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quarta-feira, dezembro 26, 2007

Publicada em 26/12/2007


Notas sobre a Spes Salvi (3)

Roberto Romano

No século 20, o pensamento kantiano se divide em dois segmentos, um ligado à ciência e outro próximo da razão prática. Ambos se dirigem para a esperança, mas em lados diversos do sujeito humano, nos quais o céu estrelado [anagrama da ciência newtoniana] e o imperativo categórico [a lei moral, fonte de liberdade] desvelam faces do sublime: "Zwei Dinge erfüllen das Gemüt mit immer neuer und zunehmender Bewunderung und Ehrfurcht, je öfter und anhaltender sich das Nachdenken damit beschäftigt: der bestirnte Himmel über mir und das moralische Gesetz in mir."
(Immanuel Kant, Kritik der praktischen Vernunft, 1788) É bom recordar que o Sublime, aqui evocado pelo "respeito" (Ehrfurcht)que substitui o medo (Furcht) nas consciências esclarecidas pela razão e suavizadas pela arte, marca a frase kantiana, coroada pela singela lembrança de Platão, sobre o filosofar enquanto força que toma o amigo da sabedoria num impulso da maravilha. Longe estamos do que é designado, nos manuais católicos e conservadores de filosofia, do "racionalismo intelectualista", suposto causador do "desencanto do mundo". A má fé, como bem disse um dia Merleau-Ponty, é a técnica do apologeta, seja ele católico, marxista ou...ateu. (Cf. Foi et Bonne Foi in Sens et Non Sens).

Só posteriormente, entretanto, a integralidade do sistema é valorizada em estudos sobre a Crítica do Juízo. Os herdeiros de Hegel de marca romântica pioram o marxismo dando-lhe o tom dogmático de metafísica sem epistemologia. Por mais que Marx tentasse instalar sua pesquisa no campo da crítica (em especial da economia política, visto que na juventude ele dependeu das críticas à religião e ao direito, na chamada “esquerda hegeliana”) prevaleceu o materialismo histórico e dialético, invenção de Engels. Na Dialética da Natureza estavam dadas as bases para a redução da crítica em crença “científica”, com padrões positivitas de um lado e delirante panlogismo de outro. Quando as consciências supostamente teóricas do Partido Comunista da URSS e da Europa estavam aptas a repetir banalidades empobrecidas do século 18 (como as formulações “dialéticas” de Roger Garaudy e de seus pares inquisidores) o que restou da crítica nas suas hostes é só o nome. Meia dúzia de fórmulas rígidas substituiu o pensamento.

Para citar um exemplo brasileiro dessas conciências sem crítica, vejamos o que diz um militante brasileiro sobre os “debates” no Partido orientado pelo Kremlin: “Nas raras vezes em que se discute, o objetivo da discussão é sempre o de discutir para assimilar (preste-se atenção à palavra, RR) o pensamento da direção (...) Ou melhor: não se discute, pedem-se esclarecimentos. Quando alguém diverge é imediatamente admoestado: ‘Você é o único que discorda’, ou: ‘Quer o camarada enxergar mais e melhor que a direção?’ , e o audacioso indagador chega a conformar-se: se sou só eu quem discorda, quem deve estar errado sou eu” (A. Barata, A Vida de um Revolucionário, 1978). O trecho, eu o retiro do mestrado defendido na Unicamp por S. J. Rückert, Persuasão e Ordem, em 1987. Tal servilismo veta o Sapere aude kantiano [herança da poesia clássica e do pensamento filosófico romano] e toda consciência que leve o Partido, com sua alegada majestade, ao tribunal da razão.

Tal endurecimento da inteligência não é obra solitária do estalinismo. Proclama Trotski, no 13 Congresso do PC da URSS: “Ninguém dentre nós (...) nem pretende nem pode ter razão contra seu partido. Definitivamente, o partido tem sempre razão (...) Não se pode ter razão a não ser com e para o partido, porque a história não tem outras vias para realizar sua razão”. (citado por Cl. Lefort, Un homme en trop, Rückert p. 44). A teoria (uma ideologia de granito, diz Lefort) substitui a pesquisa empírica e a crítica lógica. O militante não pensa com seus próprios recursos, recebe o mundo e a lógica no Partido, onde assimila verdades geradas por Stalin, Trotski, Prestes. A teoria jamais está errada. Os que a aplicam, salvo os excepcionais indicados, cometem “desvios” doutrinários. O remédio é inculcar nas mentes a “linha” correta. Donde a conclusão, para os dirigentes revolucionários de que o importante não é gerar pessoas críticas (incômodas...) mas formadas pelo “espírito de disciplina e intransigência na luta pela aplicação da linha no partido e contra todos os desvios do marxismo-leninismo” (Prestes, Informe do balanço do Comitê Central do PC do B ao 4 Congresso do Partido Comunista do Brasil, Revista Problemas, n 64, 1954). Para uma análise certeira e brilhante da ausência de epistemologia digna deste nome (o outro lado do fundamentalismo “dialético” nos vários setores marxista), ler Orlando Tambosi, O Declinio do marxismo e a Herança Hegeliana, Lucio Collettti e o Debate Italiano (1945-1991, Ed. UFSC).

Com essa fé em deuses que exigem carne militante, nenhuma surpresa ao surgir uma corrente marxista que pretendeu resgatar valores religiosos, culturais e políticos anteriores à Proletarskaya kultura. Para tal setor, o marxismo partilha o materialismo da burguêsia indústrial. Ernst Bloch une Marx e utopia, o que lhe traz a desconfiança dos dirigentes partidários, apesar das suas declarações de fidelidade a Lenine e a Stalin, à RDA e à URSS. Em 1951, ele foi aposentado sem pedir e passou a ensinar em Tübingen. Logo após, o Partido efetivou uma Conferência sobre as questões trazidas pela filosofia de Bloch. Nela, os donos da teoria oficial acusavam o seu anti-materialismo e idealismo. A principal acusação foi o nexo entre seus escritos e o milenarismo judeu-cristão. A obra importante de Bloch é o Princípio Esperança.

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