DISCURSO DE AGRADECIMENTO À B ´NAI B´RITH PELA OUTORGA DA MEDALHA 2007 DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS.
Agradeço à B´nai B´rith do Brasil a honra desta noite. E seguem meus agradecimentos aos integrantes da B´nai B´rith internacional, cuja voz é respeitada sempre que se pronuncia na defesa dos direitos humanos. Agradecimento especial ao Dr. Alberto Liberman, que me acolhe sempre com a gentileza nobre das grandes personalidades. Espero merecer a deferência e prosseguir a luta pelos direitos humanos em nosso país.
Agradeço à minha mulher querida, Maria Sylvia. Sem o nosso amor, eu não teria alma nem forças para combater, na vida pública, em defesa dos princípios inalienáveis que norteiam o saber e a ética. Com ela aprendo a inteligência do mundo e a força do coração. Agradeço ao Dr. Jacó Guinsburg e à Dra. Gita, cuja sabedoria e bondade me ajudam a conhecer um pouquinho mais da vida judaica e da ordem intelectual envolvente. Agradeço à Dra. Kenarik e ao Dr. Marcio Sotello Felippe, mais do que amigos, irmãos na busca de um mundo justo, num país injusto e triste. Agradeço aos amigos Dra. Maria e Major Adilson, pessoas retas que lutam pela justiça e paz e pela ciência no Brasil. Agradeço ao meu primo João, cujo nome é igual ao de meu pai, e na sua pessoa agradeço à minha familia.
“Pereça o dia em que nasci e a noite que disse : foi concebido um homem! (...) Aquela noite! dela se apoderem densas trevas; (...) seja estéril aquela noite (...) que não veja as pálpebras dos olhos da alva, pois não fechou as portas do ventre de minha mãe, nem escondeu dos meus olhos o sofrimento” (Jó, 3). Do justo fiel aos nossos dias, a humanidade repete a maldição da noite, território em que o mal impera como se não existisse bem algum. Os nomes do abismo são infinitos: Satan, Lúcifer, o Maligno. Na modernidade, ele deixa de ser indicado por sujeitos e se abriga na taxinomia, se impessoaliza em fichas terminadas em “ismo”, fascismo, nazismo, racismo. Mas a sua virulência, com semelhantes classificações, não se amaina. Ela, pelo contrário, se potencia ao máximo.
A noite persegue a experiência do Ocidente, decreta a sorte das revoluções e das reformas religiosas que trazem a liberdade e, num pêndulo cujo sinal é satânico, ameaça tragar corpos e almas. O deleite trazido pelo Mal, fonte primeira do sublime, atrai as feras humanas com suave canção, antes de se transformar em fúria assassina e genocida. Dança de bacantes presas pelo horror e prazer, o jogo entre o santo e o blasfemo definiu toda uma cultura elevada e, ao mesmo tempo, rastejante. Jamais o malefício aparece em toda sua monstruosidade. Pelo contrário ele, como Lúcifer “Do brilho original inda conserva boa porção (...) de sua glória o resplendor mais vivo (Tal é o sol nascente quando surge por cima do horizonte nebuloso,de sua coma fúlgido privado , ou quando posto por detrás da lua, envolto no pavor de escuro eclipse, desastroso crepúsculo derrama pela metade do orbe” (Paraiso Perdido, Canto I).
