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quarta-feira, março 12, 2008

CORREIO POPULAR DE CAMPINAS 12/3/2008


Epikéia: eqüidade e justiça.

Roberto Romano

Devo retornar ao artigo sobre o direito de necessidade na ética e política. Alguns leitores me acusam de isolar a doutrina hegeliana do direito (para eles liberal ou de esquerda) do campo filosófico. Dizer que se justifica uma apropriação de bem alheio - um queijo ou pão - significaria abençoar o crime. Como penso diferente e critico a impunidade dos legisladores e governantes (iria comentar o escândalo, denunciado pelo Correio, dos funcionários fantasmas em Campinas, fica para a semana próxima), indico aos leitores da direita (não é vergonha ser conservador, obsceno é defender punições draconianas para desvalidos e carinho para ladrões ricos ou poderosos) cito um autor que assume tese igual à de Hegel. Termino com Tomás de Aquino.

A liberdade, diz Micheline Triomphe ("Hobbes et la raison d’état" in Zarka, Y. Ch. Raison et déraison d’état) ao discutir o Leviatã, entra na tensão entre o conceito de salus populi e o enunciado onde se afirma: necessitas legem habet. Entre ambos surge o soberano, legibus solutus. Salvação do povo é lei suprema da cadeia jurídica, não em ruptura com os elos anteriores, mas como sua condição de possibilidade. A autora examina, com base nesta lei, a idéia da desculpa em Hobbes. Trata-se de transgressão não condenável em direito. Diz Hobbes: (Of crimes, excuses, and extenuations) “Se um homem, por terror da morte presente, é compelido a fazer algo contra a Lei, ele é totalmente desculpado; porque nenhuma Lei pode obrigar um homem a abandonar sua própria preservação. E supondo-se que tal lei fosse obrigatória; mesmo assim um homem teria razão de fazer pois, se não faço, eu morro agora; se faço, morro depois; logo ao fazer isto, há um termo de vida ganho; a natureza compele, portanto, a fazer”. E também: “Se um homem está destituído de alimento, ou de outra coisa necessária à sua vida e não pode preservar a si mesmo de outro modo, mas apenas cometendo algo contra a lei; como numa grande fome na qual ele arranca o alimento pela força, ou rouba, o que não pode obter por dinheiro ou caridade; ou em defesa de sua vida, joga longe a espada de um outro homem, ele é totalmente desculpado”. O extremo perigo ou necessidade leva à desculpa que salva, não os povos, mas indivíduos. E povos são constituídos por indivíduos de carne e osso.

A necessidade não nulifica a lei. É apenas suspenso o seu caráter obrigatório, examinados os casos, um a um. A tese não é nova. Em Aristóteles (Ética, V, 10), lido por Tomás de Aquino, epikéia é “uma parte da justiça tomada em sentido geral (...) é o caminho para uma regulação mais elevada das ações humanas. A epikéia corresponde propriamente à justiça legal e de certo modo está contida sob ela, mas a excede. Se a justiça legal cumpre a lei no relativo à sua letra, ou segue a intenção do legislador, a ser mais considerada, a epikéia é a parte mais importante da justiça legal. Mas se a justiça legal denota meramente o que cumpre a lei com respeito à letra a epikéia é parte, não da justiça legal, mas da justiça em sua acepção mais ampla. (...) Cabe à epikéia moderar a observância da letra da lei (...) Possivelmente o termo epikéia é aplicado no grego como similitude de todos os tipos de moderação”. (Suma Teológica, II IIae, q. 2 e 3; Ética a Nicômaco, V, 10; No dicionário Little & Scott epieikéia é reasonableness, equity). A epikéia suspende temporariamente a obrigatoriedade da lei, mas exige o examine caso a caso, o tempo dos juízes. Quando se cobra rapidez da justiça, se elude a ordem cronológica exigida para que ela seja digna de seu nome.

Não digo que Hobbes siga Aquino ou Aristóteles. Mas o que ele pensa, entra no ato de justiça, o qual reconhece a intenção da lei como norma mais elevada do que sua letra. Quando se condena um pobre por roubo de pão segue-se a letra, mas o espírito da lei é torturado. Quando se concede privilégio de foro (impunidade) a governantes, são distorcidos a letra e o espírito da lei. Levar o debate adiante é tarefa que fascina, sobretudo numa terra onde a letra da lei mata. Mas deixemos o debate para outra ocasião.

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