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segunda-feira, março 03, 2008

Folha de São Paulo, São Paulo, 03 de março de 2008


E agora, Brasil?

FÁBIO KONDER COMPARATO



NOS CONTRATOS de mandato e prestação de serviços, é regra elementar de decência que o mandatário não possa fixar sua remuneração sem o acordo prévio do mandante. Por que haveria de ser diferente no campo do direito político? Afinal, de onde provêm os recursos para pagar o estipêndio dos governantes? A Ordem dos Advogados do Brasil apresentou à Câmara dos Deputados um anteprojeto de lei para que a fixação do subsídio do presidente da República e dos membros do Congresso fosse submetida a referendo popular. A proposição foi rejeitada por unanimidade. Eis o retrato de corpo inteiro do sistema político do país. Por ocasião da queda do ministério Zacarias, em julho de 1868, o senador Nabuco pronunciou famoso discurso, no qual pôs a nu o círculo vicioso da política imperial: "O Poder Moderador (o imperador) pode chamar a quem quiser para organizar ministérios; essa pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la; essa eleição faz a maioria (na Câmara). Eis o sistema representativo do nosso país!".

Hoje, podemos formular raciocínio análogo, tomando como tema a reforma política: uma reforma política só se faz mediante alteração constitucional; a alteração constitucional só pode ser feita pelo Congresso; o Congresso jamais consentirá em fazer uma reforma política em prejuízo dos interesses pessoais dos seus membros. Que o leitor tire a conclusão lógica dessas premissas. Em 5 de outubro próximo, a Constituição Federal completará 20 anos de vigência. É mais do que tempo de se reconhecer o que, até hoje, poucos têm tido a coragem de declarar: ela carece de legitimidade democrática.

A Constituição de 1988 foi elaborada não por uma Assembléia especialmente criada para esse fim, mas por um órgão político já existente, o Congresso Nacional. O texto abre-se com a declaração solene: "Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático etc.". Em um Estado democrático, a soberania pertence ao povo, que não pode delegar o seu uso a ninguém. A aprovação de uma nova Constituição é o primeiro e principal atributo da soberania. Mas o povo brasileiro não foi chamado a dizer se aceitava o documento composto em seu nome e por sua conta.Aproveitando-se desse vício de origem, o Congresso atribuiu a si próprio todo o poder de reforma constitucional. Com base nessa espúria prerrogativa, ele já emendou a Constituição, até a data em que escrevo estas linhas, 62 vezes (uma média de três emendas por ano). Sempre em nome do povo. Mas este não tem nem sequer direito de apresentar propostas de emenda constitucional. Trata-se, como se vê, de um soberano de opereta, ou, se preferirem, do rei Momo de um permanente carnaval político.

Como explicar essa fraude envolta em ornamentos constitucionais? A explicação é singela: o poder político, entre nós, sempre foi objeto de propriedade de uma minoria conservadora, cuja única preocupação consiste em manter intactos os seus privilégios. Em 1884, o ministério Dantas apresentou à Assembléia Geral do Império um projeto de lei, determinando a alforria dos escravos maiores de 60 anos (o que corresponde hoje a pelo menos 70 anos de idade). Enfurecido, o deputado Sousa Carvalho, da Paraíba, qualificou tal projeto de "comunista". A Câmara mais do que depressa o rejeitou, provocando a queda do gabinete. Ao comentar o episódio, Joaquim Nabuco desabafou: "O ideal conservador entre nós é a estagnação no embrutecimento, o rancor no exclusivismo, o silêncio na corrupção".

Desnecessário dizer que essas três características de nossa oligarquia permanecem vivas até hoje. A única novidade é que os atuais oligarcas passaram a desenvolver uma guerra de conquista sistemática do espaço público: desde reservas florestais e grandes rios, até canais de rádio e TV, passando pela apropriação de quase todos os serviços públicos. Creio que frei Vicente do Salvador -aquele que dizia em 1627 que "nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular"- ficaria estupefato à vista desse espetáculo. Que fazer? Abrir uma saída institucional. Por exemplo: introduzir na Constituição, mediante emenda, o instituto da revisão geral, que já existe em outros países. O exercício desse poder de revisão, respeitados todos os direitos e garantias fundamentais, seria precedido de plebiscito e atribuído a uma Assembléia, diversa do Congresso Nacional, eleita para essa finalidade exclusiva. Fora disso, temo que só nos reste assistir às enfadonhas peças do mesmo teatro político, as quais ficam em cartaz quatro ou oito anos. Vamos continuar de braços cruzados?

FÁBIO KONDER COMPARATO , 71, professor aposentado da USP, é presidente da Comissão Nacional de Defesa da República de da Democracia da OAB.

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