdo limitado. No direito de necessidade extrema (Notrecht) entende-se que ele não viola os direitos de um outro enquanto direito: o interesse volta-se apenas para um pedaço de pão; ele não trata o outro como pessoa privada de direitos”. Assim, Hegel diz que o despossuído tem o direito de violar a propriedade, quando estiver na penúria. Isto foi apagado quando o filósofo publicou suas Lições. Quantos advogados, juízes, governantes ousariam, hoje, no Brasil, sentenciar neste sentido? ( )
Nem todos os pensadores refletem ao modo de Hegel, pelo contrário. John Locke, diz ser “perfeitamente legal, para um homem, matar um ladrão que não o tenha ferido nem um pouco, nem tenha declarado nenhuma intenção de lhe retirar a vida”. Eu não tenho nenhuma razão para não supor, diz ainda o filósofo inglês “que se ele pudesse me retirar a liberdade, ele retirar-me-ia tudo o mais, em seu poder. Logo, é perfeitamente legal, para mim, tratá-lo como se ele se tivesse colocado em estado de guerra contra mim, isto é, matá-lo se pudesse”. (Segundo Tratado sobre o Governo). Dessa tese Locke deduz a necessária guerra entre os homens “bons” —os proprietários— e os que nada possuem, por ele chamados de “bestas feras”. Quem trabalha, pensa Locke, sempre chega à propriedade. Só os indolentes não têm propriedade, não são homens em sentido pleno, por sua própria culpa. Donde se aponta o “direito” dos proprietários de usar sem peia alguma a força física para “educar” os que só possuem os braços, com o trabalho compulsório. A disciplina pode ser dada empregando-se penas corporais e a pena de morte.
Guardemos essa noção de um direito de vida e morte dos proprietários contra os despossuídos ( ). As certezas do escritor repercutem nas falas autoritárias da propaganda repressiva em nossos dias. Em São Paulo, o slogan da liberdade das “pessoas de bem”, os proprietários, na mídia dominada por certos políticos, espalha a imagem dos cidadãos pobres que delinqüiram como “bestas feras”. O assunto é abusado nos filmes policiais de tipo B da televisão. Películas que endeusam a SWAT norte americana apresentam invariavelmente os proprietários indefesos, a polícia sempre heróica e incompreendida pelos ingênuos ou maliciosos defensores dos direitos civis, os bandidos vilões que, após muitas covardias, morrem à bala “por acaso”. Tal happy end é prometido nas teses opostas aos direitos humanos. A técnica é a mesma dos regimes totalitários do século 20. Quem ameaça a boa ordem —dos sem terra aos sem teto, do judeu ao cristão, dos ciganos aos homossexuais— é “doença” a ser eliminada. Nos filmes nazistas os judeus eram comparados aos ratos que deveriam ser mortos para o bem da saúde alemã.
É preciso notar, desde agora, a duplicidade evidenciada na violência. Esta é espiritual e física. As duas são distintas, mas unem-se quando se trata de impor um modo coletivo de administrar as vidas e as mortes. Cito o importante livro de Maria Sylvia Carvalho Franco, Homens livres na Ordem Escravocrata.( ) Nele, a autora recolhe a violência costumeira e aparentemente gratuita (estudada a partir de análises de processos crime do século 19 brasileiro) que impera em nossa formação social. Até hoje, por motivos fúteis na superfície, milhares de mortes são cometidas em defesa da honra. A simples recusa de aceitar um copo de bebida num bar pode tolher a existência de um indivíduo. A autora segue deste fato amplo e aparentemente irracional, para a estrutura formada ao longo do século 19 na sociedade brasileira. Ela mostra que a violência em nossa terra não se deve a um suposto pré-capitalismo, ou a um ethos escravista nacional, mas surge de um modo particular na geração do lucro em larga escala, explorando-se mão-de obra como os mecanismos pessoais (que mobilizam valores como o da “honra”), nas relações, universalizadas em nossa sociedade, de compadrio e favor (o “privado”). Tais mecanismos de controle perpassam também as forças institucionais (o “público”).
