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domingo, setembro 23, 2007

Correio Popular de Campinas, 23/09/2007, entrevista Roberto Romano

Publicada em 23/9/2007

Brasil
Romano: a crise vem desde a colônia

A dependência dos estados e municípios do poder central desde o início da colonização pode ser a raiz da crise ética que grassa no Brasil e para a qual a solução parece ficar mais difícil a cada nova geração de políticos eleitos



Ângela Kuhlmann
DA AGÊNCIA ANHANGÜERA
angelak@rac.com.br

O excesso de poder e recursos centralizados no governo federal, que já beiram os 70% dos impostos recolhidos no País, revelam um quadro de regime imperial que acaba por abrir caminho à corrupção em várias esferas da administração pública. A implantação de um sistema federalizado, com maior autonomia financeira aos estados e municípios, investimentos pesados em educação e o combate às oligarquias são as medidas que amenizariam a grave crise ética e moral instalada no País e exaustivamente debatida em vários âmbitos da sociedade civil.

Essa é a opinião do professor titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Roberto Romano, sobre o agravamento da crise ética e moral nos últimos anos com sucessivos escândalos políticos em várias setores do poder político.

Para explicar o que chama de descalabro, Romano viaja ao passado longínquo. Na visão dele, a crise não é recente, ao contrário, vem desde os tempos do Brasil Colonial, mas tem um pé na política de troca de favores estabelecida no País praticamente desde seus primeiros passos. De acordo com ele, os políticos não perceberam ainda os sinais de saturação e intolerância que a sociedade vem dando e cita como exemplo a punição da ex-deputada federal e petista Ângela Gaudagnin, não reeleita nas urnas após o episódio que ficou conhecido como “dança da pizza”. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tampouco escapa de sua análise. Conforme o filósofo, a defesa da ética feita durante anos pelo PT não passou de marketing eleitoreiro. A seguir, trechos da entrevista.

Agência Anhangüera de Notícias - Todos falam de crise ética e moral no País. Ela surgiu agora ou somente se acentuou?

Roberto Romano - A ética é um conjunto de comportamento e de regras tendo em vista a sobrevivência das pessoas em sociedade. Um sistema de valores, de atitudes que estão solidificadas na história da humanidade. Não existe sociedade humana que não tenha um valor ético como não matar, não roubar. Quando esses valores são vividos e são eficazes ninguém se preocupa muito com eles, mas quando se começa a notar que muitos matam, roubam, não garantem o que dizem, e ficam impunes, porque você vai também não matar? Isso piora quando a quebra das regras éticas é cometida por quem deveria guardá-las. Se você tem um governante que rouba, um legislador que rouba, como é que pode acreditar nas normas éticas? É uma questão da governabilidade no sentido mais pleno da palavra. Você só obedece a lei quando não está obrigado a fazer absurdos e quando os legisladores e executores cumprem a lei e não simplesmente têm atitudes de descaso com as normas vigentes. Quando você tem um estado em que a autoridade cumpre a lei, ainda assim tem gente que anda na contramão, mas quando uma multidão anda na contramão e as autoridades não só não punem como fazem isso também, fica complicado.

Então, o desvio já virou uma norma?

No Brasil, estamos caminhando para isso. E isso não é culpa de agora.

Na sua opinião, isso vem de quando?

