RR
Testemunhos
A matança que ocorreu lá, em Lisboa:
Estando eu fora da cidade, contaram-me dias depois ao regressar que os dois não podem ser comparados, tendo em comum apenas a crueldade e a extrema dor1. O que me contou um ancião é o que a seguir relato.
Na noite de Páscoa os cristãos encontraram marranos2 sentados à mesa com pão ázimo e ervas amargas, seguindo os rituais da Páscoa, e trouxeram-nos perante o rei, que ordenou que fossem eles encarcerados na prisão até que a sentença fosse determinada. Naquela altura havia fome e seca pelo reino, e os cristãos juntaram-se e disseram: “Porque faz o Senhor isto a nós e à nossa terra senão por causa da culpa dos judeus?” E as suas palavras foram ouvidas pela Ordem dos Pregadores também chamados Dominicanos, que se concentraram em encontrar um ardil com que ajudar os cristãos. Então um deles levantou-se na sua casa de oração e pregou palavras ásperas e amargas contra a semente de Israel. E eles planearam um artifício e fizeram um crucifixo oco com uma abertura atrás, e vidro na frente, e por lá passavam uma vela, dizendo que a chama emergia do crucifixo, enquanto o povo se prostrava e gritava: “Vede o grande milagre! Este é um sinal de que Deus julga pelo fogo toda a semente de Israel!”
Um marrano foi lá que não ouvira estas palavras e, na sua inocência, disse: “Era melhor que fosse um milagre de água e não de fogo, pois com a seca é de água que precisamos!”
Os cristãos, cujos desígnios eram funestos, levantaram-se e disseram: “Olhai, que zomba ele de nós!” A multidão de imediato o pegou e matou. Quando o seu irmão ouviu, veio e disse: “Infortúnio, ai meu irmão, quem te matou?” E um de entre a multidão ergueu a espada, cortou-lhe a cabeça e a atirou sobre o corpo do irmão. Depois disto todos os frades se levantaram levando consigo os paus de Jesus Cristo3. Foram eles pelas ruas da cidade e proclamaram: “Quem matar algum da semente de Israel terá 100 dias de absolvição no mundo vindouro!” E de entre a multidão surgiram homens armados de espadas e durante três dias mataram quatro mil almas. Arrastavam e traziam para a rua os corpos para os queimar. Mulheres grávidas foram atiradas das janelas, os seus corpos recebidos pelas pontas das lanças, os fetos caindo a muitos pés de distância. E outras crueldades semelhantes e abominações que não quero aqui contar.
Aos magistrados de Lisboa não se pode culpar, nem aos seus nobres e líderes, porque tudo isto foi feito apesar deles. Eles próprios foram tentar salvar judeus, mas por causa do tamanho da multidão não o puderam fazer, pois quase lhes puseram as mãos neles também, e eles tiveram de fugir para salvar as próprias vidas.”
Salomão Ibn Verga, in Sefer Shebet Yehudah (ספר שבט יהודה), Livro do Ceptro de Judá, escrito em Portugal pouco depois do massacre de Lisboa mas publicado apenas em 1550, em Constantinopla, pelo seu filho, Yosef Ibn Verga.
NOTAS:
1 Salomão Ibn Verga alude aqui aos dois massacres: o ocorrido dentro de Lisboa e o subsequente que se alastrou pelas áreas rurais circundantes.
2 “Anussim” (אנוסים) no hebraico original do texto, expressão que literalmente quer dizer “os forçados”. Termo aplicado aos judeus portugueses forçados a converter-se ao catolicismo.
3 (עצי ישו הנוצרי) referência pejorativa aos crucifixos.
(texto traduzido do original hebraico)