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Filosofia e adulação
Roberto Romano
“A inteligência não possibilita nenhuma livre docência.” A frase é de Walter Benjamin, filós ofo importante do século 20 cujo suicídio mostra as aporias do pensamento diante dos governos. Os pensadores, à semelhança de Cristo, sentem desde longa data a tentação do poder. Mas, ao contrário do paradigma ético inscrito no Evangelho de Lucas (“E o diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe, num momento de tempo, todos os reinos do mundo. E disse-lhe o diabo: Dar-te-ei a ti todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue, e dou-o a quem quero. Portanto, se tu me adorares, tudo será teu. E Jesus, respondendo, disse-lhe: Vai-te, Satanás, porque está escrito: Adorarás o Senhor, teu Deus, e só a ele servirás.”), a resposta, quase sempre, é um esplendoroso “sim” aos donos do mundo.
Platão, após o desastre dos tiranos atenienses, pensou que um governo dirigido por ele, em Siracusa, seria viável e melhor do que o exercido por Dionisio. E para lá se foi, na esperança de controlar finalmente os homens reais. Ledo engano! Quase deixou a vida física nas mãos do poderoso autoritário. Seneca, o moralista e professor de Nero, tem muito a dizer sobre o conúbio entre filosofia e palácios. No século 18, Voltaire foi preso pelo amigo, o rei Frederico, por imaginar que falava com o monarca em igualdade de condições. Os filósofos que ajudaram os ditadores do século 19 e 20 mostraram que entre a verdade e a espinha dobrada, eles preferiram a segunda.
Schopenhauer estigmatiza os docentes da filosofia universitária que acostumaram os leitores a “tomar os mais vazios jogos de palavras por filosofia, os mais pobres sofismas por pensamentos engenhosos e as mais insossas extravagâncias por dialética”. O Estado patrocina uma filosofia industrial que “nutre como qualquer outra”. Os professores “se agrupam solícitos ao redor dos poderosos, proclamam boas intenções, ou seja, dizem estar dispostos a executar todo tipo de complacência para com eles”.
No Brasil, a filosofia acadêmica começa novamente a se ajoelhar diante dos poderes. Tal tendência surge com vigor inaudito. Um filósofo louva na grande imprensa os triunfos do lulismo e transforma o presidente em admirável César: amigo do povo cuja legitimidade vem das pesquisas de opinião. Outro, ensaia rapapés ao Planalto, afirmando inclusive que seu sucesso vem da preservação irrestrita do Estado de direito. Nenhum deles nota o projeto do Executivo, de censura à imprensa, cujos efeitos serão mais desastrosos do que os serviços dos extintos DIP e SNI. Em vez de punir arapongas arbitrários, o governo decide (pela enésima vez) que a mordaça é o melhor instrumento.
O enterro da crítica mostra a que ponto chegamos, na marcha da bajulação. A coisa está complicada e seria de bom alvitre deixarmos, imediatamente, de parolar sobre ética e coisas afins, para instituir cursos públicos e privados de adulação filosófica. Imagino as ementas do referido ensino: “o aluno aprenderá a louvar qualidades inexistentes dos governantes e dos ricos, de maneira plausível e, portanto, eficaz. A disciplina abrangerá estágios cujos títulos serão: brownosing I, II, III, e neles os alunos aprenderão a bem usar o nariz, aplicando-o às partes secretas dos poderosos. Como aperfeiçoamento, o estudante aprenderá a mímica admirativa diante dos governantes”. A bibliografia pode ser nutrida pelos tratados de Plutarco, sobretudo o “Como distinguir o amigo do adulador”.
Com o panorama dos últimos tempos, e com o que se testemunha em parcelas das elites intelectuais, cujo bico sedento se abre para as verbas dos governos e conspurca o verbo que deveria manter fidedigno, só podemos anuir com o diagnóstico melancólico de Eric Voegelin (Hitler e os alemães ): “Estupidez, ignorância, preguiça, inércia, decadência de diferentes tipos (...) são forças eminentemente importantes no processo social”. É difícil manter o espírito alerta quando surgem tantas oportunidades de suicídio intelectual rendoso, tanto em finanças quanto em poder. Tristes Trópicos.