Se de Milton, o cego bardo que animou a Revolução inglêsa seguimos para o século das Luzes, notamos que os mais ardentes seguidores da ciência, das artes, das técnicas, não deixam de perceber as armadilhas do Mal e o desfalecimento do verdadeiro, do bom, do belo. Mas calculam e apostam no bem e dão como prova o cálculo das probabilidades. Este é o sentimento de Diderot na Enciclopédia : “a conservação e o crescimento do gênero humano é prova segura de que existe mais bem do que mal no mundo; pois uma ou duas ações podem ter influência funesta em muitas pessoas.Ademais, todos os atos viciosos tendem a destruir o gênero humano, pelo menos a operar em sua desvantagem e diminuição; é preciso o concurso de um grande número de boas ações para conservar cada indivíduo. Se o número de ações más ultrapassasse o das boas, o gênero humano deveria acabar. (...) O gênero humano não subsistiria se o vício dominasse, pois é preciso o concurso de muitas ações boas para reparar os danos causados por uma só ação má; um crime basta para arrancar a vida de um ou muitos homens, mas quantas ações boas devem concorrer para conservar cada indivíduo ?”. E Diderot cita o matemático Leibniz (a quem citarei mais adiante, mas louvado por um inimigo das Luzes, o jurista Carl Schmitt) em reforço deste cálculo. Este é o “otimismo” das Luzes que não deixa de lado o mal, mas imagina provar que as duas possibilidades, o abismo ou a conservação humana, existem e são responsabilidade dos indivíduos, dos grupos, dos povos. Quem escreveu O Sobrinho de Rameau, sabe até onde pode ir a baixeza ou a elevação da Humanidade.
Com o fim da Revolução francêsa e o advento da ditadura napoleônica, seguida pelas piores negações dos direitos humanos em nome de Deus, da sociedade ou do Estado, veio o culto da noite. Esta, inimiga a ser vencida pela justiça de Jó e pela mudança radical dos costumes políticos, com o banimento dos privilégios sacerdotais e aristocráticos, algo gerado por Francis Bacon e aceito pelos enciclopedistas do século 18, torna-se com o romantismo conservador o alvo a ser alcançado, o ambiente “natural” dos seres humanos. A própria escolástica indicava, com Tomás de Aquino, que nada temos em comum com o morcêgos, porque ansiamos pela luz do intelecto e da ciência. O romantismo entôa o cântigo da ignorância e do aristocratismo dolorido, louva a noite como emblema de um mundo reencantado, no qual as ciências seriam poéticas e proféticas. Assim, Novalis canta a noite e a morte num mesmo fôlego : “É na morte que o amor transforma-se em mais doce; para o amante, a morte é uma noite nupcial, segredo de suaves mistérios”. Um comentador, Avni, acrescenta: “o sonho de Novalis sobre um além transforma-se (...) no culto à morte, com elementos dionisíacos” (The Bible and Romanticism).
O canto de Novalis diz que os homens das Luzes, soberbos e sacrílegos, teriam aprofundado a queda iniciada por Lúcifer. No Vº Hino à Noite, o poeta proclama, para além da modernidade, “a aurora do nascente esplendor do novo mundo”. Entra em cena o futuro, palavra hipnótica do romantismo em todos os seus matizes. Mas a colheita romântica tem seu fruto venenoso em Richard Wagner. “Para quem contempla amorosamente a noite da morte; para quem ela confiou seu profundo segredo; para aquele homem, as mentiras diurnas, glórias e honra, poder e fortuna, com todo seu brilho soberbo, se dissipam com vã poeira de sóis (...) Nas quimeras derrisórias do dia, só uma aspiração lhe resta: o desejo da Santa Noite, onde, desde toda eternidade, a única verídica, o êxtase amoroso o faz estremecer!”. O sonho de Wagner se apresenta no delírio nazista, no culto da Morte genérica exercitada pelas SS, cujo uniforme negro ostenta a caveira amaldiçoada.
