São Paulo, sábado, 06 de setembro de 2008 |
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Texto Anterior | Próximo Texto | Índice TENDÊNCIAS/DEBATES Você se sente vivendo num Estado policial? SIM ROBERTO ROMANO "O QUE você acha da situação política? Nada, porque tenho um primo que achava e até hoje não o acharam!". A infeliz anedota, que ouvi na cela do presídio Tiradentes, quando ali estive detido por mais de um ano sob a ditadura, permite captar o pavor que aniquila a fé pública no Brasil. O jogo de sentidos sobre o ato de achar revela o perigo: quem se imagina livre num regime de força cedo ou tarde é "achado" por delação ou escutas telefônicas. Esperança e medo movem toda vida estatal, mas, com o arbítrio, o medo anula o diálogo, base do Estado digno de respeito. O segredo, nos coletivos que atenuam a fé pública, impede a segurança das pessoas. Quanto mais costumeiras as espionagens sigilosas, menos domínio tem o "homem comum" de sua vida e consciência. O poder sem regras estupra a lei e paralisa todos os setores sociais ou de mercado. As revoluções inglesa, norte-americana e francesa dos séculos 17 e 18 exigiram a responsabilização dos governantes e respeito à ordem privada. Mas logo espiões de Cromwell e de Robespierre deturparam as novas formas democráticas. O medo favoreceu o retorno das tiranias dirigidas ao controle da sociedade civil. A lógica da espionagem estatal é descrita pelo inimigo do liberalismo, o conservador Donoso Cortés no "Discurso sobre a Ditadura" (1849). O poder de Estado usurpa a onisciência divina, além da onipotência: "Não bastou aos governos 1 milhão de braços, não lhes bastou 1 milhão de olhos. Eles quiseram 1 milhão de ouvidos, e os tiveram com a centralização administrativa, pela qual vieram parar no governo todas as reclamações e queixas. (...) Mas os governos disseram: não me bastam, para reprimir, 1 milhão de braços; não me bastam, para reprimir, 1 milhão de olhos; não me bastam, para reprimir, 1 milhão de ouvidos; precisamos ter o privilégio de nos encontrar ao mesmo tempo em todas as partes. E tiveram isso, pois se inventou o telégrafo". O texto é do século 19. Depois apareceram o telefone, a internet e todos os mecanismos manipulados por agentes clandestinos.A cultura da bisbilhotice oficiosa, portanto, não é recente e se enraíza nas camadas profundas da sociedade. E, naquele inferno da consciência, ela aborta qualquer democracia liberal. Quando recordo o período autoritário e reflito sobre os nossos órgãos secretos, sinto medo. Sei o que se esconde em serviços oficiais que podem invadir nossos corpos e pensamentos, sem defesa possível. E me preocupa ouvir o ministro da Justiça parolar sobre a fatalidade das escutas clandestinas. Não estou isolado ao me perceber numa imensa jaula, quando deveria habitar um país livre. Quem, hoje, nos ministérios, nas universidades, nas igrejas, nas Forças Armadas e na própria polícia está livre de controle subversivo e predatório, com as inevitáveis grazinas que erodem a segurança do Estado? Foi por senda idêntica que Gestapo e KGB dominaram os oficiais militares em proveito de partidos e grupos ilegais. Na URSS, da espionagem estatal falida brotaram máfias de todos os tipos que atormentam a Rússia. Um órgão jungido aos poderes públicos invade gabinetes oficiais. Mas, para chegar até aquele espaço, seu escudo é a lei 9.883/99 (Abin) e o decreto 3.448/00, que facultam "identificar, acompanhar e avaliar ameaças reais ou potenciais, além de promover a coleta, busca e análise de dados e de produzir conhecimentos que subsidiem decisões na esfera de inteligência dos governos federal, estadual e municipal". Tais premissas garantem a usurpação da ordem soberana, com auxílio de alguns magistrados. Lúcido Norberto Bobbio, para quem todo poder oculto "não transforma a democracia, mas a perverte. Não a golpeia mais ou menos gravemente em um de seus órgãos vitais, mas a trucida". Sempre que, graças à coragem da imprensa, percebo as estrepolias dos arapongas, recordo os versos de Rimbaud: "Eis o tempo dos assassinos".Se não matam os corpos com a facilidade de antigamente, eles aniquilam a esperança. O Brasil, com auxílio do segredo e da corrupção endêmica, é imenso e melancólico sepulcro do sonho democrático. ROBERTO ROMANO , 62, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor de, entre outras obras, "Moral e Ciência - A Monstruosidade no Século XVIII". |