Isso vem desde nossa história colonial. Há um elemento essencial. Sobre isso a doutora Maria Sylvia Carvalho Franco escreveu o livro Homens Livres na Ordem Escravocrata. Lá no início, você tem um país continental. De certo modo, o país é todo concentrado na costa litorânea. Há o poder central. O Estado brasileiro já começa no esquema absolutista, ele não começa no esquema democrático. Isso leva a uma centralização de tudo na mão do rei ou do chefe de Estado. No Brasil, as distâncias entre os municípios e o poder central são imensas. As pessoas que estão nos municípios produzem e remetem imposto para o poder central, que tem despesas outras e não manda de volta os recursos para as obras públicas. No livro, ela reproduz decisões de vereadores que "emprestarão" para o município tantos mil réis. Eles emprestam o dinheiro, emprestam o material, compram o que precisa e fornecem a mão-de-obra, que é escrava, pois eram fazendeiros. Esse movimento é visto pela população como favor, eles são bonzinhos. Só, que o outro lado é esquecido. Na cabeça do político, se quando o município precisa, ele empresta, quando ele precisa, o município tem de emprestar. Então se estabelece essa indistinção do que é público e do que é privado, sancionada pela população. Não há distinção. Esse tipo de situação estabelece toda uma rede de favores. A população se sente devedora do político que traz benefícios para o município. Toda a sociedade brasileira passa a se definir e ser mediada pelo favor. No Brasil, não existe praticamente ninguém que não deva favor para alguém. E os políticos exploram isso de uma maneira fantástica. Com a super centralização, a República não aboliu isso, só piorou. Os impostos vão para o poder central, são 70% do total, e voltam gota-a-gota. Onde se encontra a possibilidade de retornar o imposto? No Congresso Nacional, no deputado federal e no senador, que só se reelegem se trouxerem obras para o município. Mas como conseguem essas obras e orçamentos? Vendendo o seu voto para o governo. Ou chantageando o governo. Temos o caso dos Sanguessugas. É notório que quase todo escândalo político no Brasil começa no município.

Mas ele está em todos os níveis, estadual e federal também.

É um sistema. Se o município não tem dinheiro, o prefeito e os vereadores têm de achar um jeito de conseguir. No caso dos Sanguessugas ficou claro. Se precisa de ambulância, o deputado federal vai conseguir. Só que a taxa para ter essa ambulância não é a oficial, é a da corrupção. O prefeito fica contente, mas sabe que aquela ambulância veio por meios que não são os da ética e da moralidade pública. Algumas leis são importantes como, por exemplo, a Lei de Responsabilidade Fiscal.

O senhor acredita que ajudou em alguma coisa?

Ajudou muito, mas falta uma federalização no Brasil, não há uma autonomia financeira dos municípios e dos estados, sempre de pires na mão, diante do governo central. Eles produzem riqueza, mas ela não volta. Os estados estão na pindaíba, e não recebem esses recursos. A Lei de Responsabilidade Fiscal é importante porque as autoridades vão tomar um pouco de cuidado, eles vão tentar não ultrapassar o orçamento, mas existe uma realidade. Eles vivem fora de Brasília e os prefeitos são cobrados pelos eleitores que querem a creche que ele prometeu, a ponte, o hospital, a escola. Chega o momento em que vão achar um jeito de conseguir dinheiro para fazer essas obras sem as quais eles não são eleitos e sem as quais eles não têm legitimidade. Aí entram os deputados. A população diz que tem nojo do "é dando que se recebe" do Congresso, mas ela cobra do deputado federal e do senador as obras para o município. Em última instância, a população que se julga honesta é participante desse jogo.

Mas ela tem consciência disso tudo?

Não. Esse é um ponto. Por isso que para falar de ética no Brasil é preciso que você conheça a origem da sociedade e do estado do Brasil.

Então, a origem da crise de ética e moral é de fato política?

A origem é uma apropriação do solo brasileiro com tudo o que trouxe de contradição. Uma preocupação muito grande dos brasileiros, do Estado brasileiro, é manter a unidade territorial desse grande país enquanto que a América espanhola se fragmentou em pequenos países. Para manter, foi necessária a superconcentração de recursos. Fazendo isso foi aberta a porta do inferno desse descalabro ético que está no município. Não se constituiu o Brasil, de fato, como uma Federação, como no caso dos Estados Unidos. Ele foi constituído como um Império. E a República não mudou isso. Há um trabalho do professor Fábio Konder Comparato que mostra nosso regime como imperial. O presidente da República é chefe de Estado, ele concentra nas mãos os recursos todos. Tanto é verdade que quando há uma crise como a do PCC, aparece a fratura. O que aconteceu? Intermináveis reuniões do ministro da Justiça com o governador de Estado para saber quem devia fazer o quê. Isso demonstra que essa ineficácia da segurança pública, que expõe esse descalabro que nós estamos vivendo, tem a sua face também na economia, na educação, na ciência e tecnologia. Enquanto não houver uma federalização do Brasil com maior autonomia para estados e municípios, haverá sempre essa crise, inclusive ética.

A impunidade agrava mais ainda?

