Sábado, 29 de Março de 2008
O mito do Dalai Lama
O texto a seguir é uma colaboração de Antonio Sergio Ferreira Baptista, médico em Joinville (SC).
Com o conflito nas ruas de Lhasa, o Tibete voltou a ser o centro das atenções recentemente. Clamores pela libertação do país, idealizado como um Shangri-la, invadiram a mídia, mas este Tibete ilusório tem pouco a ver com a realidade histórica.
O povo tibetano é apenas uma das 56 minorias existentes na China, onde a maior parte da população é Han. Dentro do Tibete, além dos tibetanos, há outras nacionalidades, como os Moinbas, Lopas, Naxis, Huis, Dengs e Xiaerbas. Claro que só os tibetanos são estrelas em Hollywood, ou melhor, somente a antiga elite e seu “Deus-Rei”, o Dalai Lama.
O Tibete começou a se assemelhar a um Estado por volta do século VII com a adoção de um monarca, uma religião associada ao governo e uma linguagem escrita. Quinhentos anos depois, Genghis Khan e os mongóis conquistaram a China e o Tibete, fundando a dinastia Yuan e aliando-se à seita Gelupga do budismo tibetano, numa relação em que os mongóis ofereciam proteção militar em troca de orientação espiritual. Os monges também criaram o status de Dalai Lama. Conseqüentemente, o Tibete veio a se tornar parte do Estado chinês, embora um estado chinês governado por mongóis.
A dinastia étnica Manchu Qing (1644-1912) incorporou o Tibete à Grande China administrando-o através de um comissariado que, na realidade, raramente se envolvia nos assuntos tibetanos, ocasionalmente enviando exércitos para defendê-lo contra invasões estrangeiras.
No final do século XIX e início do século XX, o Tibete se tornou um joguete entre o imperialismo britânico e russo, culminando com o envio de uma força militar que o colocou sob influência britânica.
Com o colapso da dinastia Qing, em 1912, diversas partes do império chinês, incluindo o Tibete, tornaram-se de fato independentes até 1949. Embora tenha tido todos os atributos de um estado independente (incluindo moeda, exército, relações exteriores e um governo), nunca teve uma independência de jure, pois numerosos tratados internacionais reconheciam apenas a suserania sobre todo o Tibete.
Após a chegada ao poder do Partido Comunista Chinês, um governo central forte foi restabelecido na China, junto com uma determinação de retomar os territórios da antiga dinastia Qing, evoluindo com a integração total do Tibete à China em 1951.
No final de 1956, tibetanos armados emboscaram comboios do exército chinês, com ampla assistência da CIA, que incluía treinamento militar, apoio em bases militares no Nepal e suprimentos jogados de aviões. Enquanto isso, nos EUA a American Society for a Free Ásia (também financiada pela velha CIA) dava publicidade à causa da resistência tibetana, com o irmão mais velho do Dalai Lama, Thubtan Norbu, participando ativamente desta organização.
O outro irmão, Gyalo Thondup, organizava, juntamente com a CIA, operações de inteligência desde o início da década de 50, mais tarde formando unidades de guerrilheiros cujos recrutas eram enviados de pára-quedas ao Tibete (mais de 700 destes vôos foram feitos em 1950, de acordo com os Pentagon Papers). Muitos destes comandos e agentes eram chefes de clãs aristocráticos ou filhos destes. Muitos lamas e membros da elite, bem como do exército tibetano, juntaram-se aos insurgentes, mas a maioria da população não, assegurando assim o seu fracasso (Hugh Deane, “The Cold War in Tibet” – CovertAction Quaterly – winter 1987; à mesma conclusão chegaram Ginsburg e Mathos - “Comunist China and Tibet”, 1964). Logo após, o controle da China era total.
Em 1961 as autoridades chinesas expropriaram as terras dos latifundiários e lamas e as distribuíram aos camponeses. Incentivos à pecuária e à irrigação foram implementados e a introdução de novas variedades de vegetais, trigo e cevada trouxeram benefícios à produção. Escolas, hospitais, estradas, redes de eletricidade e água corrente supriram muitas das deficiências antigas do velho Tibete (Greene, “A Curtain of Ignorance” e A.Tom Grunfeld, “The Making of Modern Tibet”, 1996). Porém, durante a Revolução Cultural, um autêntico genocídio cultural assolou o Tibete, incluindo a destruição de vários templos religiosos, repressão e prisão de dissidentes, com repercussões até hoje.
Muitos afirmam que, antes da invasão chinesa, em 1959, o velho Tibete era um reino orientado espiritualmente, livre do estilo de vida egoísta, do materialismo vazio e dos vícios corruptores das modernas sociedades industriais ocidentais. Um verdadeiro Shangri-la. Nas palavras do atual Dalai Lama: “Desfrutávamos de liberdade e contentamento”. Mas a realidade sugere um quadro um pouco diferente.
Apesar dos livros de James Hilton (Horizonte Perdido) e de Heinrich Harrer (Sete Anos no Tibete) promoverem uma visão romântica do Tibete, este era, em 1940, uma região sem estradas, somente com trilhas para cavalos e praticamente intocada pela industrialização. Os paralelos entre o Tibete e a Europa medieval eram marcantes (A.Tom.Grunfeld – “The Making of Modern Tibet", 1996). Consistia no território de “U”, onde o Dalai Lama dominava, e no território de Tsang, onde mandava o Panchen Lama. Os que clamam pelo “Grande Tibete” referem-se ao Tibete incluindo grandes partes de províncias adjacentes: Sichuan, Yunnan, Gansu e Quinghai (também a Bacia de Tsaidam, rica em petróleo). Abaixo do Dalai Lama havia os membros da aristocracia (proprietários de terras que, em sua maioria, descendiam dos antigos monarcas tibetanos antes da invasão mongol), e a maior parte da população era de servos, com uma pequena parte, cerca de 5%, de escravos da nobreza.
