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quarta-feira, dezembro 12, 2007

Correio Popular de Campinas 12/12/2007


Notas sobre a Spes Salvi (1)

Roberto Romano

No livro de M. Stolleis, A History of Public Law in Germany 1914-1945 (2004), encontra-se o relato dos impulsos científicos e técnicos, as intervenções do Estado na ordem social e vice-versa. Eles criam “a sociedade industrial onde ocorre uma proliferação de normas, antes da Primeira Grande Guerra”. Crescimento material e duplicação demográfica (em 1910 a Alemanha reúne 65 milhões habitantes) suscitam debates sobre a natureza da economia e do poderio militar-industrial, sobre os valores da ciência e da religião, desta à política e as artes. Com o darwinismo social, brotam as variantes racistas “biológicas” do anti-semitismo, as quais adquirem respeitabilidade acadêmica e política (H.F. Augstein, Race - the origins of an Idea: 1760-1850, livro de 1996). Surge o panfleto de Chamberlain, lido com entusiasmo pelo Kaiser: Os Fundamentos do Século XIX (1900). Chamberlain era ligado a Richard Wagner. Quem conhece as diatribes wagnerianas contra os judeus (extraídas de Ludwig Feuerbach) aquilata o ataque de Chamberlain.

A virulência racista traz a denúncia “das idéias de 1789” que teriam enfraquecido o povo contra seus inimigos. O comunitarismo anti-liberal implica na união “da velha oposição romântica às Luzes e à revolução com o mal estar na civilização e profundas reservas diante da democracia, liberalismo, individualismo, que deveriam ser vencidos em nome da ‘comunidade’ (Gemeinschaft), em nome do Reich e da germanidade que transcendem o Estado” (Stolleis). No mesmo terreno ressurgem as invectivas contra o “materialismo” e o mundo sem encanto. Ciência e técnica teriam gerado a sociedade mecânica. Contra “as idéias de 1789” são encontradas doutrinas: “monismo, teosofia, antroposofia, psicologia profunda” (Stolleis).

O imaginário Völkisch volta-se contra os padrões democráticos e liberais e abençoa um anti-capitalismo regressivo e procura nas “raízes da alma popular” os antídotos contra o veneno do progresso material, visto como produto da era burguesa, desprovida de transcendência, presa à finitude política, científica, mercadológica. Boa parte do alento romântico é nutrido pela Igreja Católica, com a dupla condenação do capitalismo e do liberalismo. A hierarquia não aceita a ordem capitalista, da concepção do tempo às formas políticas (Le Goff: Pour un autre Moyen Age). Isto leva à concordância tática entre católicos e socialistas, pois ambos recusam as bases da economia de mercado e o liberalismo. A diferença entre socialistas religiosos e ateus implica a atuação da Igreja na ordem pública, nos fundamentos da propriedade (esta última, para os católicos, teria a família como base), na ordenação do justo salário, etc. O bispo Ketteler ordena o “socialismo católico” e aconselha, como Bismarck (e apesar do Kulturkampf...), a intervenção do Estado nas leis trabalhistas, nos salários, na segurança social (Daseinsvorsorge). As teses “socialistas” católicas são acolhidas na Rerum Novarum (1891) e na Graves de Communi (1901). A doutrina da Igreja recusa, ao mesmo tempo, o capitalismo e o socialismo, laicos ou ateus. Para ela, as duas vertentes retiram o alento espiritual da humanidade, por causa do materialismo que renega o Eterno e os valores religiosos.

Nos anos 60, em nosso Brasil, Frei João Batista Pereira dos Santos (1913 - 1985) dirige a fábrica de móveis modernos chamada Unilabor, inspirada no pensamento de Lebret, do movimento Economia e Humanismo. As bases mais profundas daquela indústria encontram-se na doutrina social da Igreja e no socialismo cristão. Um livro publicado por Frei João Batista tem o título onde se condensa a ótica eclesiástica: Capitalismo e Comunismo, os dois chifres do Diabo. Quando a Unilabor, endividada, interrompe suas atividades, os idealizadores acusam Roberto Campos, cuja política à frente do governo militar privilegia negativamente as médias e pequenas indústrias brasileiras. Mas graves acusações são endereçadas aos comunistas, porque esses teriam boicotado a comunidade dos trabalhadores. Esta queixa, a ouvi pessoalmente do frade, nos tempos em que tive a honra de pertencer à Ordem dominicana.

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