“Ainda não somos uma república democrática. Somos herdeiros melancólicos do absolutismo clássico”, afirma o filósofo Roberto Romano. Para ele, o Brasil continua sendo um país que realiza “pactos políticos feitos pelas oligarquias, sob o patrocínio do Poder Executivo Federal”. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o pesquisador comenta os equívocos da Lei da Anistia e afirma que “o mito em torno de uma ditadura com base apenas militar” é conveniente para as oligarquias brasileiras, as quais negligenciaram pontos essenciais na elaboração da Lei. Agora, garante, “resta às vítimas da tortura recorrer à Justiça, salvaguarda dos direitos lesados, para que os crimes sejam punidos”.
Relembrando os ensinamentos do filósofo italiano Noberto Bobbio, Romano destaca a necessidade de construir uma sociedade democrática, na qual o governo deve desenvolver suas atividades em público, “sob os olhos de todos”. E adverte: “O poder oculto não transforma a democracia, a perverte”. Se existem documentos sobre a tortura no regime ditatorial, continua, “eles não pertencem a grupos, indivíduos ou instituições subordinadas ao Estado. Eles são propriedade do povo soberano, que tem o direito e o dever de adequar sua existência à sua história”.
Romano cursou doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), França e é professor de filosofia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Escreveu, entre outros, os livros Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São Paulo: Kairós, 1979), Conservadorismo romântico (2. ed. São Paulo: Ed. UNESP, 1997) e Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII (São Paulo: SENAC, 2002).
IHU On-Line - Quais são as implicações de abrir os arquivos da ditadura? Sob o ponto de vista democrático e político é melhor recordar ou esquecer esse assunto?
Roberto Romano - Abrir os arquivos do Estado brasileiro sob o regime ditatorial é exigência democrática. Não existe democracia sem o direito de a sociedade civil conhecer a si mesma e aos que a dirigem ou dirigiram. O golpe de Estado de 1964 ocorreu ainda sob a Guerra Fria, a qual favoreceu as formas autoritárias que exacerbaram o segredo. Se os países socialistas, supostamente repúblicas populares, quebraram a base da accountability e da fé pública em proveito dos governos, algo similar ocorreu na Europa, nos EUA e nos regimes de força que dominaram a América do Sul.
Hannah Arendt afirma que a vida totalitária deve ser entendida como reunião de “sociedades secretas estabelecidas publicamente”. O paradoxo é só aparente. Hitler examinou os princípios das sociedades secretas como corretos modelos para a sua própria. Ele promulgou em 1939 as regras do seu partido. Primeira regra: ninguém que não tenha necessidade de ser informado deve receber informação. Segunda: ninguém deve saber mais do que o necessário. Terceira: ninguém deve saber algo antes do necessário. Lição de Norberto Bobbio: “O governo democrático desenvolve sua atividade em público, sob os olhos de todos. E deve desenvolver a sua própria atividade sob os olhos de todos, porque todos os cidadãos devem formar uma opinião livre sobre as decisões tomadas em seu nome. De outro modo, qual a razão os levaria periodicamente a urnas e em quais bases poderiam expressar o seu voto de consentimento ou recusa? (…) O poder oculto não transforma a democracia, a perverte. Não a golpeia com maior ou menor gravidade em um de seus órgãos essenciais, mas a assassina”.
A democracia efetiva surge com a exigência de accountability a ser cobrada dos governos. Os postulados democráticos sustentam a Declaração Universal dos Direitos Humanos e devem atenuar o segredo de Estado. Se existem documentos sobre tortura no regime ditatorial, eles não pertencem a grupos, indivíduos ou instituições subordinadas ao Estado. Eles são propriedade do povo soberano, que tem o direito e o dever de adequar sua existência à sua história. No caso, só pode ser olvidado o conhecido. Cabe ao poder estatal a tarefa democrática de sanar tal lapso da vida brasileira.
IHU On-Line - Quais são os impactos éticos que a Lei da Anistia trouxe consigo?
Roberto Romano - O Brasil é a terra dos pactos políticos feitos pelas oligarquias, sob o patrocínio do Poder Executivo Federal. Assim foi com a Anistia e, mais tarde, com a transformação do Congresso em Constituinte, sem uma Assembléia orientada especificamente para redigir a Carta Magna. Desejosas de retomar o poder Executivo das mãos militares, as oligarquias (retrógradas ou liberais, pouco importa) negligenciaram pontos que, longe de serem detalhes, são essenciais. Além disso, parcelas consideráveis da esquerda no exílio aceitaram os termos da anistia, oferecida com mediação oligárquica. O primeiro presidente civil após a ditadura, José Sarney, não por acaso era e continua sendo um líder oligárquico que serviu ao regime de exceção, e na última hora o abandonou. As negociações para a Anistia não tiveram a forma de um amplo pacto nacional, mas o estilo costumeiro das tratativas entre elites. Aceitos a forma e o conteúdo da Anistia, tanto pelas lideranças políticas oligárquicas quanto pelas oposições (incluindo a esquerda), os problemas subjacentes surgiram anos depois. Regras de prestação de contas não foram definidas de modo claro (como em outros países) e as decisões sobre assuntos relacionados a prisões, torturas etc., não tratadas em tempo certo na Justiça, foram jogadas para a luta política e ideológica. É o que assistimos hoje.
