Roberto Romano Moral e Ciência. A monstruosidade no sec. XVIII
Silence et Bruit. Roberto Romano
domingo, dezembro 16, 2007
O ESTADO DE SÃO PAULO.
Domingo, 16 dezembro de 2007
ALIAS
Revés do autoritarismo
ENTREVISTAS
Maria Sylvia de Carvalho Franco Professora titular dos departamentos de Filosofia da Unicamp e da USP
A derrubada da CPMF mostra que Lula ainda é ingênuo quanto aos limites do poder, diz filósofa
Mônica Manir
Foram mais de sete horas de sessão, que invadiram a madrugada de quinta-feira. E, com cartas-compromisso e tudo, o governo perdeu. A derrota na votação que visava a prorrogar a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) até 2011 foi o primeiro grande baque do segundo mandato de Lula, que até então navegava sobre picos de popularidade e do crescimento da economia. O Planalto conseguiu 45 votos pró, precisava de 49. Nas tais cartas-compromisso, uma delas assinada pelo próprio presidente, havia a promessa de repassar 100% dos recursos da CPMF à área da saúde. Em vão. O Senado não se enterneceu.
“O que levou à derrota do governo foi, especialmente, seu modo autoritário de atuar”, afirma a filósofa Maria Sylvia de Carvalho Franco. Nenhuma novidade nisso. Ela diz que o Estado brasileiro já teria nascido sob a mão de ferro do Executivo e do joguete - nada franciscano - do “é dando que se recebe”. Mas ameaças e barganhas não são sempre eficazes. “Nem todo mundo é venal no Senado, nem toda chantagem funciona”, afirma Maria Sylvia.
Ainda assim, ela não acredita que o Planalto tenha baixado totalmente a crista: “Para além de autoritário, Lula pratica um governo egocrata. Ele pensa que pode tudo”. Pensa até que pode lançar uma segunda versão da CPMF em 2008, cuja aprovação não a surpreenderia. “Não tem nada mais flexível do que a espinha do político brasileiro. Se precisar dobrar, dobra.”
O que pesou mais para o presidente Lula na derrubada da CPMF: a derrota econômica ou a política?
Eu não chamaria esse caso da CPMF de derrota econômica ou política, mesmo porque é muito difícil dissociar economia de política, em especial no governo Lula. A atuação do seu governo está ancorada na economia, muito mais do que esteve a de Fernando Henrique Cardoso. Foi o modo de atuação de Lula na política que o levou à derrota. Explico usando uma idéia do professor Roberto Romano, meu marido. O Estado brasileiro nasceu com a vinda de D. João como parte da Contra-Reforma, o que significou censura intelectual e controle da sociedade. O Brasil já nasceu com uma estrutura autoritária. E a ordem política brasileira continuou preservando o Executivo. Ele concentra a maior parte dos monopólios com mão de ferro em detrimento dos outros poderes. Então essa política vai para o Congresso. E nem todo mundo ali é venal, apesar da corrupção e da troca de interesses.
O fato de o governo ter ameaçado o Senado com cortes no orçamento fez diferença?
Sim. A corrupção e os interesses pequenos, quando negados, entram como forma de oposição, como aconteceu agora, quando vários senadores se imaginaram alijados de sua importância regional. É uma faca de dois gumes o governo ameaçar com corte de verbas. Ao fazer essa chantagem, tira a possibilidade de manutenção de poder desses oligarcas. Os senadores comandam grandes setores da sociedade brasileira regionalmente qualificada. Os deputados estão nesse rumo, mas não chegaram lá, têm menos possibilidade de enfrentamento. O Senado, aliás, só enfrenta quando interessa. Quando não, é conivente.
A senhora condena as barganhas do governo para aprovar projetos?
Escrevi um livro há uns 40 anos com um capítulo inteiro sobre a gênese da corrupção. Quando começou a se formar o Estado brasileiro, houve enorme concentração de poder estatal e fiscal, sem retorno para os poderes locais. Basta ler as atas da Câmara. É uma lamúria atrás da outra porque pagaram imposto e não tiveram o que esperavam. Então, desde sempre se faz a barganha, uma situação a que a gente assiste especialmente durante a discussão orçamentária do ano. Para receber, você tem que dar. E, para dar, você exige receber . E recebe por quaisquer meios, não necessariamente pelos canais estabelecidos, sancionados e legítimos. Esse circuito vem da estrutura autoritária do Estado. E o Lula é o rei de todos eles. É uma personalidade autoritária.
O Senado passou por sua mais longa crise. É possível que, diante da Casa desmoralizada, o governo a tenha visto como uma instituição mais do que nunca subalterna?