Não é possível, segundo a autora, desvincular a violência aparentemente gratuita dos indivíduos dominados, da violência exercida pelos dominadores, o nível dirigente brasileiro. Proprietários violentos usam capangas para impor a sua lei particular, colocando-a acima da lei estatal. Para isto, eles reúnem os despossuídos formalmente livres, que assumem os alvos dos senhores, força incontrolada pela autoridade e lei públicas. Só que, adianta Carvalho Franco, naquele tipo de controle, sendo a mão de obra escassa, as relações de compadrio e favor, onde supostamente há igualdade entre proprietários e não proprietários (o patrão/padrinho e o dependente) servem para atenuar os abusos dos patrões sobre os seus “compadres”, pois ambos são unidos por um pacto tácito de “proteção mútua”. O fazendeiro paternalista mata o seu concorrente e rival fazendeiro, e manda destruir os que ameaçam sua fazenda, os sem propriedade territorial. Para isto, ele conta com a ajuda dos “compadres” pobres. Dificilmente ele manda matar os seus protegidos. Se isto ocorresse com freqüência, seria perdida a mão de obra e as almas sobre as quais domina.
Comentando o livro de Carvalho Franco, a professora Alba Zaluar, em trabalhos sobre a violência e o tráfico de drogas, diz que “os cientistas sociais que estudaram o fenômeno do coronelismo apontam os laços morais fortes entre o coronel e seus seguidores, especialmente os consagrados pelo compadrio. Os jagunços que formavam a sua guarda não o protegiam dos seguidores, mas dos seus rivais fazendeiros. É claro que isto não eliminava totalmente as relações de força e a violência, usadas sempre que um conflito interpessoal (frise-se aqui o pessoal) dividisse patrões e clientes, ou colocasse em campos opostos os homens livres da sociedade escravocrata (Carvalho Franco), mas a sua articulação com esses vínculos morais conformavam uma situação bem diferente da atual, onde a violência articula-se com os princípios do individualismo egoísta do mercado” ( )
Assim, Carvalho Franco teoriza um momento genético da violência brasileira no século 19. Desde o início, temos as dominações físicas e anímicas “privadas”, postas acima da lei estatal, o “público”. As relações de compadrio e favor, na produção animalesca do lucro, são formas hoje universais da vida particular brasileira, ampliadas ao plano político, definindo de modo muito forte o nosso Estado, sobretudo nos Parlamentos e nos Executivos. No século 19, a parca mão de obra obstaculizava o abuso da terrível dominação. O fazendeiro, por força da concorrência econômica e política, podia matar seus pares, os outros fazendeiros. Mas para a “sua” gente ele era um “pai”. Em nossos dias, afirma Zaluar, “na versão atualizada, o clientelismo brasileiro aproxima-se do empregado pelas máquinas políticas —o bossismo americano— que se valem do poder de compra do dinheiro (e não mais de laços éticos, como o compadrio) e cujo efeito corruptor é bem conhecido. “Por isso o 'chefe', 'o cabeça' o que 'está na frente' (termos todos usados pelos populares, para designar os chefes do tráfico de drogas) é tido como um patrão fársico, sem as qualidades morais atribuídas ao patrão no registro tradicional. Não tem autoridade nem induz ao respeito, mas consegue obediência através do medo pelo seu poder (ou o de perseguir seus desafetos uma vez eleito, no caso dos políticos, ou pelo poder de fogo de sua quadrilha, no caso dos empresários do crime). O seu caráter despótico é revelado pelos nomes usados para designá-lo: 'homem', porque os que a ele se submetem adquirem características do feminino; 'cabeça', porque, estando acima dos outros, é o único que pensa, age, e é portanto livre, os outros são seus meros escravos”. Nas relações políticas e sociais brasileiras, continua Zaluar, “por ter que se submeter a poderes não legitimados que usam e abusam da força, os homens tornam-se suscetíveis a qualquer provocação, interpretada como ameaça à sua honra e integridade masculina”.
