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quinta-feira, junho 26, 2008

Publicada em 25/6/2008

Roberto Romano
Soberania e Filosofia (3)



Na exposição de Ari Marcelo Solon (Teoria da Soberania como problema da Norma Jurídica, >Sergio Antonio Fabris Editor, 1997) vários aspectos instigam a hermenêutica filosófica. Indiquei que Solon apresenta prismas insuspeitados em Hans Kelsen e Carl Schmitt. Um deles é a importância da política para o primeiro daqueles juristas. A discussão sobre o caráter político da jurisdição serve “para desfazer dois mitos; o de Kelsen como ideólogo da separação direito e política (quem deve ser isento de considerações políticas é o cientista do direito e não o objeto de sua análise) e o de Schmitt como defensor da politização de um direito, inteiramente tomado pela categoria amigo-inimigo (justamente na esfera crucial da aplicação do direito, Schmitt postula uma neutralização política)”. São discutidos por Solon nos dois pensadores os limites do Estado, algo que ocupa as formas doutrinárias desde longa data, mas que recebeu sua figura essencial no século 19 com Humboldt com o Ensaio Sobre os Limites da Ação Estatal (1791, Cf. Les Belles Lettres, bilingüe, 2006). Na perspectiva de Schmitt, Kelsen “atinge o mesmo resultado ideológico pretendido pelos liberais com o princípio da ‘soberania da constituição’: a limitação jurídica ao exercício do poder, mediante a garantia de uma ‘actio’ toda vez que esses limites forem ultrapassados”.

Ao mostrar as atitudes antagônicas tomadas por Kelsen e Schmitt, Solon indica o quanto o primeiro, em seus textos maduros, modifica a imagem que dele se faz. Kelsen chega a enunciar que “um conflito de normas não se pode comparar a uma contradição lógica, mas a uma situação em que duas forças atuam em direções opostas”. São afastadas as críticas, incluindo as de Schmitt, de que ele conceitua as normas como impessoais. Nosso autor afirma não ser nova em Kelsen uma relação próxima entre o dever ser e a vontade humana. “Este ponto de partida ‘realista’ sempre esteve bem estabelecido em sua obra. Não há imperativo sem imperador! disse Kelsen aos jusnaturalistas em Salzburgo, reforçando aquela concepção”. Longe de ser instrumento neutro e inerte, “o executor da norma sempre poderá escolher entre dois caminhos: o prefixado por sua norma de produção ou aquele por ele diretamente determinado, que pode até se constituir em delito, mas produz efeitos jurídicos enquanto não for anulado” (Kelsen, citado por Solon).

Kelsen não se afasta, portanto, como sugere certa leitura de seus textos, da ordem volitiva. Solon entra em outro terreno das controvérsias entre Schmitt e o autor da Teoria Pura do Direito. Trata-se da religião. Foi Kelsen e não Schmitt “quem se aventurou, pela primeira vez, a investigar as relações entre direito e teologia. Um denso ensaio publicado na revista Logos de 1923 com o título de Deus e o Estado resume as reflexões do autor sobre o tema ao longo de uma década, onde ecoavam expressões de Feuerbach e Freud, mas sem o ímpeto crítico de seu ilustre contemporâneo ou predecessor iluminista. Feuerbach pretendeu, a partir da filosofia hegeliana, desmascarar a teologia, revelando suas raízes mundanas, surgidas da experiência humana. Assim procedendo, a teologia teria de se converter em uma antropologia. Kelsen, em princípio, deve ter julgado esta postura compatível com seu método científico, pois assim como seu antepassado intelectual se empenhara em criticar as ilusões criadas pelo homem acima da natureza humana, ele, também, procurou resgatar a essência jurídica do Estado de todos os conceitos metajurídicos”.

Aqui, o campo talvez seja mais espinhoso, em termos lógicos e ontológicos. O título da obra, Deus e o Estado, reitera o problema não resolvido na herança hegeliana. Segundo Hegel, “o espírito divino penetra de modo necessário, imanente, o que está no mundo; assim, a sabedoria nele é concreta e é junto a si mesmo que se determina a sua justificação” (Enciclopédia das Ciências Filosóficas, cf. entre muitos, Eric Weil, Hegel et l' Etat (Paris, Vrin,1974, p. 48). Kelsen e Bakunin criticam tal “imanência”. No Brasil, a secularização jurídica é ameaçada quando vemos, entre outras figuras, símbolos católicos nos tribunais, no Parlamento e no Executivo.

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