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Resposta à seita (2)
Roberto Romano
Núcleo estratégico da Unicamp, o Departamento de Ciências Sociais Aplicadas à Educação reunia diversos campos teóricos. Senti-me confortável entre os pares devido às diferenças ali vivenciadas. Alí encontrei Paulo Freire e Vanilda Paiva, que defendera na Alemanha sua tese (Bewusstseinsbildung im Brasilien , A educação da consciência no Brasil, 1978) e publicara o livro Paulo Freire e o nacionalismo desenvolvimentista (reeditado em 2000, São Paulo, Ed. Graal). A satisfação de estar reunido com diferentes e conflitantes perspectivas deu-me conforto para o empenho no Departamento.
Eleito chefe, experimentei as árduas tarefas de harmonizar interesses opostos. Não sou diplomático, mas julgo ter conduzido a missão a contento dos colegas. Certa hora recebo um comunicado da reitoria da Unicamp: preocupada em assegurar a aposentadoria de Paulo Freire e garantir todos os seus direitos, a administração me solicita que peça ao mestre umcurriculum vitae e a cópia do diploma, atestando sua livre docência pela Universidade Federal de Pernambuco. Não hesitei um instante. Algo assim, comum para todos os que integram o campus, seria fácil de conseguir. E me dirigi ao docente. “Professor Paulo Freire, a reitoria está preocupada com a sua aposentadoria e pede que o senhor prepare um curriculum vitae e a cópia de seu diploma, da Universidade Federal de Pernambuco”. Resposta em altos brados, surpreendente e terrível. “Paulo Freire (assim, na terceira pessoa majestática) apresentar curriculum? Paulo Freire recebeu dezenas de títulos honoris causa no mundo inteiro!”. Desconcertado com a violência, respondi que o professor efetivasse o que seria melhor para ele. Pedi à reitoria que se dirigisse, doravante, diretamente ao interessado.
No átimo em que testemunhava a explosão raivosa, recordei o que enuncia a Ética spinozana sobre a soberba (Etica livro III - Proposição 26 - escólio ). A fala mansa e cativante a que os colegas estavam acostumados deu lugar ao tom imperial de quem se julga acima dos professores. Para os comuns, curriculum e diplomas, para ele, o mundo aplaudindo sem limites. Em grego esta atitude chama-se Hybris . E lembro o dito de Elias Canetti sobre o poderoso, o rico e o famoso. Este último exige que todas as bocas falem dele, sempre com delirantes louvores.
Depois do episódio, tomei cuidados para não reacender as chamas da magistral soberba. Até que um dia dois integrantes do Departamento, os professores Roberto Covian e Afonso Trujillo, passaram às minhas mãos um pedido de afastamento, remunerado pela Unicamp, com o fito de participar de um congresso em Nova York. Em princípio, nada estranho. Mas na carta convite para a viagem, o logotipo era da Igreja da Unificação. A missiva era assinada por Sun Myung Moon. Apresentei o caso ao Departamento. Indiquei aos professores a confusão pela qual o Tribunal de Contas puniria a Unicamp. “Caros professores: se eu, católico, for até Roma para ver o Papa, não tenho direito de pedir recursos à Unicamp. Se, no entanto, for convidado para reuniões na Academia de Ciências do Vaticano, posso fazer aquilo.”. Como os solicitantes não se convenciam, avancei: “professores, a universidade norte-americana conta com muitos professores da direita ideológica. Peçam a eles cartas de convite, porque aí pelo menos a lei será obedecida. Não é possível enviar à reitoria uma carta com o sinete do Sr. Moon”. A resposta de um deles me espantou: “Professor Romano, nada existe no convite que seja ideológico. Moon não paga o imposto de renda nos EUA e, portanto, gasta com congressos!”. Indignado, pedi o adiamento da reunião. O pior ainda viria.
