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quarta-feira, abril 23, 2008



Raquel e Lia in http://www.metodista.org.br

CORREIO POPULAR DE CAMPINAS, 23/04/2008


Sonhos militantes.

Roberto Romano

Arthur Koestler, autor de O Zero e o Infinito (Darkness at Noon), em seu retorno da URSS cita uma passagem bíblica na qual Jacó descobre que seu tio Labão trocou Lia, a feia, por sua bela irmã Raquel, amada pelo jovem. Jacó reclama: “Por que me fizeste isso? Não te tenho servido por Raquel? Por que então me enganaste?”.(Gênesis, 29: 25). Todos conhecem o episódio nos versos de Camões. Perdoe o leitor, mas vale a pena, na crítica dirigida por Koestler ao ídolo de barro socialista, recordar o poema inteiro : “Sete anos de pastor Jacó servia/ Labão, pai de Raquel serrana bela,/ Mas não servia ao pai, servia a ela,/ Que a ela só por prêmio pretendia ./ Os dias na esperança de um só dia/Passava, contentando-se com vê-la:/ Porém o pai usando de cautela,/Em lugar de Raquel lhe deu a Lia./Vendo o triste pastor que com enganos/Assim lhe era negada a sua pastora,/Como se a não tivera merecida,/Começou a servir outros sete anos,/Dizendo: Mais servira, se não fora/ Para tão longo amor tão curta a vida.”


Koestler vai ao ponto com o símile bíblico/socialista. Na revolução de 1917 foi prometida a bela Raquel democrática, igualitária, justa, pacífica, era em que o homem não mais seria lobo do homem. Milhões de militantes acreditaram na promessa. Em vez da bela almejada, receberam a feiosa doutrina e prática do socialismo num só país; da paz, uma federação que acolheu indústrias alemãs de armamentos, o que ajudou Hitler no ataque covarde contra os países ocidentais; da igualdade, o Estado burocrático, dirigido por sindicalistas que manipulavam estatísticas e torturas com extrema eficácia; da ordem democrática, uma autocracia que empalideceu o culto ao czar. Em vez da bela Raquel socialista, a deformada Lia totalitária.

Não para aí o símile. Mesmo com o engodo de Labão, Jacó perseguiu seus delírios eróticos com a belíssima Raquel. E reduplicou o servilismo para obter favores. Trabalhou mais sete e, se preciso fosse, mais sete... Assim os militantes apaixonados pelo socialismo. Mesmo com a evidência de uma realidade bruta, oposta às miragens oníricas, eles labutam pelo paraíso, desculpam a KGB, os campos de concentração, os exílios, as mortes aos milhões numa guerra facilitada pelos infalíveis dirigentes. Stendhal, no livro De l´ Amour, fala da cristalização que gera o fato amoroso. Quando alguém se apaixona os afetos cristalizam sua alma, que não mais aceita a fugacidade apaixonada pois se transformou em algo sólido. Também o militante tem ideologia de cristal. Falem os críticos de Lia o que desejarem: nela, brilha na verdade a imagem de Raquel... que vale o sacrifício. Em A procura do tempo Perdido Marcel Proust narra a verdadeira experiência do amoroso, a qual serve para elucidar o sentimento dos militantes totalitários. Odete, moça vulgar de costumes ligeiros, é olhada como se tivesse a dignidade de uma pintura renascentista. Para ele, um colecionador, a verdadeira Odete não é a efetiva, mas a onírica.

Assim o socialismo dos militantes. Em caso menor, patético pela insignificância e miséria, temos o governo de Luís Inácio da Silva. Durante mais de vinte anos (sete, mais sete, mais sete...) eles sonharam com a Raquel socialista, democrática, ética. E tiveram a Lia do é dando que se recebe; do mensalão; das bravatas e deboches presidenciais. E se preparam para sorver o último gole da abjeção com o terceiro mandato, na espera de mais sete, sete, sete. Deixem as farsas inúteis: sete é conta de mentiroso. Última nota: o título de O Zero e o infinito, em inglês, tem ressonância mística. Darkness at Noon indica o meio dia: o sol dardeja e o calor arrebata as almas, hora da tentação diabólica, diz a Igreja. Átimo de melancolia, quando brota a tristeza imensa de Lúcifer, que perdeu o paraíso. Os militantes, no inferno do realismo rasteiro, deliram, exigem que todos enlouqueçam. Na URSS, eles conseguiram o feito durante várias décadas, para desgraça de milhões. O mesmo se anuncia no Brasil.

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