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domingo, novembro 02, 2008

O texto saído hoje na Folha é breve, demasiado breve. No artigo da Isto É, antigo, o assunto recebe análise mais ampla.

2000 ANOS DE CRISTIANISMO PODER
ROBERTO ROMANO
ENTRE
A CRUZ
E A ESPADA
Apesar de defender a primazia do espiritual sobre o civil, a Igreja frequentemente sustentou o poder e abençoou tiranias
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O

s vínculos entre cristianismo e poder surgem antes de Cristo. A vida cristã é filha do judaísmo, herdando as ambiguidades do Velho Testamento nos tratos entre mando secular e divino. O problema da hegemonia entre autoridades civis e religiosas já se coloca na sucessão de Moisés. Quem poderia suceder o primeiro legislador? Josué, o indicado, permaneceu em pé diante do sacerdote, definindo a sua inferioridade em face do clero. O sacerdote consulta Deus em nome de Josué (Êxodo, 28:30). Tanto o novo dirigente quanto o povo subordinam-se ao mediador entre Deus e os homens.

São várias as lutas entre sacerdotes e comandantes de Israel, no Antigo Testamento. Deus seria o único rei de Israel, sendo blasfêmia o povo desejar um governante civil. A monarquia escandaliza muitos judeus, como se vê no Livro dos Juízes: “Naqueles dias não havia rei em Israel, e cada um fazia o que lhe parecia correto” (Juízes, 21:25). Houve resistência do clero, e supostamente de Jeová, diante do novo poder real. Quando Samuel é obrigado a reconhecer a vontade popular, que exigia um rei, ele afirma em nome de Deus: “Eu (...) vos libertei da influência do Egito e da influência de todos os reinos que vos oprimiam. Vós, hoje, no entanto, rejeitastes vosso Deus, aquele que vos salvou de todos os males e de todas as angústias que vos afligiam, e dissestes: ‘Não! Constitui sobre nós um rei!’ Agora, pois, comparecei diante de Javé por tribos e por clãs” (I, Samuel, 10:17-19).

Reprodução
O Concílio de Trento A Igreja tentou resolver o conflito entre os poderes

O choque entre poder sacral e mando laico cresce ou diminui conforme a situação do povo. Quando estrangeiros submetem Israel, a religião mantém a unidade nacional. E cresce a importância dos profetas, em detrimento do líder civil. Mas este sempre está nas consciências, como promessa divina de libertação pelo Messias, o ungido do Senhor, rei e sacerdote capaz de remir o povo. Davi é o emblema desse rei. O Messias é seu descendente. O novo Davi goza da graça divina, puro de todo pecado, mas deve ser rei forte para dominar os povos.

Para Lutero, tentar juntar os reinos divino e terreno seria como juntar ovelhas e leões

O Novo Testamento aponta em Jesus os traços do Messias: ele é rei ungido por Deus e sai da árvore de Davi. A subordinação entre os poderes é pregada sem meias palavras. Quando Cristo é tentado pelo diabo, a sua resposta sobre os governos terrestres que receberia, caso negasse a Deus, é clara: “Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a Ele darás culto” (Mateus, 4, 10). No episódio do imposto pago a César, Jesus reafirma a superioridade celeste. Assim, o cristianismo reivindica, após a queda do Império Romano, a subordinação do príncipe ao sacerdócio. Nas primeiras monarquias européias, o rei ocupa um lugar hierárquico na Igreja. “O monarca era de um modo especial funcionário e um membro da Igreja; ele não era como os outros fiéis leigos, mas seria um mediador entre o clero e o povo” (Tellenbach, Gerd). A unção, os signos episcopais que lhe são dados, o seu poder de curar, a sua liderança em concílios, tudo isto promove a santificação da figura real. No fim da Idade Média, os Estados nacionais não têm coerência política e administrativa. O mesmo ocorre com a Igreja. O poder da cúria não é pleno na Europa. A Igreja, buscando poder, forja mitos como a “doação de Constantino”, carta na qual o imperador romano teria ofertado regiões inteiras ao papa. A leitura daquele texto mostra o desejo dos padres de se elevarem acima dos reinos. O suposto imperador afirma, em certa altura: “Garantimos ao sucessor de Pedro o palácio imperial de Latrão, que é superior e excede todos os palácios do mundo; e o diadema, que é a coroa de nossa cabeça...” Fraude rendosa...

O máximo da propaganda clerical surge em 1198, quando Inocêncio III compara os dois poderes. A Igreja, o Sol, tem luz própria. O mando civil, a Lua, depende do sacerdócio. Em 1296, surge a Bula Clericis Laicos, que vitupera o inglês Eduardo I. Este tentou impor taxas ao clero. A bula também ofende o rei da França, Filipe IV, que proíbe o envio de dinheiro para a Santa Sé. O príncipe cerca o papa em Anagnani e prende-o por alguns dias. Surge a reivindicação teocrática na Unam Sanctam de 1302. Segundo o papa, Cristo ensinou que existe um rebanho e um só pastor. A cúria tem poder celeste e terreno. Os protestantes não abolem a preeminência do poder espiritual sobre o civil.