No encontro seguinte do Departamento, Freire votou a favor dos solicitantes. Sua declaração justificativa: “Sou a favor do diálogo entre religiões”. Eu também. Mas não julgo certo unir igrejas e recursos das universidades públicas, sobretudo quando se trata de uma igreja controversa como a da Unificação, cujos assuntos e ligações com a CIA sul-coreana, etc., até hoje não foram esclarecidas. A seita me acusa de aderir à ética do mercado, mas jamais aprovei Moon e seus patrocinados.
RR
Núcleo estratégico da Unicamp, o Departamento de Ciências Sociais Aplicadas à Educação reunia diversos campos teóricos. Senti-me confortável entre os pares devido às diferenças ali vivenciadas. Alí encontrei Paulo Freire e Vanilda Paiva, que defendera na Alemanha sua tese (
Eleito chefe, experimentei as árduas tarefas de harmonizar interesses opostos. Não sou diplomático, mas julgo ter conduzido a missão a contento dos colegas. Certa hora recebo um comunicado da reitoria da Unicamp: preocupada em assegurar a aposentadoria de Paulo Freire e garantir todos os seus direitos, a administração me solicita que peça ao mestre um
No átimo em que testemunhava a explosão raivosa, recordei o que enuncia a Ética spinozana sobre a soberba (
Depois do episódio, tomei cuidados para não reacender as chamas da magistral soberba. Até que um dia dois integrantes do Departamento, os professores Roberto Covian e Afonso Trujillo, passaram às minhas mãos um pedido de afastamento, remunerado pela Unicamp, com o fito de participar de um congresso em Nova York. Em princípio, nada estranho. Mas na carta convite para a viagem, o logotipo era da Igreja da Unificação. A missiva era assinada por Sun Myung Moon. Apresentei o caso ao Departamento. Indiquei aos professores a confusão pela qual o Tribunal de Contas puniria a Unicamp. “Caros professores: se eu, católico, for até Roma para ver o Papa, não tenho direito de pedir recursos à Unicamp. Se, no entanto, for convidado para reuniões na Academia de Ciências do Vaticano, posso fazer aquilo.”. Como os solicitantes não se convenciam, avancei: “professores, a universidade norte-americana conta com muitos professores da direita ideológica. Peçam a eles cartas de convite, porque aí pelo menos a lei será obedecida. Não é possível enviar à reitoria uma carta com o sinete do Sr. Moon”. A resposta de um deles me espantou: “Professor Romano, nada existe no convite que seja ideológico. Moon não paga o imposto de renda nos EUA e, portanto, gasta com congressos!”. Indignado, pedi o adiamento da reunião. O pior ainda viria.
No encontro seguinte do Departamento, Freire votou a favor dos solicitantes. Sua declaração justificativa: “Sou a favor do diálogo entre religiões”. Eu também. Mas não julgo certo unir igrejas e recursos das universidades públicas, sobretudo quando se trata de uma igreja controversa como a da Unificação, cujos assuntos e ligações com a CIA sul-coreana, etc., até hoje não foram esclarecidas. A seita me acusa de aderir à ética do mercado, mas jamais aprovei Moon e seus patrocinados.
PS para o Blog: tenho alguns textos, publicados em revistas acadêmicas ou em outras revistas, sobre a ética da soberba. Trata-se de um ponto essencial da vida pública, quando individualidades poderosas ou famosas se colocam, na sua imaginação e na dos seus acólitos, acima dos outros mortais. É o caso em debate. Quem tiver paciência para análises mais detidas do assunto, cf. Roberto Romano : "Os laços do orgulho Reflexões sobre a política e o Mal" . Unimontes científica, Montes Claros-MG, v. 6, número 1, pp. 15/42, 2004. Também, na forma eletrônica, no Blog Filosofia, que mantenho para os alunos da Unicamp, no seguinte endereço: http://filosofiaunicamp.blogspot.com/search?q=La%C3%A7os
RR