O governo pode ter pensado isso, o que não ocorreu. Lula perdeu a noção de medida, não percebeu o que enfrentava. Houve profunda alienação da existência do outro, um desrespeito da capacidade de atuação e de consciência do próximo. Se fizerem uma estatística da retórica do Lula, “eu” é a palavra que mais aparece. Seria, para além de um governo autoritário, um governo egocrata. Lula pensa que pode tudo. Porque com o autoritarismo vem a onipotência. Corre o mensalão, ele diz: “Não vi nada, não sei de nada”. Com o Senado não pode fazer isso porque os senadores sabem muito bem o que está acontecendo.
Fontes do governo dizem que o presidente sabia da derrota e, ainda assim, mandou votar. E que já havia ministros se movimentando para apresentar um programa de cortes para o Brasil sem CPMF.
É muito possível. Ele é, por excelência, a pessoa que tira partido do sacrifício. É o cordeiro sacrificado, o coitado. A despeito disso, continua o político que faz acontecer. Fazer-se de vítima é parte da retórica dele também.
“São coisas da democracia”, declarou Lula, ao se referir à derrocada da CPMF. A senhora acha que o presidente se comportou bem? Se fosse um Chávez, talvez tivesse dito “vitória de merda”...
Não. O que disse foi péssimo! Se fosse primeiro-ministro de qualquer lugar, cairia agora. Cairia irremediavelmente. Ele teve um voto enorme de desconfiança do Congresso. Mas Lula é um sobrevivente. Imagine você em que situação ficaria se afirmasse: “Essa gente agiu mal por causa disso, por causa daquilo”. Imagine se enfrentasse os opositores. Outro traço do autoritário é ser mimado e covarde. Morde e late nas horas em que está por cima e se esconde atrás de uma retórica conivente quando por baixo. Veja como agiu com o Chávez. O presidente da Venezuela usurpou uma empresa nacional. O que Lula disse? “Ele tem direito de fazer isso porque o petróleo é do Chávez”. Em primeiro lugar, o petróleo é do povo. Em segundo lugar, o Chávez, agindo do jeito que agiu, quebrou a soberania do Estado brasileiro.
O que o presidente poderia dizer em vez de “são coisas da democracia”?
Ele não tinha o que dizer. Quem diz isso não tem coragem de enfrentar o problema. Leia um capítulo de República, de Platão, em que faz crítica à democracia. Platão mostra como a democracia degradada promove inversões de valores: a covardia é chamada de coragem, o gasto excessivo, de liberalidade. E tem a figura do tirano. É aquela que, ao mesmo tempo que aceita toda a lisonja, não concorda com nenhuma crítica. É esse o caso do Lula. Quem o critica tem de pedir desculpa pública depois, como foi o caso do Tarso Genro.
O País está perto de fechar o ano com um PIB pelo menos 5% superior ao de 2006. Por que o vigor da economia não contou pontos para o governo no caso da CPMF?
Há uma frase de um célebre historiador inglês, Christopher Hill, falando sobre a democracia e a liberdade, em que ele pergunta “Liberdade para quem?” A economia brasileira está boa. Boa para quem? Para a classe dominante. Quando se diz que a estrutura da economia brasileira está sólida, o que está sólida é a estrutura financeira que privilegia enormemente a classe dominante. A economia domiciliar, da pequena propriedade, por mais que façam propaganda de que está crescendo, plantando mamona e afins, não cresce. A economia está boa para quem exporta, para quem importa e para quem se locupleta do movimento financeiro. Não está para o assalariado, não está para a vida pública.
E a aprovação de 51% da população ao governo? Deve ser desconsiderada?
Ela está gerenciada.
Como assim?
O que significam milhões de beneficiados com as bolsas todas? Se você conversa com qualquer desprivilegiado com consciência política, o que se sente é que essas formas de pseudovalorização de grupos minoritários na verdade são uma nova forma de discriminação. O negócio não é esse. O negócio é dar educação pública para todos, em condição de competir em escola superior, por exemplo. As cotas são uma forma de autoritarismo do bem público.
José Múcio, ministro das Relações Institucionais que assumiu o lugar de Mares Guia, diz que é preciso repensar as relações entre os poderes. Com a perda de homens fortes, como José Dirceu, ou providenciais, como Mares Guia, o presidente Lula está sem um articulador político de peso?
Veja você o último articulador político dele. Está sob suspeita de corrupção e tudo. O telhado de vidro é de muita gente. Acho que, na verdade, não existe a figura do estadista em lugar nenhum do governo. A política miúda feita, por exemplo, pelo Ministério das Relações Exteriores virou um balcão que vai para a China fazer um negocinho, vai para a Europa fazer outro negocinho, cede na hora em que há uma ameaça à soberania nacional. Não tem estadista. Ponto final. É um espaço onde atuam pequenos interesses de politicagem ou grandes interesses econômicos. O que menos conta é o coletivo e o bem público. Não tem gente com um raio de visão que abarque o todo. Acabou. Não tem.
