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quarta-feira, março 19, 2008

Correio Popular de Campinas, 19/03/2008.

Publicada em 19/3/2008


O fantasma e o nepotismo

Roberto Romano

O uso de bens públicos em favor dos que exercem poderes existe desde as mais primitivas eras. Mesmo instituições com função religiosa experimentam o fenômeno. Por volta de 1456, durante o pontificado de Calixto 3º, os bens católicos passam a nutrir os cofres dos círculos familiares, liderados por autoridades eclesiásticas. Monarquia absoluta, o papado se consolida com o nepotismo. Alexandre 6º Borgia (1492-1503) é o máximo dessa enfermidade ética. Tirano sanguinário na cidade de Roma, seu projeto consiste em desviar sistematicamente os bens da Igreja em proveito exclusivo de sua família. Foi a consagração do nepotismo. César Borgia tenta criar, com ajuda do pai onipotente (Vicário de Cristo) um poder monárquico, com farto uso dos bens da Igreja. O projeto só não deu certo porque o Santo Padre morreu em 1503.

Se, em instituições sagradas, ocorrem inescrupulosas apropriações de bens, imaginemos no plano terrestre. Bem diz Agostinho que os Estados se comparam às quadrilhas de piratas. Alguns pioram o quadro, pois além de roubar dos governados, matam uma parcela deles em guerras, massacres, campos de concentração. Ler a história do totalitarismo é notar o quanto o ente humano que se dedica à política merece o qualificativo de fera, nele aplicado por filósofos importantes como Platão e Tomas Hobbes. Talvez pior do que fera, porque os bichos se contentam em matar para comer. A crueza dos governos tirânicos os aproxima de Lúcifer, o monarca do Pandemônio. Como todo algoz, o diabo (por exemplo, na descrição de John Milton) age como criança mimada. O seu “brinquedo” seria o controle de toda a criação. Mas com a preferência do Pai pelo Cristo, ele se revolta e transforma a luz em trevas para melhor agir no segredo. Ao destruir os vestígios do bem no mundo, ele quer se vingar do ser divino que o criou.

Políticos brasileiros descendem diretamente daquele pai da mentira. O poeta Milton, paladino da revolução puritana do século 17, sabe perfeitamente que Lúcifer, na verdade, reside em todo indivíduo humano enamorado de si mesmo e que julga ter a prerrogativas de usar em proveito próprio o que foi criado para o bem coletivo. Algo similar é dito por Guimarães Rosa: “o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem - ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. (...) Tem diabo nenhum. Nem espírito (...) o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens”.

Quando usam recursos financeiros ou humanos, sobretudo com o nepotismo, em detrimento de quem paga duros impostos, políticos odeiam que suas diabruras sejam desveladas. Eles adoram o segredo, no qual exercitam seu culto satânico. A revista Imprensa de fevereiro traz excelente e triste reportagem sobre assassinatos de jornalistas. A maioria deles é encomendada por políticos que desejam intimidar a mídia. Agora, igrejas e sindicatos inventam técnicas jurídicas para colocar a Justiça ao serviço do assassinato moral e financeiro de jornais e jornalistas.

Por todos esses motivos, os trabalhos de investigação do Correio Popular sobre os fantasmas que povoam os poderes de Campinas merecem aplausos e apoio efetivo. Se os elementos das reportagens são inexatos, uma Comissão de Inquérito transparente e responsável pode corrigir os jornalistas. Se forem exatos, cabe aos administradores probos punir quem merece, satisfazer a sede e fome de justiça dos contribuintes. No Correio, a denúncia dos “fantasmas” em Campinas é seguida pela análise realista dos avanços e retrocessos na campanha contra o nepotismo nas Câmaras de Vereadores da região. (Correio, “Nepotismo tem vitórias e derrotas nas Câmaras, Indaiatuba legalizou a prática e Vinhedo aprovou projeto que proíbe contratar parentes”, 15/03/2008).

Milton, que descreveu a poesia infernal no Paraíso Perdido, é o campeão da luta em defesa da liberdade de imprensa. Só quem desceu aos quintos dos infernos sabe o quanto é bom ter jornais que espancam as trevas dos poderosos improbos. Parabéns ao Correio e a todos que lutam pela responsabilidade pública e desejam a transparência nas contas dos governos e legislativos.

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