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quarta-feira, dezembro 19, 2007

CORREIO POPULAR DE CAMPINAS 19/12/2007


Notas sobre a Spes Salvi (2)

Roberto Romano

O tema da Encíclica publicada por Bento XVI é a esperança. Após a ruína da URSS e satélites, parece anacrônico discutir os elos entre capitalismo e socialismo. Mas para a Igreja, ambos são indesejáveis por dispensarem Deus da vida humana. O papa cita autores da Escola de Frankfurt como Adorno e Horkheimer, menciona os textos de Marx, mas deixa na sombra o alvo de seu ataque, a filosofia de Imanuel Kant. Silêncio estratégico. Sigo a exposição de Stolleis sobre a ciência jurídica na Alemanha antes do nazismo (A History of Public Law in Germany, 1814.1845). A insatisfação com “as idéias de 1789” leva os alemães (cultivados, segundo as observações de Karl Manheim, na democracia de massa que tudo nivela) às doutrinas inimigas da ciência e da técnica. O misticismo penetra nas camadas artísticas e jornalísticas e atinge o pensamento jurídico. Sempre que existe polêmica e ideologia, os inimigos em presença são desfigurados. Os sectários de uma ou outra tendência percebem as idéias alheias sob uma luz falsa.

Entre as “idéias de 1789”, importa a noção de esperança no progresso humano. Não se trata de um imaginário simplório, como afirmam os conservadores como De Maistre e seus herdeiros. Tomo o verbete “Esperança” da Enciclopédia (não citado por Ratzinger, “et pour cause”): tal palavra, diz Jaucourt (aprovado por Diderot) é “um contentamento experimentado pela alma, quando ela pensa no gozo de que provavelmente terá de algo próprio para lhe dar satisfação”.Gozo provável. Na vida tudo é provável, diz Diderot no Plano de Uma Universidade, pois “fora da matemática, o resto é apenas probabilidade, que indica a opção mais segura ou menos incerta, e consola quando o evento não corresponde à espera bem fundamentada”. Voltemos à Enciclopédia: “nossa vida é ainda mais feliz, quando esta esperança admira um objeto de natureza sublime. É por tal motivo que a esperança religiosa sustenta a alma entre os braços da morte e mesmo no meio dos sofrimentos”. Mas tal espera pode ser “um espelho mágico que seduz com falsas imagens dos objetos. Ela nos enceguece com ilusões, nos engana como o vidreiro dos contos árabes, que num sonho lisonjeiro deu o pontapé em sua pequena fortuna. A esperança desta natureza, nos ilude com fantasmas encantadores, nos impede o repouso e o trabalho. (...) A esperança é presente da natureza que não poderíamos superestimar; ela nos conduz ao fim de nossa vida por uma senda agradável”. Os homens, “longe de se guiar pela razão, forjam monstros que os intimidam, ou quimeras sedutoras”.

A esperança é tratada com o colorido spinozista. Mas a Enciclopédia ainda expõe o sentido cristão: virtude teologal e infusa, com ela se espera que Deus conceda a graça. “Pode-se ter fé sem esperança, mas não esperança sem fé; pois como esperar aquilo no qual não se acredita? O apóstolo ensina que na fé está a base e o fundamento da esperança, est autem fides sperandarum substantia rerum” (Hebreus, 11), mas pode-se esperar sem ter caridade. Daí que os teólogos distinguem duas esperanças, uma informe encontrada nos pecadores, outra formada ou aperfeiçoada pela caridade, nos justos. O efeito da esperança não é produzir em nós uma certeza absoluta de nossa santificação, de nossa perseverança no bem, e de nossa glorificação no céu (...) mas estabelecer nos corações a simples confiança fundada na bondade de Deus e nos méritos de Cristo, de que Deus nos concederá a graça para vencer as tentações e praticar o bem e merecer a glória, porque o homem deve sempre trabalhar com temor e tremor na obra de sua salvação, não pode saber nesta vida se é digno de amor ou de ódio”. No item “mitologia” do verbete, o escritor afirma: “os poetas dela fizeram uma das irmãs do sono que interrompe as nossas penas e da morte que as finaliza”.

O verbete elenca o recusado pelas Luzes. Doce embalo, a esperança gera monstros e quimeras sem a razão. Em seu lugar na teologia, ela deve ser disciplinada no campo da finitude. Quando suas imagens são tomadas como verdadeiras, o sujeito tomba nas armadilhas da representação. Esperança sem racionalidade é sono dogmático, do qual é preciso despertar. Kant, leitor da Enciclopédia e admirador de Diderot, recebe de Hume (outro filósofo ligado às Luzes) o impulso para deixar o sono dogmático.

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