A mesma futilidade de motivos que aparece no livro de Carvalho Franco sobre os homens livres no Brasil escravocrata, nota-se agora nos jovens pobres e de cor. “Pelos dados do Ministério da Saúde, no Município do Rio de Janeiro, em 1988, o número de mortes por causas externas (6008) ficava em terceiro lugar, só perdendo para as mortes por doenças do aparelho circulatório (19.482) e neoplasmas (6.323). (...) Na média geral brasileira, morrem quatro homens para cada mulher e, em alguns municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro, essa taxa diferenciada atinge o valor de 15 homens para cada mulher. A partir de 1987, os homicídios (intencionais ou dolosos) passaram à frente das mortes por acidente de trânsito (culposos) e hoje os supera em cerca de 30%, afetando principalmente os jovens pobres e de cor que estão deixando a escola”. É preciso ter presente que as mortes são de jovens, na sua maioria, adolescentes ou na verdade crianças, promessas calcinadas de vida. Termina Alba Zaluar: “Nos países em que a lei, em vez de impor limites ao dinheiro, deixa-se seduzir por ele, o acúmulo de riquezas e dos instrumentos de violência são fundamentais para capacitar as pessoas na resolução de conflitos. Pois, se a Justiça não funciona, as armas de fogo são extremamente eficazes para destruir desafetos e rivais, para dominar as vítimas, para amedrontar possíveis testemunhas e criar respeito entre comparsas e policiais, garantindo a impunidade”.
Em data recente, o governador da Paraíba deu um exemplo cabal do fato evocado pela antropóloga, evidenciando o comportamento “público” e a violência dos políticos. Para vingar sua honra, o governador entrou num restaurante e se dirigiu diretamente à mesa de seu adversário. Sem nenhuma preocupação com a lei e com a segurança dos presentes, deu um tiro na boca do antagonista. O princípio da honra também surge como traço definidor da masculinidade, nas lutas ocorridas entre os empregados das quadrilhas. Valor universal e abstrato que pode ser atribuído aos atos mais loucos, a honra faz com que indivíduos não hesitem em matar o semelhante. Os motivos mais determinados destas mortes são os que definem o lugar da pessoa na produção do lucro. A honra, temeridade na aceitação de riscos letais, determina a hierarquia do sujeito no bando. Unida à capacidade de liderança e à inteligência, honra garante a liderança e parte do botim. A questão da honra foi muito estudada em termos históricos, sociológicos e antropológicos. Ela ajuda a explicar sistemas aparentemente “irracionais” de vida social, como a violenta nobreza européia, particularmente a germânica, com o uso do duelo ( ).
Retome-se o início destas considerações, os enunciados sobre Hegel e o direito de propriedade, contra John Locke e os direitos absolutos dos proprietários. Segundo Locke, os direitos “naturais” só podem beneficiar quem trabalha, os donos legítimos do mundo. Quem ainda hoje usa semelhante enunciado, elude o fato seguinte : milhões e milhões trabalham e não têm propriedade. Alba Zaluar indica que no Brasil há importante contribuição do Estado para a violência, desde o final do Império, com a república. “O novo governo queria marcar uma revolução moral no país por meio da separação rígida entre trabalho regular e penoso, pai de todas as virtudes, e o ócio, mãe de todos os vícios. Os republicanos jacobinos, que desejavam dar uma feição moralista e repressiva ao trabalho, foram os principais mentores desta política que resultou na repressão às formas de expressão cultural dos brasileiros negros e mulatos, assim como na detenção dos classificados como vadios e desordeiros. Nos cálculos de Boris Fausto, os números de detidos desta forma correspondiam a 86% de todas as prisões entre 1912 e 1916. Os que haviam cometido crimes, assim definidos no Código Penal, eram cerca de 14% deste todo. E o que é mais importante, enquanto os brasileiros (em geral negros e mulatos) eram tachados logo de vadios, os estrangeiros continuavam sendo considerados bons trabalhadores e iam presos por desordem”.