Com o elogio dos sentimentos contra a ciência e a razão, mais a recusa da moderna democracia, brota no terreno noturno a flor pestilenta do mal, a negação dos direitos humanos em prol do futuro, do povo, mesmo do ser divino. Este impulso rumo ao obscurantismo encontra sua potência nos românticos Novalis, De Bonald, Donoso Cortés. Por exemplo, para De Bonald, “a Revolução francêsa começou com a Declaração dos Direitos do Homem; só terminará com a Declaração dos Direitos de Deus” (Teoria do Poder político e religioso). E se proclama, a partir daí, no pensamento contrário à ciência e à democracia, que “a sociedade é a verdadeira e mesmo a única natureza do homem (...) os indivíduos só vêem os indivíduos como eles...o Estado só vê e só pode ver o homem em família, como ele só vê a familia no Estado”. Deste modo, o programa totalitário estava pronto, pois o essencial é, ainda cito De Maistre, para a harmonia impere, “conservar as familias e consumir os indivíduos”. A doutrina sobre o indivíduo, em De Bonald, é importante para se compreender a justificação moderna das ditaduras, inclusive a de Getúlio Vargas: o indivíduo, proclama De Maistre, “só tem deveres e não direitos. Ele tem deveres para com a natureza humana, para com a sociedade e para com Deus que tudo envolve ...o direito do povo a governar a si próprio é um desafio contra toda verdade. A verdade é que o povo tem o direito de ser governado!”. Tais palavras ecoam na fala do ditador brasileiro, o mesmo sob cujo governo medrou o anti-semitismo, a tortura, a violência jurídica imposta pela escrita de um discípulo brasileiro de Carl Schmitt, Francisco Campos. Em discurso feito no dia 1 de maio de 1938, assim falou Getúlio : “O Estado não conhece direitos de indivíduos contra a coletividade. Os indivíduos não têm direitos, têm deveres! Os direitos pertencem à coletividade!”.
No mundo moderno, o elogio das trevas e a recusa da ciência e da razão, preparam o terreno imundo que gera várias noites: a Noite dos Cristais, a Noite das Longas Facas, a tremenda noite dos campos de concentração. O pressuposto, nos campos, é o mesmo anunciado por De Maistre contra a Revolução francêsa. Trata-se de impôr aos indivíduos e aos povos (“crianças”, na definição de Novalis) a marca do Estado eugenista de corpos e almas. Numa frase metade otimista, metade trágicamente realista, Bruno Bettelheim assim justificava a sua pesquisa sobre o comportamento dos indivíduos presos nos campos de concentração : “Hoje os campos alemães de concentração pertencem ao passado. [Esta é a metade otimista, RR] Mas não podemos igualmente estar certos de que a idéia de mudar a personalidade para atender as necessidades do Estado é igualmente uma coisa do passado. Eis porque a minha discussão está centrada nos campos de concentração como instrumentos para mudar a personalidade e produzir sujeitos mais úteis ao Estado total”. (“Behavior in Extreme Situations: coercion” in The Informed Heart).
Que Bettelheim estava certo, sobretudo na parte realista de suas frases, é testemunha todo o trabalho de bioética que em nossos dias se preocupa em mostrar a tecnologia de amoldamento das vontades individuais ao reclamos do Estado. Cito apenas o livro de Jonathan D. Moreno (Minds Wars, Brain Research and National Defense) no qual são descritos sine ira et studio as técnicas de manipulação e de intervenção técnica para impôr comportamentos, com a neurociência.
Mas a noite da não ciência, o mundo sentimental e romântico, no meu pequeno entender, acendeu a retórica totalitária e genocida. Se o nazismo, o estalinismo, o fascismo usaram saberes científicos e bélicos para esmagar milhões de seres, cabe encontrar as raízes do mal no ser humano que produz ciência mas a dirige para a sua sede arrogante de poder. Permitam que eu discorde, portanto, das doutrinas expandidas pelo núcleo inicial da chamada Escola de Frankfurt. Não aceito que o Holocausto seja o fruto das Luzes modernas. Menos ainda que o genocídio só se tornou possível com a Ilustração e a modernidade, como afirmam Theodor Adorno, Max Horkheimer na Dialética das Luzes, e mais recentemente Zygmund Baunan, em Modernidade e Holocausto. Para semelhantes autores, a modernidade não enxerga na sociedade uma ordem ou crescimento orgânico, como entre os românticos, mas a construção técnica de um ente maquinal, obra de engenharia, que deve atender a fins racionais alheios à sua vontade e desejos. Nesta base estaria a força para se efetuar o extermínio dos não saudáveis. Tal projeto de engenharia social , diz um escritor de hoje, “depende de dois pilares das Luzes: burocracia e ciência. A Ilustração não pode ser mais vista como um movimento de idéias, como em Ernst Cassirer, mas como algo conduzido por um vasto número de burocratas que empurrou as políticas de Estado no século 18 para os princípios mercantilistas (...) a importância destas mentes treinadas na universidade e reformistas na administração foram ressaltadas por Franco Venturi. Foi possível que burocratas bem intencionados adiantassem os mais desumanos propósitos, pois a burocracia depende da ação indireta. Burocratas são separados por muitas repartições dos humanos cujas vidas administram. (...) A racionalidade burocrática tende a se tornar independente das normas éticas. O aparelho burocrático torna-se rápidamente auto impulsionado, fazendo perder a vista sobre os seus propósitos no mesmo ato em que elabora com entusiasmo os seus meios” (Ritchie Robertson: The ´Jewish Question´ in German Literature, 1749-1939: Emancipation and its Discontents).