A senhora acha que cabe o rótulo de “mentor” dessa derrota do governo ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso?
Fernando Henrique é um bom articulador. Pode-se dizer o que for dele, mas FHC sabe mexer os pauzinhos, melhor ainda quando está nos bastidores. Isso, a eminência parda, ele toda a vida fez bem. É um dom de sua personalidade. Que é possível que tenha sido o mentor da derrota, é.
Em que ele estaria apostando?
Fernando Henrique é uma pessoa vaidosa. Você sabe disso, o mundo inteiro sabe. Os que são da geração dele - eu, por exemplo - supunham que tivesse um interesse pessoal, mas que o veículo desse interesse pessoal fosse o interesse coletivo. Apostavam que ele levaria o País consigo. Ledo engano. Ele construiu o prestígio dele, e o Brasil ficou na situação que ficou, com esse conjunto alucinante de privatizações. Não digo que toda privatização tenha sido deletéria, mas algumas foram. Não só as privatizações, mas sobretudo a política financeira. Uma coisa desastrosa.
Mas o que ele deseja agora?
Se é uma pessoa vaidosa e empreendedora, está ameaçadíssimo pela geração posterior. Está ameaçado pelo José Serra, está ameaçado pelo Aécio Neves, que o põem de escanteio. E ele não está para isso. Falo isso baseada no tipo de personalidade dele. O Serra estava muito empenhado na aprovação da CPMF. Com o veto à contribuição, o prestígio do FHC aumentou enormemente. Se é verdade que foi o mentor, que articulou na sombra, reafirmou seu poder. Avisou: “Vocês não sabem com quem estão lidando”.
FHC também foi autoritário quando presidente?
Era e é autoritário, mas de outro jeito. É tão vaidoso quanto o Lula, tão mimado quanto o Lula, mas tem um tino para saber o que está acontecendo. O Lula não tem. A capacidade de negociação de FHC não foi edificada no sindicalismo. O sindicalismo é uma escola de negociação extremamente autoritária, em que você lida com um conjunto de interesses unificados. Ao enfrentar o Congresso, as coisas mudam. Há um volume enorme de interesses lá, é uma rede intrincada. O FHC não falava em nome da universidade inteira. Quando ele fez o treino para o autoritarismo dele, fez de outro jeito. Não tem a ingenuidade de Lula com relação aos limites do poder. Ele sabe que o poder tem limites e sabe contorná-los. O Lula, não.
Na carta-compromisso, o governo prometeu vincular 100% da CPMF à saúde por um ano, atrelado à reforma tributária. FHC diz que só a reforma tributária não dá, é necessária a fiscal também. E, aí, ele chuta de novo o governo, cujas despesas cresceram. Afinal, teremos reformas?
Isso vai depender muito da conjuntura que vem aí. Se o Lula achar que não tem saída, que se não fizer essas reformas será impossível aumentar a arrecadação, então ele faz. Lula precisa de dinheiro. Essa derrota pode ser indício de que qualquer iniciativa de terceiro mandato está mesmo fora. Por mais que diga que não quer, ele não quer é outra coisa. Desse ponto de vista, essa perda na negociação da CPMF foi salutar para o País, para impedir uma nova ditadura. Se o País nasceu com essa vocação autoritária, se teve duas ditaduras no século 20 do tamanho que teve, você imagina que desgraça seria um terceiro regime autoritário. Chávez foi derrotado na Venezuela, isso foi um alerta para Lula.
O governo está acenando com uma nova “contribuição” para a saúde no ano que vem. Ele tem chance de emplacá-la?
Seria outra medida autoritária. A questão é que não existe oposição. Foi uma coisa conjuntural. E o Legislativo vai muito pelos ventos do imediatismo. Se convier a ele refazer a relação de subserviência com o Lula, ele refaz. Agora, se a contribuição for algo que interessa a governadores do PSDB, por exemplo, eles vão entrar na mesma linha de fogo que entraram agora, porque Fernando Henrique não é fácil. Se ele realmente articulou essa derrota, não vai ser tranqüilo contornar isso. Ao mesmo tempo, não tem nada mais flexível do que a espinha do político brasileiro. Se precisar dobrar, dobra.
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“No governo não tem gente com um raio de visão que abarque o todo.Não tem estadista”
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“Se é verdade que FHC foi o mentor da derrota, ele reafirmou seu prestígio e poder”
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