O Estado, ao longo da história republicana no Brasil, serve como excelente produtor de “bandidos”, os “vadios”, os quais, como por acaso, são na maioria negros ou mulatos. Produzindo marginalizados ao proclamar normas contra a vadiagem, sem investir em educação e em políticas sociais conseqüentes, o poder civil canaliza, para os chefes da droga, mão de obra abundante e barata. De modo oposto ao dos fazendeiros do século 19, tanto os empresários da droga quanto os da economia formal possuem incontáveis braços sem qualificações educacionais ou técnicas. As massas servem para serem exploradas intensamente num instante e depois são moídas por matadores profissionais ou por setores da polícia. A indução sistemática, por parte da mídia, produz o resto. Os linchamentos são cada vez mais freqüentes no país.
René Girard, em A violência e o Sagrado ( ) mostra que a instituição do Judiciário — seguindo a doutrina de Monstequieu — afasta a violência sacrificial primitiva, impondo a possivel sobrevivência dos indivíduos na sociedade. No Brasil, a experiência pública é tudo menos justa e civil. O Estado brasileiro é conivente com os empresários corrompidos que só agem em função do lucro absoluto. Ele também é, por meios de políticos lenientes, uma espécie de sócio de contraventores e traficantes. Basta olhar a tranquilidade exibida por deputados, administradores e outros“responsáveis” pela coisa pública, nos camarotes carnavalescos dos que mantêm o tráfico de drogas, o jogo do bicho, e outros ramos de negócio ilícitos.
Sem investimento sério em educação, saúde, segurança, o nosso Estado é apenas certa máquina que amplia a violência. Não admira que as ruas do Brasil sejam trincheiras, os passeios praças de guerra, as instituições abrigos de líderes do crime. As várias Comissões Parlamentares de Inquérito, não investigam o nexo entre corruptos e corruptores e apenas roçam de leve os problemas da violência. Se a política é arte de fazer com que os homens vivam em paz numa república, como o queria Hobbes, nossa política ainda está para ser feita. No Brasil, no espaço cinzento que vai do privado ao público, há o costume de tomar como corriqueira a contratação de guardas para as residências ricas ou de classe média. Se for preciso (e quem julga sobre esta necessidade?) os “seguranças” têm ordem para matar para manter a propriedade. Também os fazendeiros julgavam e julgam normal contratar capangas e milícias para suas fazendas e, “se for preciso”, ordenam a morte de cidadãos. Se arrasta na Justiça o processo dos fiscais trabalhistas, assassinados por ordem de fazendeiros que usavam trabalho escravo.
Nossa vida estatal se caracteriza pela excessiva centralização do poder no Executivo. Este usa de modo quase privativo os monopólios que deveriam constituir a característica do Estado no seu todo. Somos uma Federação regida pelo Governo Federal. Os municípios e os Estados são entidades dependentes do que se passa no poder nuclear nacional. O Executivo Federal abusa da uniformização jurídica. Entre nós, as normas legais são ideadas e impostas ao todo do país, sem respeito pelas particularidades regionais, Estados e municípios. Todo esse processo segue, com lógica férrea, até às últimas conseqüências. A centralização desemboca não só no monopólio do público pelo Executivo. Dentro deste último, ela se concentra nas chamadas “áreas econômicas”. Os seus ocupantes não foram eleitos, nem o serão. Trata-se de um exercício irresponsável como o do rei absoluto. Um gabinete do Banco Central concentra maior poder do que todo o Parlamento e, não raro, do que todos os Tribunais. Os planos econômicos, aplicados na calada da noite e preparados por “técnicos”, fazem um verdadeiro confisco, constituem golpes de Estado, sem que ninguém possa impedi-los, sem que os cidadãos tenham condições de recusá-los. Impostos como a CPMF são produzidos, desviados de sua finalizade propalada, e nenhuma autoridade responsável pode reverter esta situação.