A impunidade é condição do funcionamento desse regime. Se o prefeito precisa desses recursos, ele não estará muito preocupado se a pessoa que consegue no Congresso Nacional é ética, ou não. O que interessa é saber se ela é fiel à região, se traz recursos. Isso é o que faz funcionar as oligarquias. Os prefeitos sozinhos sabem que são fracos, que precisam arrancar o dinheiro que está no centro. Eles se organizam regionalmente nas oligarquias e elas indicam então os candidatos a deputado e a senador. É uma briga de oligarquias. É o que nós estamos vendo hoje. Todo sujeito que senta no trono da presidência do Senado é um oligarca, que venceu outros. Ele acaba de sentar, a outra oligarquia já está apresentando um escândalo contra ele, sucessivamente. Esses dois cargos são os que mais possibilitam chegar nos cofres do Ministério da Fazenda. Todos os oligarcas ficam disputando, desesperados, para chegar na mesa de direção do Congresso. Aí se define a ordem da alocação dos recursos, como o orçamento vai ser votado, para quem direcionar. Enquanto não houver uma autonomia do município e do estado haverá sempre os oligarcas como intermediários. Mas há outra realidade. Aproximadamente 30% dos municípios brasileiros não têm renda própria, não geram riqueza própria, são cartórios eleitorais pura e simplesmente.

O senhor falou em federalização. Como seria implantada?

Romano - A Constituição de 88 é fundamentalmente ligada à idéia de autonomia. Foi criada a autonomia do Ministério Público, um passo imenso porque deu aos promotores o direito de pluralidade, de investigar. Na Carta de 88 está firmada a autonomia dos municípios e dos estados, os remédios constitucionais estão postos. Se o presidente está longe, o governador está mais perto. O prefeito está mais perto ainda. Então o cidadão pode ser democrático e cobrar da autoridade porque ele está ao lado do prefeito, ele pode cobrar mais do governador e ele pode cobrar menos do presidente. Agora quando você tem essa perda de autonomia do estado e do município, só sobra o presidente da República e aí há um problema sério de lógica política no Brasil. Todos os presidentes da República são eleitos com milhões de votos e não conseguem fazer a tal da base aliada no Congresso. Qual é o jeito que o governo federal sempre tem de conseguir sua base aliada? Com o mensalão.

Qual o panorama mais adiante? A Educação é um caminho?

A educação é fundamental. A luta pela federalização e pela autonomia também. A luta contra os excessivos privilégios que os políticos dão a si mesmos também é fundamental. Por exemplo, enquanto houver o foro privilegiado para políticos, não tem República. Qualquer autoridadezinha por aí quer ser julgada por tribunais especiais, como se fosse de uma outra raça, ou de uma outra cidadania. E isso tem tudo a ver com esse esquema oligárquico. Eles estão tão acostumados a ser esse estafeta que leva o dinheiro para cá e pra lá, que eles querem ter imunidade, eles querem fazer isso, que é errado, sem sofrer nenhuma conseqüência.

O senador Renan Calheiros foi absolvido. Como o senhor viu a decisão?

Existem pessoas que defendem o fechamento do Senado porque seria uma instituição inútil. Se você tem esse esquema de super centralização porque precisa de senadores para defender os Estados? Você sabe que eles votarão sempre com o governo e aqueles que são de oposição não conseguirão nunca recursos para levar aos seus estados. Alguns, inclusive, do republicanismo doutrinário, dizem que tem de acabar com o Senado. Eu acho que não. Se houver autonomia dos municípios e dos estados, será preciso o Senado, para acerto entre as várias unidades. Acho que tem uma função sim, mas está totalmente desvirtuada. O sujeito está lá no Senado, muitas vezes, para defender os seus privilégios, para defender as suas fazendas, ou para simplesmente servir ao presidente da República ou para bombardear o presidente da República.

Com denúncias muito menos graves dos que as que recaem sobre o presidente do Senado, políticos de outros países renunciam ou até se suicidam.

Há o problema da ética, que não é apenas um conjunto de atos, de valores e de consciência boas. No Brasil, os nossos políticos têm essa ética horrenda, do favor, do "é dando que se recebe" , porque quando faz isso ele é aplaudido. Ele pode ser um ladrão, mas é aplaudido pela população. Então, muitas vezes, ele acredita ser honesto e que aquilo é certo, o errado é o que está seguindo a lei

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