2000 ANOS DE CRISTIANISMO PODER
ROBERTO ROMANO
ENTRE A CRUZ E A ESPADA - continuação
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A coroação de Carlos Magno/janela na catedral de Strasburgo na França
Coroação de Carlos Magno pelo papa
Leão II: o poder
da Igreja no estado

Lutero separa os reinos: “Cristo não trata de política ou de economia, mas, sim, de salvar os homens.” Logo,“tentar exercer o governo de todo um país, ou do mundo, com o evangelho, é como se um pastor juntasse no mesmo estábulo os lobos, os leões, as águias e as ovelhas....as ovelhas, sem dúvida, seguiriam a paz e se deixariam conduzir pacificamente. Mas elas não viveriam muito tempo, e não restaria uma só” (Lutero). Nas revoltas do camponeses alemães, Lutero dá carta branca aos senhores seculares para impor a ordem, mesmo que eles não sejam cristãos. Abre-se a via para a independência do poder civil diante do religioso.

No Concílio de Trento, a Igreja tenta resolver os conflitos entre os poderes, mas mantém a superioridade do espiritual sobre o civil. A solução esboçada por Roberto Bellarmino é o poder indireto do papa sobre os Estados, réplica ao rei Tiago da Inglaterra, que no livro Basilikon Doron prega o direito divino dos reis. Chega a era do incentivo à morte dos “reis tiranos” e os vagidos do terror com patrocínio religioso. A doutrina católica e a lógica que assegura a superioridade dos sacerdotes sobre os leigos está num conjunto textual surgido no quarto século do cristianismo, sob o nome de Dionísio Areopagita (Hierarquia Celeste e Hierarquia Eclesiástica). Tudo seria uma escala hierárquica inflexível. Deus, o único a existir de modo pleno, jorra luzes sobre os entes. Quanto mais próximo da divindade, mais um ser é superior. O universo sai da essência divina e desce aos seres ínfimos. Anjos, arcanjos, querubins são formas existentes entre Deus e os homens. Príncipes, nobres são hierarquias terrestres. O lugar dos padres nessa escala é o mais elevado. Tal doutrina se impõe até no século XX e integra o saber político da Igreja.

Prensa Três

Não é aleatório, pois, o gesto de Napoleão Bonaparte. Este, ao assumir o Império, toma a coroa das mãos do papa e a coloca sobre a própria cabeça. O Estado se define como independente da Igreja. No século XX, o cristianismo reivindica a soberania acima do mando estatal. Nos tratados com Mussolini e Hitler, o Vaticano imaginava que os fascismos acatariam as exigências religiosas. A Igreja, em frente ao Estado totalitário, repete a tese de Dionisio Areopagita. Após a assinatura do tratado de Latrão, Pio XI escreve ao cardeal Pedro Gasparri: “Na Concordata estão diante um do outro, senão dois Estados, certissimamente duas soberanias plenas (...) cada uma em sua ordem, ordem necessariamente determinada pelos respectivos fins, onde quase não é preciso dizer que a dignidade objetiva dos fins determina não menos objetivamente e necessariamente a absoluta superioridade da Igreja”. Assim, a Igreja ajudou o fascismo.

Comparados com a Igreja, todos os poderosos são modestos diletantes

Os dirigentes eclesiásticos conhecem o poder. Entre a liberdade cristã e o exercício do mando, secular ou religioso, eles não hesitam. Elias Canetti, em Massa e poder, a mais importante obra de teoria política do século XX, assim analisa a força religiosa: “Comparados com a Igreja, todos os poderosos dão a impressão de serem modestos diletantes.” Ao contrário dos líderes laicos, ela não tem pressa. Tudo nela ocorre como nas procissões. Ninguém viu uma procissão com fiéis correndo.

O mando religioso ou é uma defesa contra os abusos dos príncipes ou agrava ainda mais os referidos malefícios. Nada pior do que uma tirania com marca divina. Diz Maquiavel: “Duas coisas devemos à Igreja. Ela nos tornou covardes e ruins.” Se a frase é falsa, é preciso explicar melhor as fogueiras e o trato amigável com os ditadores modernos. Napoleão colocou a coroa na cabeça, mas o papa lá estava, advogando o seu domínio sobre o Estado. A reprimenda que ele recebeu do imperador foi merecida.

Roberto Romano, autor de Brasil, Igreja contra Estado (São Paulo, Kayrós, 1979), é professor de Ética e Filosofia Política da Unicamp.


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