A política nacional não é federativa, não é democrática, não recolhe a iniciativa de todo o Estado, mas tem a hegemonia do Executivo e, dentro dele, da área econômica, que decide com raciocínio tacanho a maior parte dos negócios públicos, como a educação, a saúde, a C/T, etc. Os gabinetes ministeriais são apenas servos sob comando dos grupos financeiros. A chamada “área econômica” racionaliza as finanças do país para guardar os contratos deste último com organismos internacionais. Com este alvo posto como absoluto, as políticas públicas são atingidas na raiz. Professores, médicos, policiais, todos são pagos de modo irrealista, se os alvos fossem oferecer educação, saúde, segurança à população. Como pode um professor que leciona em várias escolas, dedicar-se à formação da mente e da alma ética de seus alunos, com um salário não raro menor do que o de uma empregada doméstica? Como pode um médico dedicar-se à saúde de seus clientes públicos, se para sobreviver precisa trabalhar em vários empregos ? Como pode um policial garantir a integridade física e anímica dos cidadãos, e ele mesmo habita um barraco de favela, mora ao lado de criminosos que podem a qualquer instante destruir sua família e o seu próprio corpo? Que tranqüilidade de alma um agente da polícia pode usufruir, quando é obrigado a trabalhar no tempo que deveria ser dedicado ao descanso, nos “bicos” onde sua vida é ainda mais posta em perigo? Como pode um corpo policial efetivar bem suas tarefas, quando a sua formação acadêmica é quase nula, e se o cotidiano das delegacias exibe ausências dos instrumentos elementares de busca, identificação, etc. proporcionados pela sociedade informatizada? Pedir um boletim de ocorrência no Brasil, salvo em raras exceções, ou penetrar nos umbrais de um hospital público, acompanhar uma aula nas escolas destinadas aos jovens pobres, é perceber o criminoso desinteresse das autoridades econômicas do Brasil pela sociedade.
Em data recente, perguntado por um jornalista sobre a responsabilidade pela violência que atravessa a vida social, respondi-lhe que os cidadãos devem, sempre que tiverem um parente morto por bandidos, dirigir suas reclamações e protestos aos gabinetes dos setores financeiros, nos poder executivo, nacional e dos Estados. Enquanto o comando da polícia e os secretários de segurança lutam para manter seus funcionários e soldados em condições mínimas, na situação acima mencionada, os economistas da Fazenda e do Planejamento só conhecem uma operação mágica: cortar os gastos públicos. Razão para que eles respondam pelas mortes de civis, pelos ferimentos impostos aos professores e pelos suicídios de policiais militares, desesperançados de receber o mínimo digno para bem exercerem a autoridade que lhes é imposta. Outro segmento a ser cobrado, e fortemente, é o da midia, em especial a televisiva.
Permitam-me introduzir as minhas críticas com a citação de um homem santo. No quinto exercício espiritual, previsto para a primeira semana de retiro, Santo Inácio de Loyola (1492-1556), o pai dos jesuítas, diz o seguinte: “com os olhos da imaginação, veja-se o comprimento, a largura e a profundeza do inferno... (ouça-se) os choros, os urros, os gritos, as blasfêmias... (cheire-se) a fumaça, o enxofre, e as coisas em estado de putrefação... (experimente-se com o paladar) as lágrimas, a tristeza, o verme da consciência... (toque-se) as lavas de fogo que envolvem as almas e que as queimam”. Tais frases, citadas por G. Hocke, esteta do século 20, fazem-nos refletir. Quem leu o romance de James Joyce, Retrato do artista quando jovem, recorda o pavor do estudante com os cálculos para saber quantas almas cabem no fogo eterno. Aquelas visões foram realizadas, em tempo próximo ao do romance, nos campos nazistas,onde o inferno abriu a garganta e devorou milhões de seres humanos. Na porta daqueles espaços, a ordem moralista : “O trabalho liberta”. Elias Canetti, conhecedor do submundo totalitário, disse certa feita que a invenção mais tremenda dos homens é a do inferno. Depois que ele foi produzido na imaginação, todos os tormentos seriam previsíveis. Professores são atingidos pela violência física, além da que sofrem pelo descaso das autoridades. Cito o artigo de Clovis Rossi: “O caso de Aparecida Maria dos Santos Vecchi, baleada em plena aula por um de seus alunos, pode ser o mais violento e talvez o mais emblemático, mas é a ponta de um terrível iceberg (...) ilude-se quem imagina que a violência esteja confinada às escolas públicas. Trata-se de fenômeno disseminado, que não poupa algumas das mais reluzentes grifes do ensino privado. Pode até ser mais grave em algumas delas, aliás. Como o salário do professor beira o ridículo, abriu-se uma brecha enorme entre o poder aquisitivo do aluno de certas escolas particulares e o de seus professores. Conseqüência inevitável: a fatia da classe média que se comporta com a empáfia e os modos de senhores de engenho passou a tratar seus professores como trata suas empregadas domésticas”. (Folha de São Paulo, 05/09/2001, p. A.2.)