Sabemos perfeitamente até onde pode chegar a burocracia. Mas penso que lhe atribuir a causa magna do Holocausto é não apenas uma forma de dizer meia verdade, como garantir a indivíduos concretos desculpas para sua entusiástica adesão ao poder que planejava o morticínio desde longa data, antes mesmo de chegar à direção do Estado. Porque desculpa é o que enxergo da defesa escrita, entregue em 13 de maio de 1947 por Carl Schmitt a Robert K, Kempner, que a recebeu em nome do Tribunal de Nuremberg. A Corte pergunta ao jurista que fundamentou as decisões de Hitler apenas isto: “por que os Secretários de Estado seguiram Hitler?”. Resposta de Schmitt: “a burocracia ministerial alemã, proveniente dos mais altos gráus da carreira, titular substancial do sistema (...) expoente típica do estrato decisivo da burocracia alemã, que em 1933 se colocou, sem resistências dignas de nota, a serviço de Hitler. Para esta burocracia...a legalidade ainda não era o simples oposto da legitimidade, mas uma forma de manifestação desta última”. De fato, afirma ainda Schmitt mais adiante, “a conquista do poder por Hitler, aos olhos da burocracia alemã, não era ilegal. Não o era também para a maioria do povo alemão e nem para os governos estrangeiros que mantiveram relações diplomáticas sem julgar necessário um novo reconhecimento do direito internacional, como seria o caso se houvesse ilegalidade. Nem existia, contra Hitler, algum contra-governo, seja em território alemão, seja no exterior, da parte de exilados. A chamada lei dos plenos poderes de 24 de março de 1933 tolheu toda hesitação e agiu como uma legalização geral e global, tanto na ocasião, no confronto com os precedentes de fevereiro e março de 1933, quanto para todas as ações futuras” (“O problema da Legalidade” ).
Prestemos atenção à ultima frase: “quanto para todas as ações futuras”. Dizer que a culpa do Holocausto reside na burocracia e na sua racionalidade sine ira et studio é aceitar que ela, de fato, desvincula-se de seres humanos com poder de plena decisão, pensamento, vontade, desejos. Quando a lei dos plenos poderes foi arrancada, o Reichstag agoniza sob o tacão de Hitler, que ainda engatinha no poder. O Chanceler do Reich exige do Parlamento a aprovação da Lei. No debate ocorrido, Hitler toma a palavra e ameaça os deputados do Zentrum e os social-democratas. Após a réplica de Otto Wels (ainda é possível replicar naquele instante...) o Führer responde "com uma observação reveladora; solicitava (a lei de plenos poderes) do Reichstag alemão, unicamente "em respeito à legalidade" e por motivos psicológicos, "conceder-nos isto que teríamos podido obter de qualquer outro modo". Comenta Joachim Fest:"A resposta de Hitler assemelhava-se, pela rudeza cheia de um tom de bravata e o prazer embriagador de arrasar o adversário, à réplica que ele mesmo formulara em setembro de 1919, quando um orador acadêmico, empregando entonação professoral, desatara pela primeira vez as veias da eloquencia hitleriana, fazendo o bravo Anton Drexler ficar estupefato". (Adolf Hitler, J. Fest).
