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quarta-feira, maio 14, 2008

CORREIO POPULAR DE CAMPINAS 14/5/2008

As cotas raciais na universidade

Roberto Romano

No Partido Comunista existiu a prática da “autocrítica” ... dos outros. Explico a sandice. As técnicas da crítica e da autocrítica serviriam para aprimorar a moral dos militantes. Líderes e subordinados aceitariam o exame para testar a “firmeza ideológica”. Ocorrida uma transgressão das normas coletivas, eram praticadas a crítica e a autocrítica. Aqueles ritos garantiam a disciplina partidária e a dominação dos dirigentes sobre os dirigidos. Como diz Agildo Barata, no Partido Comunista o certo é “assimilar o pensamento da direção (...) não se discute, pedem-se esclarecimentos. ‘Você é o único que discorda’, ou: ‘quer o camarada enxergar mais e melhor que a direção?’, e o audacioso indagador chega a conformar-se: se sou só eu quem discorda, quem deve estar errado sou eu”. (A Vida de um Revolucionário, Ed. Alfa Ômega, 1978). As “auto” críticas dos indivíduos ou grupos lhes vêm de cima (e de fora). Como a autocrítica, o pressuposto da confissão religiosa deveria ser a liberdade do indivíduo. Mas o aparelho burocrático religioso trocou o Evangelho pelas verdades da Cúria, dos gabinetes políticos, da ganância econômica (no caso dos judeus, a rapina dos piedosos cristãos determinou assassinatos legais, abençoados por inquisidores).

Existem padres católicos, em nossos dias, acostumados à prática inquisitorial de impor aos outros a atrição e a contrição. Gostam de corrigir erros alheios, silenciam os próprios. Reverendos lideram grupos para exigir cotas na universidade. Tentam culpar os campi pela situação injusta na qual se encontram os descendentes de africanos escravizados em nosso País. E lançam impropérios aos pensamentos corporificados nos laboratórios, bibliotecas, salas de aula. Mas nada dizem sobre a culpa da Igreja Católica com a escravidão no Brasil. É o conhecido “façam o que eu mando, mas não façam o que eu faço (ou fiz)”.

A escravidão beneficiou “a classe social da qual o clero se originava, a classe social que fazia doações à igreja, e, de quebra, a escravidão garantia o fluxo contínuo de ‘almas a serem salvas’.” Vozes dissidentes existiram. Vejamos a carta do governador da Bahia ao secretário português para assuntos de além-mar. Escrita em 1794, nela “o autor relata as atitudes de um monge italiano que viveu no Brasil 14 anos, e que depois de algum tempo tornou pública sua opinião contra todos os tipos de escravidão, sem levar em conta que a igreja acreditava que há ‘escravidão justa’ (...) o governador conta que tal monge foi deportado, por ordem do arcebispo, e que o capitão do navio tinha ordens de não deixá-lo desembarcar sem permissão do governador. (...)”. É preciso “salientar que as próprias ordens religiosas no Brasil não só exploravam o trabalho escravo dentro dos conventos, seminários e igrejas, mas também os vendiam e leiloavam como se fossem objetos ou animais”. (Eva Paulino Bueno: O padre Antonio Vieira e a escravidão negra no Brasil, Revista Espaço Acadêmico, 36, 2004). A autora cita J. Conrad (Children of God´s Fire - A documentary of black slavery in Brazil, 1984), com documentos sobre revoltas de escravos em casas religiosas. “O que estas revoltas revelam é que, para os escravos, a vida sob o mando dos padres e freiras não era melhor nem mais fácil que a vida debaixo do chicote leigo.”

“Esquecidos” desses pecadilhos pregressos, os padres mencionados agora investem contra a universidade pública paulista. Não contentes em calar as culpas próprias, reverendíssimos que lideram movimentos negros (“humildes”, se identificam enquanto meros “assessores”) hoje exigem atos de contrição e de reparação alheia. No processo neo-inquisitorial, acusações descabidas são endereçadas aos campi de São Paulo. Tudo serve para acender a lenha da “contrição alheia”, inclusive inverdades sobre as práticas acadêmicas. Em debate na Rádio CBN, sobre o problema das cotas, debate mantido com um dos novos inquisidores, recolhi farto material que mostra o viés autoritário e pouco veraz de suas retóricas. Será o tema do próximo artigo.

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