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domingo, dezembro 14, 2008

ENTRE A DEMOCRACIA E A RAZÃO DE ESTADO, COMO A CHINESA, A PRUDÊNCIA MANDA ESCOLHAR A DEMOCRACIA. MAS NEM TODOS TÊM PRUDÊNCIA....

São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2008





Obra proibida relata a grande fome chinesa

Jornalista reúne documentos oficiais sobre a industrialização forçada, que causou milhões de mortes entre 1959 e 1961

A fome levava chineses ao canibalismo, enquanto mídia estatal dizia que o país caminhava para ser uma potência, conta Yang

RAUL JUSTE LORES
DE PEQUIM

"Aos 18 anos de idade, eu só comia arroz. Não tinha outro vegetal, nem carne, nem óleo, só arroz o dia inteiro. Meu pai morreu de fome esse ano, assim como outros conhecidos. Mas achávamos que fossem casos isolados, o controle da informação na China era total."
O jornalista Yang Jisheng, 67, passou os últimos 20 anos tentando desvendar o porquê das 36 milhões de mortes que aconteceram entre 1959 e 1961, até hoje um dos maiores tabus do Partido Comunista Chinês.

Yang acaba de publicar "Mu Bei" (lápide). Em 1.100 páginas, dividas em dois volumes, ele descreve a chamada "grande fome" com centenas de fontes e cópias de documentos oficiais. Conta casos de canibalismo -de famílias que devoravam cadáveres de parentes a pais que mataram seus filhos para se alimentar de seus corpos.

Houve casos de cadáveres mantidos por familiares na cama, que diziam às autoridades "ali está o primo doente" para poder continuar a receber a ração de arroz do defunto. O autor ouviu sobreviventes admitirem ter comido cães e ratos e dá detalhes de como o governo conseguiu esconder a tragédia.

A fome foi provocada por uma desastrada campanha do ditador Mao Tse-tung. Chamada de "Grande Salto Adiante", ela tirou milhões de camponeses da lavoura para tentar industrializar a China à força.Enquanto fundiam ferro, a produção agrícola minguava.

Em 1959, a União Soviética rompeu unilateralmente com o regime comunista chinês. Mao começou a pagar suas dívidas com os soviéticos com comida. Milhões de grãos de uma produção em declínio foram desviadas para o vizinho do norte. "Havia armazéns cheios de grãos, mas houve poucos saques. As pessoas morriam sem saber o que fazer. Rádios e jornais, todos do governo, diziam que o país caminhava para ser uma potência. Ninguém tinha coragem de criticar o governo, após temporadas de expurgos", disse Yang à Folha.

Socorro proibido
Em Xinyang, cidade na Província de Henan, cerca de 10 mil cartas de pessoas pedindo ajuda a parentes foram retidas no correio local. Até líderes comunistas locais eram proibidos de pedir socorro. Na cidade, em 1958, 1,2 milhão de pessoas, um terço da mão de obra, foi escalada para fazer aço. A produção de grãos ali caiu 46,1% em um ano. Mas o governo local disse que a produção de grãos dobrou. "Prefeitos e governos provinciais maquiavam os números para impressionar Pequim, e o governo nacional supostamente não sabia o que acontecia", diz Yang.

Mais tarde, com centenas de cadáveres em qualquer vilarejo, o governo começou a atribuir a grande fome a "três anos de desastres naturais". "Médicos me contaram que, ao visitar pacientes, queriam dizer que o único remédio era comida, mas nem eles tinham coragem de falar a verdade", diz Yang.Ali, testemunhas relataram que era comum se alimentar de fezes de cervo, "menos grudentas que as de outros animais".

Acesso privilegiado
Membro do PC, Yang trabalhou na agência estatal de notícias Xinhua entre 1966 e 2001, quando se aposentou. Ele passou pelos vários estágios do comunismo local: perdeu o pai, conseguiu estudar na prestigiada universidade Tsinghua, em Pequim, mas foi mandado para um campo agrícola no final dos anos 60, durante a Revolução Cultural, quando intelectuais e "trabalhadores burgueses" tinham de pegar na enxada.

Como jornalista da Xinhua, Yang conseguiu ter acesso a documentos oficiais e falar com autoridades que se negariam a tocar no assunto em outra situação: "Ninguém desmentiu minha pesquisa. Os números oficiais que obtive mostram que a população decresceu em 10 milhões em 1960, algo inédito na China de então".Não só pelas mortes, mas pela queda de nascimentos. "Mulheres paravam de menstruar e a atividade sexual caiu", diz.

"Lápide" foi publicado por uma editora de Hong Kong e está proibido na China. Mas há dezenas de sites com o conteúdo completo para download. Com erros propositais na digitação do nome do autor e da obra, eles têm driblado o bloqueio da censura chinesa."Não há liberdade jornalística na China, mas ninguém pára a internet", diz Yang.

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