A defesa de Carl Schmitt ao Tribunal de Nuremberg é indecente e covarde, pois se esconde sob a desculpa proporcionada pela burocracia, para dissimular o fato mais virulento de sua própria carreira jurídica, o seu entranhado racismo e anti-semitismo. Em livro precioso editado há pouco tempo atrás, Yves Charles Zarka demonstra o quanto o jurista de Hitler exibiu, para quem desejasse saber, o seu desprezo e ódio racial. Assim, para citar apenas um exemplo estratégico, quando se fala da suposta culpa da razão científica e técnica pelo Holocausto, Schmitt escreveu na revista nazista Westdeutscher Beobachter (31 de maio de 1933) um artigo intitulado “Os intelectuais alemães”. Nele, afirma que definir o espirito ou a inteligência sem ligação com o povo é comprometer o sentido do próprio espírito. Na verdade “nenhum entendimento de um indivíduo único pode se subtrair ao todo, à totalidade de sua existência (Dasein) concreta, e está aí precisamente o seu vinculo com o povo”. Pensar de maneira diferente, arremata, “seria fazer como se a geometria clássica tivesse podido ser inventada tanto por um negro inteligente quanto pelo grego Euclides, e como se o gênio matemático do filósofo alemão Leibniz fosse pensável do mesmo modo, em época diversa entre os mexicanos ou siameses”. O racismo e o anti-semitismo movem o jurista. Ao falar de Einstein, diz que o físico odeia os alemães com veneno, precisamente “quando ele especulava como relativista sobre os átomos, parece que ele estava ligado, em cada uma de suas fibras, incluindo a de seu cérebro, ao povo ao qual ele pertence, e à situação política deste seu povo”. (Un detail nazi dans la pensée de Carl Schmitt).
Hoje a noite retorna ao mundo por muitas frestas. A pior é a sobrevivência do nazismo racista. Como diz Victor Klemperer, “um dia a palavra ENTNAZIFIZIERUNG terá sido atenuada, quando a situação que ela pretendia acabar não mais existir. Mas se isto vai ocorrer um dia, não o será ainda hoje, porque não é apenas os atos nazistas que devem sumir, mas também o enquadramento da mente nazista, o tipico modo de pensar nazista e seu seminário, a linguagem do nazismo” (Lingua Tertii Imperii: Language of the Third Reich). Herbert Marcuse mostra, em O homem unidimensional, o peso das siglas na tarefa de eludir e iludir as massas no processo de amestragem autoritária. Assim, diz ele, a palavra ONU é usada para esconder o fato de que não existem nações unidas no mundo. Penso que as atenuações postas nos termos cumprem o mesmo desiderato. Penso que não existe neo-nazismo. Existe, sim, nazismo em nossos tempos, um nazismo aggiornato, mas cujas premissas de ódio são mantidas e exercitadas a cada minuto.
A ciência e a técnica, hoje, são o apanágio das potências políticas mundiais. Mas vivemos o instante em que elas passam, por muitos dutos, aos que praticam o terror. Repetir, como uma espécie de mantra, que a ciência e a técnica, a razão e seus frutos são a fonte da desobediência aos direitos humanos, mais do que um equívoco, no meu entender, é agir de modo cúmplice com os que voltam o saber para o culto da morte. Defender a ciência, as artes, as técnicas, apesar dos usos genocidas que delas foi feito e ainda agora é feito, me parece uma tarefa civilizatória. Defender a educação científica e técnica da população, é medida importante contra o racismo e o anti-semitismo. Nas ciências e humanidades, fala a razão humana movida pela vontade. Afirmar da primeira o que tem fundamento na segunda, significa um contra-senso perigoso. O racismo e o anti-semitismo não têm origem na ciência. Seus fundamentos seguem mesmo contra a prática científica. Julgo ser de má fé o argumento que põe na ordem científica a consagração do mal no mundo. Sempre que recebem críticas, as matrizes religiosas da humanidade praticam um diairesis interessada ao distinguir entre a religião na sua fonte e os usos humanos. A primeira seria imaculada, os segundos, manchados de culpa. Recordo que as guerras religiosas, a noite de São Bartolomeu, a defenestração de Praga e outros eventos ligados à Guerra de Trinta anos tiveram como origem a intolerância generalizada no mundo cristão, tanto entre os reformados quanto entre os ortodoxos. Esta intolerância bebeu sangue o bastante para alimentar as tiranias modernas.