Em seu livro (com prefácio do Dalai Lama) “Tears of Blood – A Cry for Tibet”, Mary Craig descreve que o Tibete “era uma sociedade feudal medieval e, trabalhando para as propriedades do governo, nos latifúndios dos monastérios ou nas terras das duzentas e poucas famílias aristocráticas, o camponês tibetano, inegavelmente, pertencia ao seu senhor. Tinha que produzir uma quantidade de trabalho compulsório em troca de seu pequeno pedaço de terra e dar a maior parte de suas colheitas ao seu senhor, ficando apenas com o mínimo para sua subsistência e de sua família. O senhor (incluindo também os Lamas) não só tinha o direito de exigir as taxas que quisesse, como também de impor punições cruéis para os que não o obedeciam. Pena de morte e amputação de membros eram comuns em algumas regiões”. As mulheres eram consideradas inferiores aos homens e a poliandria e a poligamia eram comuns. O budismo era utilizado pelo Dalai Lama e o Panchen Lama para oprimir os servos. Enquanto isso, o Dalai Lama vivia no palácio Potala, de 14 andares, com 1000 aposentos e seu séquito de escravos.
Antecessores do atual Dalai Lama envolveram-se com amantes, festas e violência. Pelo menos cinco deles foram assassinados e inúmeros outros atos de violência contra outras seitas budistas foram perpretados. Meninos eram retirados de suas famílias e levados aos mosteiros para se tornarem monges. Uma vez lá, não mais saíam. O monge Tashi-Tsering relatou que era comum a criança camponesa ser abusada sexualmente nos monastérios, ele mesmo tendo sido vítima de repetidos abusos, desde os 9 anos (Melvin Goldstein, W.Siebenschuh e Tashi-Tsering, “The Struggle for Modern Tibet”, 1997).
Em 1937, Spencer Chapman visitou o Tibete (citado em Gelder e Gelder, “The Timely Rain: Travels in New Tibet”, 123-125, 1964), observando que “os monges não perdiam tempo pregando ao povo ou educando-o. Os mendigos ao longo das estradas não são nada para os monges. O conhecimento é uma prerrogativa dos monastérios, zelosamente guardado e é usado para aumentar sua influência e riqueza”.
Após o levante de 10 de março de 1959 o Dalai Lama resolve salvar sua atual encarnação fugindo para a Índia (Dharamsala) com a elite aristocrática e religiosa e criando assim um governo no exílio. Este, até pelo menos o início da década de 70, recebeu US$ 1,7 milhões da CIA. O dinheiro era para financiar operações de guerrilha contra os chineses, não obstante a posição de “ativista da não-violência” do Dalai Lama, ele próprio na lista de pagamentos da CIA de 1950 a 1974, recebendo cerca de US$ 15 mil por mês (Michael Backman, “Behind the Dalai Lama´s Holy Cloak”, The Age, May 23, 2007). No início deste século o congresso americano, através do National Endowment for Democracy, continuava a enviar anualmente US$ 2 milhões para a comunidade tibetana no exílio. Além destes fundos, o Dalai Lama receberia dinheiro do financista George Soros, segundo informa Heather Cottin (“George Soros – Imperial Wizard”, CovertAction Quaterly 74, Fall 2002).
Em abril de 1999, juntamente com Margareth Thatcher, o Papa João Paulo II e o presidente George Bush (pai), o Dalai Lama pediu à Inglaterra que não permitisse que o ditador Augusto Pinochet, em visita à Inglaterra, fosse obrigado a ir à Espanha, onde seria julgado por crimes contra a humanidade. Também apoiou a intervenção americana na Iugoslávia e, mais tarde, no Afeganistão, numa atitude muito curiosa para um Prêmio Nobel da Paz. Em relação à guerra do Iraque, foi mais cauteloso: “a guerra do Iraque – é muito cedo para dizer se é certo ou errado” (San Francisco Chronicle, nov. 2005).
Não se pode, no entanto, culpar o atual Dalai Lama pelos abusos do antigo regime tibetano, mesmo porque tinha 25 anos quando foi para o exílio. O que se critica é a mídia ocidental, juntamente com artistas de cinema, cantores etc., que se recusam a enxergar criticamente a figura do Dalai Lama e o budismo, que engendrou, como qualquer outra ditadura religiosa, um regime reacionário e assassino (em 1998, o U.S State Department listou trinta dos grupos extremistas mais perigosos e violentos do mundo; metade deles eram religiosos, incluindo budistas).
Por razões religiosas, muitos tibetanos querem o Dalai Lama de volta ao país, mas parece que poucos desejam um retorno à ordem social que ele representou (“Tibet Caught in China´s Web”, John Pomfret, Washington Post, 23 julho 1999).
É preciso deixar claro que celebrar o fim da teocracia feudal no Tibete não é aplaudir tudo o que os chineses fizeram neste país. Este é um ponto pouco compreendido pelos ocidentais, que sempre viram o Tibete como um Shangri-la.
Se o que os chineses levaram ao Tibete após a invasão foi uma melhora ou um desastre, não é o ponto central aqui. A questão é que tipo de país era o velho Tibete e a suposta natureza idílica espiritual deste velho país antes da invasão.
Podemos advogar uma liberdade religiosa e independência para o novo Tibete sem ter que abraçar a mitologia acerca do velho Tibete. Na verdade, o Tibete nunca foi o Paraíso Perdido. Era uma odiosa teocracia feudal retrógrada e repressiva - muito distante de um Shangri-la.
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domingo, março 30, 2008
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