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sexta-feira, março 23, 2007

Os palpiteiros da filosofia



Agora que Maria Sylvia deixou a coluna da página 02, da Folha, indo para as páginas do Mais (é como sair de um sitiozinho,
2 650 caracteres com espaço, para 5000 caracteres com espaço...) acho interessante colocar diante dos leitores o que disseram dela alguns iluminados da esquerda ou direita (ambos furiosos pelo fato da colunista não aceitar viseiras). Nos artigos abaixo, o primeiro de Maria Sylvia e o segundo de Toni Negri ( que adora dar conselhos aos botocudos brasileiros) o leitor cultivado pode notar a torsão de má fé operada por Negri e seu auxiliar, no texto da primeira.

Do contexto [o capital financeiro que se torna o Alfa e Omega da vida econômica] Negri e seu auxiliar deduzem um elogio à China...vá ser "científico" assim na China! Mas deixo os textos para leitura e comparação. Só digo que é deste jeito [torcendo ou cortando significados] que os bravos seguidores e ideólogos das Brigadas Vermelhas fizeram um belo trabalho na Itália. Não contentes, ampliaram suas "obras" para o Brasil. Aqui vieram e obraram...

NB: esta nota é de inteira responsabilidade minha. Maria Sylvia não tem nenhuma culpa neste cartório. Eu as reinvindico com muito prazer,

Roberto Romano

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MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO

Tempo e poder

AS FIGURAS do tempo efêmero e fatídico são a antítese de seu controle político, que visa eternizar-se. O moderno domínio dessa esfera pelo homem implica concebê-la como interiorizada e produtiva. Tal apropriação só é possível porque se desentranha, entre prática humana e temporalidade, uma exata medida comum, mediante a qual é possível nelas introduzir o cálculo e conjugá-las. Dividem-se as horas, dividem-se os afazeres, articulam-se as duas séries.
Nessas operações, importa notar que a segmentação do fluxo temporal determina-se em atos do pensamento. O tempo concebido como um "continuum" potencialmente divisível ao infinito, em instantes escandidos mediante operações inteligíveis, ajusta-se ao ideário expresso no Della Famiglia, de J.B.

Alberti, artista e teórico seminal da cultura moderna, leitor de Aristóteles como os personagens de seu diálogo. Aristóteles, justamente, soluciona a dificuldade da divisão efetiva do tempo, que o anularia, passando para sua potencialidade, convertendo-a em operação noética. (V. Goldschmidt). Igual estrutura do tempo subjaz às tentativas contemporâneas de planejar a vida social e econômica.

O próprio homem é concebido, no capitalismo, como tempo: não é o trabalho, por si, que produz valor, mas o tempo de trabalho (fixado no curso histórico), cuja duração completa (por ex., um dia) é divisível em necessário (à subsistência do trabalhador) e excedente (que acresce o capital). Todo o movimento do sistema se determina no tempo divisível em seus circuitos: quanto maior a duração do capital no processo produtivo, fonte do valor, maior sua ampliação; quanto mais os circuitos da circulação (que se estende para rendas e juros) demoram a fechar-se, menor a expansão possível. Se assim é, a promessa de crescimento, num sistema que empenha o futuro, preso ao capital financeiro inflado e anômalo, prisioneiro da liquidez internacional, cujos ganhos inibem ou expulsam os investimentos produtivos nacionais, não passam de má retórica, propaganda.

Fala-se em "acelerar o tempo". Qual tempo? O da produção? Como seria isso possível se "o mercado" é o fetiche que se cultua -árbitro que pune ou recompensa, potência autônoma que "honra" seus atos- no delirante discurso sobre o dinheiro sem mediação com os processos reais, sem nexos aparentes com o movimento conjunto do capital? Mas sua remuneração não brota do nada, sai da riqueza produzida, oferecida à devoração, sem retorno para renovar-se. Nenhum pensamento vive de tagarelice: a mudança socioeconômica pressupõe uma base reflexiva criando saber tecnológico, independência econômica, liberdade política e autonomia ética em nosso "povo soberano".

