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domingo, outubro 12, 2008

No Simpósio sobre a Constituição em seus 20 Anos, realizado sob auspícios da Unafisco, da AJUFE e de outras entidades, apresentei uma análise do papel exercido pelos juízes brasileiros. Como era de se esperar, as reações foram imediatas. Não me arrependo, porque se existe um poder público, todo ele, em todos os seus segmentos, é criticável. Não existe campo sagrado e intocável no poder democrático. A menos que....

Para recordar aos possíveis ofendidos que não sou inimigo do judiciário, mas amigo da justiça, segue um texto antigo, em homenagem a um juzi que mereceu o título de justo. E que por injustiça, inclusive do atual governo, morreu sem que fosse reparado o mal a ele imposto pela ditadura militar.

Roberto Romano


Correio Popular de Campinas, 06/12/2005.



EVANDRO LINS E SILVA



Roberto Romano




O texto abaixo é a homenagem que me foi solicitada pela Associação Juízes para a Democracia e lida no seu Congresso de Recife (02/12/2005). Eu o escrevi com tristeza, diante do ataque de um juiz ocasional aos não juristas, insultados por ele como “idiotas”. Falta suprema do essencial decorum. Triste país que possui juízes semelhantes.

Um conselheiro disse a Napoleão que o seu Código Civil não autorizaria certo ato, ideado em benefício próprio do ditador. “O Código Napoleão foi feito para a salvação do povo, e se tal salvação exige outras medidas, é preciso tomá-las”. E no Brasil ? Um escrito gerou monstros: “A Revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constitucional. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como o Poder Constituinte, se legitima a si mesma (…) Ela edita normas jurídicas, sem que nisto esteja limitada pela normatividade anterior à sua vitória (…) Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação”. (Ato Institucional número 1).

Para os ditadores a lei pode ser negada, desde que o golpe ajude o seu partido. Às vezes os governantes nem precisam forjar falácias. O artigo 48 da Constituição de Weimar garantiu a sorte de Hitler : “Caso a segurança e a ordem públicas sejam seriamente (erheblich) perturbadas ou feridas no Reich alemão, o presidente do Reich deve tomar as medidas necessárias para restabelecer a segurança e a ordem públicas, com ajuda se necessário das Forças Armadas. Para este fim ele deve total ou parcialmente suspender os direitos fundamentais (Grundrechte) definidos nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124, and 153."

No Brasil, com os resquícios das prerrogativas imperiais, o Executivo federal fere a plena autonomia da Justiça, ao mesmo passo em que adquire votos no Parlamento com trinta dinheiros, a traição do mandato popular em troca de recursos orçamentários e outras benesses. Na balança dos poderes, o peso maior pertence à presidência da República. Os chamados a preservar a Carta Magna agem como simples políticos na Realpolitik que suportou a Carta de 1937, os Atos Institucionais, a Carta de 1967, as agressões à Carta de 88.

Nossos presidentes, se pudessem, repetiriam a fala de James I em 1616 : o governante “tem poder de vida e morte; julga acima de todos os súditos em todos os casos e só deve prestar contas a Deus”. Francis Bacon dizia que os juízes devem ser leões sob o trono do rei Salomão. A violência do Executivo foi exasperada depois do Termidor. E vivemos, no Brasil, em perene Termidor.

Evandro Lins e Silva foi juiz e nunca se acomodou sob o trono, não se calou diante da majestade divina reivindicada pelos poderosos, nunca titubeou ao defender o fraco. Os homens concederam-lhe títulos e galardões. Os mais brilhantes encontram-se em seus próprios atos. Ele não se acovardou diante das tiranias que desgraçaram o século XX. Ao contrário dos “democratas” que odeiam a imprensa, ele defendeu jornalistas de 1934 até os momentos finais de existência. Seu nome, ao lado de Sobral Pinto, penetrou a alma brasileira ao defender perseguidos políticos desde 1932. Ele nunca teve receio de estender a proteção da lei, na sua bela figura de advogado, aos que assumiram atitudes contrárias ao poder.

Evandro Lins e Silva foi um homem reto. No Supremo, participou dos julgamentos de mais de uma centena de casos de presos políticos, Mauro Borges, Plínio Coelho, Seixas Dória, Miguel Arraes, Vieira Neto, Sérgio Rezende, Caio Prado Júnior, Niomar Muniz Sodré, Enio Silveira. Quantos juizes, na sua condição, fizeram o mesmo? Os ditadores deram-lhe o mais alto prêmio ao arrancá-lo do STF. Desse modo, eles confessaram que ele era um homem livre. Poucos receberam esta homenagem, que o aproxima de Sócrates.

Evandro Lins e Silva foi Juiz. O poder brasileiro sempre procurou domesticar juízes, no Império e ditaduras. Enquanto existirem no Executivo as pretensões de manter, contra os juízes independentes, a Constituição sob tutela, não teremos Estado de direito. Todos se recordam da anedota alemã sobre os juízes, na réplica do moleiro de Potsdam a Frederico II: “Existem juizes em Berlim”. O rei não conseguiu se opor ao direito do moleiro, mesmo que o moinho em litígio fosse barulhento e incomodasse o soberano. Em nossa pátria, os tribunais próximos dos cidadãos permitem que os brasileiros afirmem: “existem juízes no Brasil”. Esperemos que essa realidade se expanda para o alto, de modo que possamos dizer, com o mesmo júbilo: “Existem juízes em Brasilia”.

Evandro Lins e Silva foi juiz, ao contrário dos arrogantes que usam a toga para seus fins pessoais e pisam o direito dos contribuintes. A Associação Juízes para a Democracia, seguidora do grande exemplo oferecido por ele, merece receber em seu nome as homenagens do povo brasileiro.

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