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quarta-feira, outubro 31, 2007

Golpes de Estado


Publicada em 31/10/2007

Roberto Romano

Naudé e os golpes de Estado


Quando surgiram as faltas éticas dos partidos que apóiam o atual governo brasileiro, os áulicos cantarolaram o refrão desonesto: “golpe de Estado”. O tema virou dogma na língua palaciana, mas sem que os falantes parassem para pensar. Agora se articula um golpe efetivo contra a democracia, mas apologetas do poder guardam silêncio cúmplice. Seguem reflexões sobre a teoria do golpe de Estado, só para os militantes honestos. Quanto aos demais, pouco importa o conceito, pois sua língua viperina aprendeu a espalhar veneno com slogans, nada mais.

No século 20 ocorreram inúmeros golpes de Estado, produzidos pelo motivos mais diversos em termos ideológicos, religiosos, políticos. Uma parte considerável daqueles atos tinha coreografia definida: na madrugada soldados dirigiam tanques de guerra e tomavam as ruas das capitais. Estações de rádio e televisão transmitiam informes do governo ameaçado. Pouco a pouco, às vezes com rapidez, o legalismo silencia e surgem proclamações rebeldes. Música patriótica compõe o apelo emocional ao povo. Caídos os dirigentes antigos, os novos, não raro uma junta, interrompem os direitos civis, sempre para limpar a pátria de toda corrupção, afastar os inimigos comunistas, imperialistas norte-americanos, ou algo assim. Longos anos de arbítrio deixam irresolvidos os problemas apontados como origem do golpe. Novo levante militar, piora a situação coletiva. Poucos países saíram desta roda sombria aptos para a democracia e puderam confiar em técnicas políticas ou jurídicas aptas a produzir um Estado onde se permita o convívio entre diferentes opiniões no mesmo espaço social.

O modelo militarista deixa na sombra que o golpe de Estado é algo mais amplo, mais profundo, mais sutil do que a intervenção das casernas. Um golpe pode ser incruento e não suspender todos os direitos civis. Ele também pode não destruir as determinações abstratas do direito na vida política. Caso se efetivem mudanças micrológicas na ordem legal e de governo e feito pequeno acréscimo ou subtração nas leis, o seu efeito é tão desastroso para a democracia quanto um intervento armado. Somadas, as microintervenções geram rupturas no direito público e privado, o que instala o medo e a desconfiança geral frente às instituições.

São inúmeras as teorias sobre os golpes de Estado. Em Gabriel Naudé encontra-se o esboço ideal dos golpes modernos, atuais, futuros. Por serem uma leitura inventiva de Maquiavel, as Considerações Políticas sobre os Golpes de Estado (1639) ordenam um modelo a ser observado, discutido, aprendido e, sobretudo, temido nas terras que se pretendem democráticas. Naudé segue Maquiavel e afirma ser preciso “abolir toda idéia de direitos que não sejam os do chefe” ou “tornar a política autônoma diante da moral, soberana diante da religião”. Escolhido em 1642 por Richelieu, logo após a morte do estadista, Naudé passou ao serviço de Mazarino. Saúde delicada, ele morre com 53 anos.

Naudé assume a razão de Estado. Para ele, "a consideração do bem e da utilidades públicos vem antes da utilidade particular”. Tal “interesse público” surge no seu elogio da Noite de São Bartolomeu (1572). Aquela seria “uma ação muito justa e notável, cuja causa era mais do que legítima, embora seus efeitos tenham sido muito perigosos e extraordinários”. Assim, “os téologos não são menos religiosos porque sabem em que consistem as heresias; nem os médicos menos honestos porque sabem a força e a composição de todos os venenos (…) por que seria proibido a um grande político saber levantar ou rebaixar, produzir ou prender, condenar ou absolver, fazer viver ou morrer para o bem e repouso do Estado?”. Falar de política, afirma Naudé, sem discutir o golpe de Estado é não possuir informações necessárias. Para provar a necessidade de refletir sobre o problema, ele cita Tomás de Aquino. “Não é preciso”, afirma Aquino, “que um tirano, para se manter na tirania, pareça cruel aos subordinados, pois se fosse assim ele se tornaria odioso, o que os pode facilmente levantar contra ele. Mas ele deve parecer venerável pela excelência de alguma virtude, pois é devida toda sorte de respeito à virtude; e se ele não possui tal qualidade excelente, deve fingir que a possui”. Comenta Naudé: “Eis preceitos estranhos na boca de um Santo, que não diferem em nada dos emitidos por Maquiavel”. Mas a seguir ele adianta que os preceitos são dados por Aquino para que os governados se precavenham contra quem age de acordo com eles.

Simulando virtudes o tirano modifica micrologicamente as leis, adequando-as aos seus interesses privados, contra a ordem pública. Se não for este o modus operandi de boa parte do atual governo, na pretensa república brasileira, peço aos apologetas a prova de que desobedecem a teoria de Naudé. Se não a tiverem, parem de falar em golpes da mídia ou das elites, pois estes são usados para dissimular o golpe urdido nos gabinetes, alguns da “oposição”. Falo do terceiro mandato para Luis Inácio da Silva. Se os parlamentares apóiam tal golpe, que reivindiquem, depois das negociatas políticas, o mandato vitalício para o presidente.

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