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FOLHA DE SÃO PAULO, quinta-feira, 09 de março de 2000
TENDÊNCIAS E DEBATES
Notícias do inferno
ROBERTO ROMANO
Nas ações totalitárias e violências cometidas em regime democrático, sempre existe um componente que fala em defesa da humanidade, mesmo dos carrascos. São raros os assassinos de corpos ou de almas orgulhosos dos crimes que cometeram. Quase todos buscam justificar seus atos, invocando alguma razão. É certo, dizia um crítico do regime stalinista lembrado por Claude Lefort, que os assassinos de Shakespeare (como Macbeth) só não foram à mais profunda carnificina porque lhes faltou estofo ideológico.
A ideologia, simulacro da razão, dá às piores covardias uma roupagem aceitável. Afinal, uma coisa é matar por simples prazer. Outra seria destruir membros da família humana em nome de valores eminentes, como a família, os bons costumes, a segurança coletiva.Essas facetas do ente humano se desnudaram, para mim, quando abri a Folha de 3/3 (pág. 1-10). De repente, percebi que há comportamentos novos no mundo político e no campo ideológico. O jornal publicava o diálogo de certo teatro da crueldade, em que o silêncio unia frases com a firme característica de ser, cada uma, terrível punhal a rasgar a consciência dita civilizada.
Um bandido, Fernandinho (ah, esses diminutivos!) Beira-Mar (como soa poético...), pergunta, pelo telefone, sobre os progressos na tortura e morte de um rival. E o supliciado responde, falando sobre as qualidades digestivas de suas próprias carnes. O estômago retorcido, a cabeça girando, os olhos molhados, fechei as folhas com vergonha da espécie humana. Animais nunca atingirão esse nível de crueldade.
Plutarco, em tratado em que defende os direitos dos bichos contra os que elogiam a superior estatura do "animal racional", dizia que os primeiros têm razão. O livro espanta quem imagina sermos o ponto mais elevado da natureza (ou dos decretos divinos). Eis o título, traduzido para o latim: Bruta animalia ratione uti. Os animais usam a razão.
No Fausto Goethe fornece a perfeita narrativa do comportamento humano em contraste com as feras. O diabo diz ser o "deusinho do mundo", sempre o mesmo, e afirma que o homem viveria melhor sem o reflexo da luz celeste a ele concedido pela divindade. A luz ele batiza com "o nome de razão. E dela usa apenas para ser mais bestial que todas as feras".O periódico, com semelhante reportagem, cumpriu sua função, expondo as entranhas do narcotráfico e das quadrilhas. No domingo (5/3), nesta página, a Folha trouxe um artigo luminoso de Drauzio Varella, mostrando que as atrocidades cometidas pelos traficantes recaem sobre os bandidos menos graduados. Nunca um cheiroso frequentador de colunas sociais e de camarotes importantes chegou para valer à beira das cadeias e dos tribunais.
Varella poderia ter recordado o trabalho de Alba Zaluar, que demonstra a "opção preferencial" dos traficantes graúdos pelos jovens, negros, pobres como bucha de canhão na guerra das quadrilhas entre si e com a polícia.Enquanto a imprensa cumpriu seu papel, o governo carioca mostrou-se digno da "razão" descrita em Plutarco e Goethe.
Anthony Garotinho (ah! os diminutivos...) e o secretário da Segurança usaram, como arma política fria e sem piedade, a gravação do diálogo bestial entre os bandidos. O mesmo governador, dias atrás, empreendeu uma inusitada reforma semântica, fazendo distinção entre "chacina correta" e falsa chacina. A primeira teria como alvos as pessoas honestas. A segunda não mereceria o nome. Daí para outras distinções nefandas e pouco sutis o passo foi dado. Como o uso da tortura praticada pelos bandidos como propaganda governamental.
O alvo do governo carioca, neste momento, é um cineasta. Os artistas do poder não gostam de concorrência. Outro visado é um intelectual sério, que tenta unir o conhecimento e a prática da justiça, o professor Luiz Eduardo Soares. Os donos do Rio não sabem qual caminho escolher na escalada rumo ao Planalto. Eles têm ao seu dispor a via dos direitos humanos, simbolizada pelo antropólogo Soares. Mas a senda tortuosa, aberta pelo malufismo, que insiste em desvincular o problema da violência de suas causas sociais também está sendo ensaiada pela administração do Rio. A exposição da fita mencionada entra nessa lógica.
Em termos éticos, a imprensa tinha o dever de publicar a fita. Também em termos éticos, o ato cometido pelo governo, de divulgá-las como retórica para garantir certos meios repressivos e uma candidatura presidencial, violenta o público e a dignidade humana. Se o governador (Garotinho...) é cristão, ele deve considerar que esse ato só pode ter recompensa num plano do universo: o inferno.