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quarta-feira, março 21, 2007

Correio Popular de Campinas.

Publicada em 21/3/2007

Ética e medicina, alguns problemas

Roberto Romano

Uma coincidência entre filósofos e médicos situa-se na bioética, campo ainda recente se considerarmos os milênios da cultura ocidental. Sempre que sou convidado a falar aos médicos, sinto-me tangido a suprir lacunas de informação sobre o discurso filosófico. Apresento, então, pontos de contacto entre as duas constelações, a dos herdeiros de Platão e a sucessora de Hipócrates. É impossível imaginar a filosofia sem os saberes médicos. Ao percorrer os textos platônicos e aristotélicos, percebemos o quanto a especulação filosófica desenvolve temas originariamente médicos, da epistemologia à ética. Basta seguir a sequência das doenças indicadas por Platão nos diálogos. “Saúde” indica o plano intelectual e o ético (exemplo entre muitos, República, 372 e). A doença também designa fatos políticos, jurídicos, econômicos (Político, 283 b, os textos são inúmeros). O filósofo usa nomes de muitas doenças (síncope, inchaço, asma) como termo de comparação.

Palavras como “constituição” e “regime” ligam-se às doutrinas médicas. Termos políticos também são utilizados para designar doenças, como nas noções de monarquia em Alcmeon de Crotona. Segundo Aécio, Alcmeon pensava a saúde como equilíbrio das forças, como o úmido e o seco, o frio e o quente, o amargo e o doce. Quando surge o predomínio (monarquia) de um elemento, vem a doença e, quando duas daqueles forças predominam, trazem a morte. A saúde é a situação na qual os contrários se equilibram. A doença não resulta do conflito entre poderes antagônicos no corpo humanao, mas da hegemonia de um poder que destrói a igualdade entre as forças que nos regem (Marie Gaille-Nikodimov: “A la recherche d’une definition des institutions de liberté, in Astérion, revista de filosofia, história das idéias, pensamento político). Nikodimov discute hipóteses recentes sobre Maquiavel, para entender o Florentino como ligado às noções de humor dos médicos gregos. Ao seguir os avatares da medicina, sempre há um ponto de encontro com a filosofia política e a ética.

Mas é penoso buscar textos clássicos de filosofia que permitam o diálogo com os que, entre médicos, visam à bioética. Algo auspicioso foi impresso em livro, obviando as dificuldades apontadas. Refiro-me à coletânea editada por M. G. Kuczewski e R. Polansky, cujo título é um programa: Bioethics, ancient themes in contemporary issues (Cambridge, The MIT Press, 2000). No volume existem artigos sobre os núcleos das éticas médicas na Grécia antiga que discutem temas atuais, como o escrito intitulado “É a medicina uma arte ou sabedoria prática?”), análises sobre sofistas como Trasímaco e médicos, sobretudo os hipocráticos etc.

A coletânea auxilia os médicos que desejam analisar os óbices éticos da profissão, a partir dos fundamentos culturais. Ela ajuda os estudiosos da filosofia que inspecionam o seu próprio afazer, inserido nos demais campos noético. Pequeno parêntesis: incluo-me entre os que julgam equivocada a localização da filosofia entre as ciências humanas. Ela tem laços com todas as ciências, em especial as matemáticas, a biologia, a física. O nexos com a medicina são os mais antigos do campo filosófico.

No mundo moderno e no Brasil, como fruto da linguagem médica empregada pela política, problemas sociais foram nomeados com termos inaceitáveis quando se pensa democraticamente. Inflação monetária, improbidade dos políticos, criminalidade etc. são chamadas, sem precauções com o termo genérico de “câncer”. Indivíduos inconformados com as desigualdades sociais são atacados com o nome de enfermidades. A inépcia da comparação deixa intocada a sua virulência. Se do adversário se enuncia que ele traz a doença para o corpo social, ele será excluído do organismo político. O silogismo maldito se apresentou nas tiranias modernas, da Alemanha à URSS, desta ao regime de Franco e de Salazar, às ditaduras sul-americanas. Os elos entre política e medicina precisam ser melhor definidos, em proveito da ética democrática. Caso oposto, cedo ou tarde, caro leitor, você e seus filhos serão amputados desta infeliz república.

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