Santo Inácio manda que os cinco sentidos sejam postos em uso, possibilitando o pandemônio na consciência. Não bastam os olhos, são requisitados o gosto, o tato, o olfato. Todo o corpo transforma-se em fábrica diabólica. Estamos longe, em termos de tecnologia, de alcançar a perfeição de um aparelho que sintetize os cinco sentidos. Mas a midia se esforça para trazer, apenas com a vista e as orelhas, o inferno à nossa casa, ao nosso corpo, aos nossos corações e mentes. Um exemplo? Enquanto 400 juízes da Associação dos Juízes Federais (AJUFE) se reuniam em Campos do Jordão, em seu 18o Encontro Nacional, a mídia dedicou-se ao espetáculo do seqüestro de Silvio Santos. Todos os eventos políticos foram esquecidos. A TV entrevistou o ministro Costa Leite, do STJ, um dos homens públicos lúcidos do país, no âmbito do Encontro dos juízes, cortando o sentido de suas denúncias sobre o menosprezo dos políticos face às dificuldades do Judiciário. Segundo o recorte feito na sua entrevista, ele estaria referindo-se ao espetáculo do seqüestro. Também foi apresentado um trecho da fala de Pedro Malan no mesmo Encontro dos juízes. O Ministro da Fazenda tentava defender o indefensável diante dos magistrados, qual seja, a precarização da justiça e da segurança no governo FHC. Tanto os pronunciamentos de Malan e de Costa Leite foram “editados”, de modo que milhões de telespectadores ficaram ignorando o lugar em que eles falavam, o sentido de suas frases, e o próprio Encontro dos juízes, cujo tema principal, note-se, foi “Justiça para todos”. A televisão brasileira fez como os policiais e tiranos soviéticos, que recortavam fotografias e filmes antigos, para arrancar da cena os adversários do regime. O mais grave do recorte televisivo é que na busca do lucro, as firmas da mídia calaram as tentativas de solução para o problema que lhes servia de pasto: os juízes estudavam como aprimorar a justiça e a segurança. Mas isto não é “notícia”. Ainda não inventaram uma TV com sabores, gosto, cheiro. Mas Santo Inácio poderia propor esta forma de imprensa como auxiliar na tarefa de produzir o inferno. O cheiro e o gosto, se eles chegassem ao público, seriam o da podridão, essencial nos excrementos da alma. Na televisão, a violência pública e a particular se unem, em detrimento
do saber social. É por estes motivos que a análise da violência, como disse no início, não pode prender-se a uma ou duas causas, mas a múltiplas. Quando se trata de seres que vivem no tempo e do espaço finitos, não podemos falar em bem ou mal absolutos, mas numa forte mistura de ambos os elementos. A partir daí, só resta retomar Riobaldo : “viver é muito perigoso”.
Roberto Romano Moral e Ciência. A monstruosidade no sec. XVIII
Silence et Bruit. Roberto Romano
domingo, março 04, 2007
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- ENTAO TA, AGORA CONTA OUTRA....
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março
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