Noto com tristeza que o Papa atual retoma, quase literalmente, a crítica aos saberes científicos feita quando a Enciclopédia de Diderot foi condenada. Clemente 13, alarmado com o ateísmo moderno, escreveu o rascunho de uma Encíclica, a Quantopere dominus Jesus, apenas com oito exemplares. A publicação mais ampla foi adiada até que fosse ouvido o cardeal Passionei, amigo de Voltaire e de Montesquieu. Na Enciclica, cheia de vitupérios, o pontifice dizia que nada é mais próprio do que o desejo da verdade. Este desejo, acrescenta o Santo Padre, o Espirito Santo quer refrear, como o prova o Eclesiastes. Ele ordena que os padres se abstenham des pesquisas aprofundadas. Com a crítica do cardeal Passionei contra o intempestivo ataque à ciência, à técnica, à razão, Clemente 13 publicou apenas um Breve (3 de setembro de 1759) bem mais brando que a projetada Enciclica. Esta, após dois séculos, tem sua lógica retomada pela Spe Salvi (Salvos pela Esperança) publicada ontem por Bento 16. O ataque vai ao mesmo ponto: a ciência pode conduzir ao ateísmo e à perda dos valores divinos e humanos. Mesmo Francis Bacon, o alvo maior de Joseph De Maistre e da Contra-revolução conservadora, inimiga da forma democrática, recebe a sua parcela de vitupérios pontifícios.
Se olharmos o campo histórico, no fanatismo religioso se encontram as raizes mais venenosas do ódio racista e anti-semita e a recusa dos direitos humanos. Basta recordar o Edito de Expulsão de 1492, dos judeus para longe da Espanha; basta olhar a Sententia Estatuto de Toledo, de 1449; basta ler o texto de Lutero, “sobre os judeus e suas mentiras”; isto, para falar apenas em alguns marcos da cruzada contra os judeus e as minorias em países cristãos. Sempre é possível dizer, com Jules Isaac, tratarmos aqui com a “acusação capital unida ao tema do castigo último, a terrificante maldição que pesa sobre Israel, explicando (e de antemão justificando) seu destino miserável, suas mais cruéis provações, as piores violências cometidas contra ele, os rios de sangue que escaparam de suas feridas sempre reabertas, sempre vivas. De modo que, por um mecanismo engenhoso — alternativo — de sentenças doutorais e de furores populares, encontra-se jogado na conta de Deus o que, vista a esfera terrestre, seguramente pertence à incurável vilania humana, aquela perversidade, diversamente mas sabiamente explorada de século em século, de geração em geração, e que atinge seu ápice em Auschwitz, nas câmaras de gás e nos fornos crematórios da Alemanha nazista. Um desses alemães, desses assassinos servis, um dos matadores em chefe (batizado cristão) disse: ‘Eu não podia ter escrúpulos, pois eram todos judeus’. Voz de Hitler? Voz de Streicher? Não. “Vox saeculorum.” (Jesus e Israel).
Condenar a ciência e a técnica, para os amigos dos direitos humanos, é agir contra o próprio movimento que se defende. Para os que se pretendem interpretes únicos da voz divina, é decretar o retorno ao controle teológico-político. A razão é centelha divina em nossas mentes e, como afirma Yossel Rakover em momento de suprema dor, comparável à sofrida por Jó, “Blasfemamos contra Deus aos nos denegrirmos”.
(TEXTO NÃO REVISTO).
Roberto Romano Moral e Ciência. A monstruosidade no sec. XVIII
Silence et Bruit. Roberto Romano
terça-feira, dezembro 04, 2007
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