IHU On-Line - Tortura pode ser considerada crime político ou contra a humanidade?
Roberto Romano - Tortura é crime contra a humanidade. Sua prática é indesculpável. Nada - política, religião, ideologia – justifica semelhante atrocidade.
IHU On-Line - Como a Justiça e o Estado deveriam lidar com as memórias de dor e sofrimento das vítimas da ditadura militar?
Roberto Romano - Tais procedimentos deveriam ter sido determinados na própria lei de Anistia e imediatamente após a sua promulgação. Países democráticos adoecidos por regimes de força definiram normas e ritos no sentido de sanar os ódios, os ressentimentos e prevenir vinganças, o que não ocorreu no Brasil. Resta às vítimas da tortura recorrer à Justiça, salvaguarda dos direitos lesados, para que os crimes sejam punidos.
IHU On-Line - Essa parte “mal resolvida” da nossa história tem influenciado na conjuntura atual, no sentido de que nos acostumamos com a violência, com a corrupção, com as injustiças?
Roberto Romano - O Brasil, além da república federativa das oligarquias, é o país da não igualdade plena entre os cidadãos. Nele, num sentido não contrário ao da maior parcela dos Estados atuais, existe a norma odiosa da prerrogativa de foro para “autoridades”. Aqui não vigora, nas diversas instâncias do poder público, a necessária prestação de contas ao povo. Se nenhuma autoridade tem obrigação de prestar contas, como exigir que os crimes de tortura sejam punidos?
IHU On-Line - Conforme o pensamento judaico-cristão, esquecer dos mortos é matá-los duas vezes. Como entender, então, a insistência de alguns setores do governo brasileiro em “enterrar” esse assunto? Que interesses movem essa atitude?
Roberto Romano - Quais setores do governo brasileiro? Os dirigentes do poder Executivo, na sua maioria, pertencem à esquerda nacional, militavam em partidos de esquerda ou em sindicatos quando ocorreu a Anistia. Creio que o mais estratégico, no raciocínio dos referidos dirigentes, é esquecer seu passado militante, tendo em vista manter no presente e no futuro suas prerrogativas de mando político e social. Antes de olvidar os fatos coletivos, eles buscam apagar a sua própria memória. Argumentos nãos lhe faltam. Existe apenas uma ausência terrível de coerência com o seu pretérito.
IHU On-Line - A Lei da Anistia gerou uma pacificação nacional?
Roberto Romano - As ameaças entre grupos, os ódios mais do que evidentes em todos os setores mostram que a resposta só pode ser negativa. Maquiavel, no Capítulo 7 de Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, mostra o quanto é importante encontrar meios idôneos para acusar os que desobedecem as leis e agem contra os direitos da cidadania. Se os crimes não forem punidos com formas jurídicas apropriadas, a vingança assume plenitude infernal, nascem “as ofensas de cidadãos privados contra cidadãos privados, e a ofensa gera o medo; o medo busca defesa; para a defesa, se reúnem os companheiros; dos companheiros nascem as facções que arruínam o Estado”. A Anistia não criou laços de solidariedade entre os brasileiros, gerou facções que se digladiam. Os frutos das atuais batalhas verbais (por enquanto) serão conhecidos mais tarde. Mas com tanto ódio é possível prever que eles não serão sadios.
IHU On-Line - A Lei da Anistia prejudicou os direitos humanos no país?
Roberto Romano - A Lei da Anistia é fruto de uma política social e de Estado. É nossa forma iníqua de praticar a vida em sociedade civil e política que gera a corrosão de todos os direitos.
IHU On-Line - Todos os presidentes brasileiros negaram-se a abrir os arquivos da ditadura. Como esse fato influencia e interfere na construção da democracia brasileira?
Roberto Romano - O fato confirma que ainda não somos uma república democrática. Somos herdeiros melancólicos do absolutismo clássico, no qual os arcanos seriam privilégio do rei. Em nosso caso, em vez de presidentes, temos imperadores com pés de barro. Todos eles são eleitos de maneira plebiscitária, daí sua arrogância sem limites. Mas todos dependem do apoio das regiões, dirigidas pelas oligarquias. Qualquer presidente nosso precisa vender ou comprar apoio do Congresso, sempre na bacia das almas do orçamento federal. Como os arquivos trarão os atos dos oligarcas civis, e não apenas os desvios dos militares, não interessa às oligarquias e a seus dirigentes que seja destruído o mito de uma ditadura com base apenas militar. Os militares teriam efetivado uma ditadura menos virulenta, se não tivessem o apoio dos coronéis políticos que parasitam o Estado nacional.