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Soberania e Filosofia
Roberto Romano
Ao participar no mês passado, na Faculdade de Direito da USP, de uma Banca presidida pelo prof. Celso Lafer, conheci uma pessoa erudita e gentil. Se falo assim é porque os costumes acadêmicos beiram hoje a grosseria inculta, mais própria de outros setores sociais. Tal é a regra. Quanto à exceção, a nomeio: trata-se do professor Ari Marcelo Solon, que ensina Filosofia do Direito naquela universidade.
Antes dos trabalhos, foi iniciado (longe da assistência) caloroso colóquio sobre problemas de ordem ética e jurídica nacional. Desculpei meu pequeno atraso na banca pela inspeção nos fichários da centenária biblioteca da casa, cheia de livros sobre e de Francisco Campos, autor que me interessa cada vez mais. O interesse deve-se à sua presença em momentos graves do Estado brasileiro, quase sempre com frutos venenosos. Assim foi na “Polaca”, a Constituição de 1937 e depois, por vários caminhos e descaminhos, até o Ato Institucional de Número 1, com ressonâncias trágicas no AI-5.
Ao comentar as análises de Jarbas Medeiros sobre os elos possíveis entre Francisco Campos e Carl Schmitt, lamentei não ter mais em mãos o volume (como regra, quem empresta nossos livros não devolve) do bem feito Ideologia Autoritária no Brasil, 1930/1945. Com a gentileza que o marca, Celso Lafer se dispôs a me ceder temporariamente o seu exemplar. Em tal conversa, o mesmo Lafer me indica que o Dr. Solon publicara um excelente trabalho sobre o conceito de soberania em Schmitt e Kelsen. Com o entusiasmo que demonstrei, o autor me anunciou que remeteria o livro para minha casa. Dei o endereço, confesso que sem muita esperança. A encomenda chegou no mesmo dia em que o carteiro trouxe o empréstimo de Lafer.
De imediato, inicio a leitura da exposição sobre Schmitt e Kelsen. Em primeiro lugar, ressalta o rigor no tratamento das fontes. Ao contrário de vários autores do campo jurídico, cujos conceitos sobre a filosofia são, digamos, leves, Solon indica, tanto nas micrologias quanto nos vastos painéis, um domínio magistral do campo. Após inspecionar as raízes gregas do conceito de soberania, seguindo para a maiestas romana e posteriormente para os clássicos Bodin, Althusius (ele usa bastante Otto Gierke, jurista que fornece refinado material para reflexão a todos, filósofos e cultores do Direito, até os nossos dias), Solon termina sua primeira parte com um sólido exame da noção de soberania no século 19.
Recolhidas as premissas históricas e teóricas fundamentais, o autor entra na tese de Kelsen sobre a soberania. Aqui, ressalta a originalidade de Solon, em especial seu diagnóstico do federalismo em Kelsen. Os brasileiros, que vivem numa federação estranha, na qual os entes menores não têm propriamente autonomia (dada a concentração excessiva dos monopólios do Estado, sobretudo dos impostos, no plano central) sabemos apreciar as disposições de Kelsen em plano especulativo e prático, dos quais Solon indica ocasiões na Áustria, nos EUA e... no Brasil, quando se elaborava a Constituição, em 1933. Nota-se em Kelsen, citado com exatidão por Solon, a plena atualidade do pensamento. Em tempos de globalização mas de fraqueza da ONU (não existente no período, mas cuja pauta maior já se fazia anunciar desde o século 19) diz Kelsen: “Nem mesmo o Estado como tal é soberano, pois acima dele se encontra o direito das gentes, que lhe confere direitos e obrigações. Ainda menos se pode dizer de qualquer orgão do Estado que seja soberano”. Tais faíscas de pensamento poderiam ajudar na iluminação dos problemas institucionais brasileiros, nos dias atuais.
Após o escrutínio severo de Kelsen, Solon se dirige ao seu antípoda, Carl Schmitt. Uma passagem surpreende o leitor: a tese de Kelsen segundo a qual “Todo o conflito jurídico é um conflito de interesses ou de poder e portanto, toda controvérsia jurídica é uma controvérsia política” (Kelsen, citado por Solon). Num país em que o presidente da República sente-se no direito de proclamar que a lei é “hipócrita”, nota-se a importância do tema. Voltarei ao assunto em outro artigo.