Folha de São Paulo

Assunto: Opinião
Título: A Miséria do pensamento binário/Opinião
Data: 02/03/2007


Antonio Negri e Giuseppe Cocco

A GUERRA do Iraque mostra o que se esconde por trás da retórica imperial da "defesa" da democracia: a efetividade de um poder sem legitimidade. Ora, as elites latino-americanas repetem o discurso da administração Bush: Hugo Chávez representaria uma ameaça às "tranqüilas democracias" do continente.

Quando o ditador Pinochet faleceu, um economista neoliberal explicitou o cinismo desse tipo de pensamento: "A tese de Giannetti da Fonseca é que os países que optaram por fazer a reforma econômica antes da política, como foi o caso do Chile, obtiveram resultados melhores (...). Para o economista, a China, por exemplo, está seguindo os passos do Chile ao promover a transição primeiro na economia" (Folha, 12/12/06).

Quando se trata da Venezuela, ou seja, de um presidente várias vezes eleito e radical e democraticamente arrancado das mãos dos golpistas pela multidão, é preciso "cobrar democracia". Quando se trata da China, é preciso imitar seu modelo de crescimento. O problema é que esse objetivo coloca no mesmo barco (nacional-desenvolvimentista) amplos setores da direita e da "esquerda".

Por que direita e esquerda se misturam? Uma das razões está no fato de a "esquerda" continuar a pensar a partir de conceitos binários. À pergunta "O que é a globalização?" responde-se: "O enfrentamento (...) do mercado contra o Estado, do setor privado contra os serviços públicos, do indivíduo contra a coletividade". Ora, desde os anos 30 sabemos que o processo de individualização é só a outra face da construção do coletivismo. As massas -sejam elas voltadas para a produção de massa, sejam para o consumo de massa- são compostas de indivíduos serializados.

Desde que há capitalismo, sabemos que não há mercado sem Estado. São os Estados que tornam ilegais os migrantes (em defesa do mercado "nacional" de trabalho), assim como são os Estados que mantêm a anacrônica legislação do "copyright", penalizando o direito público do trabalho colaborativo em rede ("copyleft"). Na realidade, ao resumir a "globalização" como um simplório "complô" neoliberal ao qual seria preciso opor a "soberania" do Estado-nação, o pensamento binário cai na armadilha conservadora. Qualquer tentativa de apreender as transformações do capitalismo é assim rotulada como sendo mera ideologia pós-moderna.

É aqui que voltamos à China: diz-se que seu crescimento e suas massas operárias demonstrariam o potencial ainda vivo do "modelo industrial". A China funciona, explícita ou implicitamente, como a modernidade que resistiria à pós-modernidade, os "investimentos produtivos" que se ergueriam contra "o capitalismo financeiro inflado e anômalo" de um "dinheiro sem mediação com os processos reais" (Maria Sylvia Carvalho Franco, Folha 4/1).

Ignora-se que, ao contrário da era fordista, os motores do crescimento chinês são globais (investimentos externos e exportações) e se traduzem em excedentes financeiros revertidos, pelos chineses, em novos fluxos de investimentos globais: na África e na América Latina, por exemplo. Com efeito, não se leva em conta que o "valor" da produção "material" chinesa está nas redes -globais- do trabalho imaterial e cognitivo, aquelas redes que o capital financeiro (que nada tem de fictício) se esforça para hierarquizar e controlar.

O pensamento binário se dobra assim sobre si mesmo, de maneira conservadora e antimarxista. Marx se esforçava para apreender as contradições internas do nascente modo de produção capitalista, criticando as novas formas de exploração sem nenhuma saudade do trabalho dos ofícios e da servidão. Hoje, precisamos apreender as contradições dentro da pós-modernidade ante novas relações que ligam o mercado e o Estado, o individualismo e o coletivismo.
Nesse sentido, o que há de interessante na dinâmica venezuelana são as dimensões abertas: de desconstrução das relações que ligavam o Estado ao mercado e de experimentação democrática dentro da globalização.
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ANTONIO NEGRI, 72, filósofo italiano, é professor titular aposentado da Universidade de Pádua (Itália) e professor de filosofia do Colégio Internacional de Paris (França). Entre outras obras, escreveu, em parceria com Michael Hardt, os livros "Império" e "Multidão". GIUSEPPE COCCO, 51, cientista político, doutor em história social pela Universidade de Paris, é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entre outras obras, escreveu, com Antonio Negri, o livro "Glob(AL): Biopoder e Luta em uma América Latina Globalizada".

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