São Paulo, sábado, 05 de abril de 2008
TENDÊNCIAS/DEBATES
O Brasil deveria acabar com as medidas provisórias?
SIM
Em proveito da cidadania
ROBERTO ROMANO
As formas democráticas ainda não se firmaram no Brasil. A prudência exige cautela diante de um corpo institucional que adquiriu, por força de sua gênese e história, determinados costumes. A crônica de nosso Estado narra uma saga pouco republicana.
Ainda ontem, o futuro presidente do STF alertou o país sobre o caos legislativo. Boa parte da massa caótica se deve à promiscuidade entre os Poderes. Dos costumes deletérios trazidos pelas ditaduras Vargas e militar, temos o perene reforço do Executivo em prejuízo do Estado.
O Poder Moderador, um anacronismo se forem considerados os modelos estatais nascidos das revoluções democráticas modernas (Inglaterra, Estados Unidos, França), marcou a irresponsabilidade governante. Como controlava os demais Poderes, a vontade do imperador definia as leis. Em contexto assim, não é de admirar que medidas excepcionais sejam prescritas na Carta de 1824 com as desculpas de salus populi, invasão inimiga etc. O soberano domina a exceção, conforme seu arbítrio.
Na república, prerrogativas do monarca passam silenciosamente ao presidente. As sucessivas Constituições marcam a responsabilidade presidencial e dos auxiliares. Mas exigir prestações de contas dos governantes é quase impossível. Em vez dasprovidências excepcionais anteriores, surge o decreto-lei já no frontão do "novo" regime, sob patrocínio do presidente Deodoro. De 1937 até 1945, Vargas governa com tal criatura, nutrida com leite da Constituição polaca. A ditadura militar acrescentou os atos institucionais. Tempo de cassações de mandatos parlamentares, de juízes (inclusive no STF), tempo de controle absoluto nas mãos dos que se "legitimaram a si mesmos" (AI-1), com a censura, as torturas, as violações dos direitos.
É vezo comum dos governantes autoritários, de Napoleão aos nossos dias, açambarcar a tarefa legislativa em proveito próprio. Ditadores brasileiros, longe de inovar, copiaram letra a letra os que, na modernidade, foram inimigos do Legislativo e Judiciário autônomos. Mussolini, Hitler e outros exigiram o "direito" de legislar.
Em 1933, o Parlamento dá a Hitler plenos poderes, autorização cujo título folclórico é Lei sobre a Supressão da Miséria do Povo e do Reich. Tal lei não suprimiu a Constituição de Weimar, suspendeu-a "provisoriamente", deu ao governo o direito de legislar fora das normas constitucionais, sem ratificação de deputados.
Antes de dizerem que comparo coisas diversas, peço a paciente leitura de um trecho de Hitler: "A Constituição só fixa o terreno onde a luta se desenvolve, não o seu fim. Entramos nas instituições previstas pela lei e faremos assim de nosso partido o fator decisivo. Mas, quando tivermos constitucionalmente tal direito, daremos ao Estado a forma que julgamos boa" (citado por E. Calic: "Hitler sans Masque. Entretiens Hitler- Breiting"). Quando o Executivo se arroga o direito de legislar, ele não se contenta com a parceria (o casamento, dizem alguns) com o Legislativo sufocado. Sua meta é reduzir o poder estatal ao estatuto de mero subsidiário.
Todos os ditadores, em potência ou em ato, trazem no peito o que Hitler confessou a Breiting. Não conseguem plenamente seu alvo, mas suas tentativas trazem misérias para países inteiros. Misérias que poderiam ser pelo menos atenuadas em tempo certo. Quando se fala em "abuso" das medidas provisórias, o certo seria nomear o despotismo do Executivo, a busca de sufocar os demais Poderes e lhes impor o seu tacão.Preconizar a "disciplina" das referidas medidas é pedir à fera leonina que, gentilmente, ceda sua parte.
Medidas provisórias são necessárias? Talvez. Mas a prudência recomenda que, antes de tentar impor limites ao seu abuso, elas sejam abolidas. Assim, durante certo tempo, o Executivo precisará usar o rito normal para as questões normais. E não tentará maquiar medidas que o favorecem com o disfarce da emergência.
Não assistimos apenas ao abuso das mencionadas medidas. Assistimos à crise geral do Estado brasileiro. Elas são parte do cenário. E este, como diz o ministro do STF, é caótico. Suprimir por algum tempo as medidas provisórias pode permitir a cada um dos Poderes o retorno ao seu múnus próprio. Em proveito da cidadania.
ROBERTO ROMANO 61, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor de, entre outras obras, "Moral e Ciência - A Monstruosidade no Século XVIII".
NÃO
A Lei ou a lei?
ANDRÉ RAMOS TAVARES
A MEDIDA provisória plasmada constitucionalmente não faculta ao presidente da República governar diretamente, à revelia ou mesmo contra o próprio Congresso Nacional. Trata-se de uma espécie de lei, sim, mas com "l" minúsculo; é precária, não deriva do Parlamento eleito, só pode ser editada nos casos de relevância e urgência e dentro dos demais contornos constitucionais.
Contudo, é preciso admitir o atual (ab)uso pelo presidente, que empurra o Congresso -que é (ou deveria ser) o legítimo proponente de Lei- para uma crise existencial.
Percebeu-se agora que, por meio das medidas provisórias, o presidente acaba por trancar a pauta do Congresso, inviabilizando o exercício regular da função legislativa primária.
Curiosamente, essa situação surgiu após a resposta revisora (de 2001) aos abusos ocorridos até então, mas se mostrou uma solução medíocre na prática rotineira dos Poderes, pois os abusos se aprimoraram e se perpetuaram. Medidas provisórias sobre questões secundárias e irrelevantes, como a criação de TV pública e a transformação de secretaria em ministério para atender a interesses pessoais, bem demonstram o desvirtuamento (em curso) do modelo.
A inversão do tema -suspender o Congresso e permitir que toda legislação advenha do presidente- é inconcebível. Isso só ocorreu em períodos sombrios de nossa história. A verdade, porém, é que fazemos pequenas concessões diariamente. O presidente, mesmo sem maioria no Congresso, determina a pauta deste e até suspende suas atividades como decorrência da recorrente utilização de medidas provisórias.
Como alternativa à falta de uma base aliada coesa no Congresso, o presidente legisla pessoalmente. Ao fazê-lo, cria-se um círculo vicioso, pois o Congresso submerge ainda mais em sua inércia, atado pelo presidente, gerando novas necessidades que, por isso, vão ganhando foros de urgência.
Chegou-se tão longe no uso abusivo das MPs que a proposta de seu banimento cabal era a única saída (política) digna a ser apresentada por um Parlamento refém. Mas a suspeita de que seja mera exortação ao impossível está consagrada no senso comum de que situações críticas realmente demandam medidas excepcionais.
Do contrário, o país, sem instrumentos para fazer frente a esses momentos, excederia o abuso (atual) para curvar-se ao arbítrio absoluto da falta de parâmetros jurídicos. Nem se invoque a imaginária "separação de Poderes", porque, rigorosamente, uma separação absoluta nunca existiu nem é desejável.
Se é conveniente que o Congresso, por seu pluralismo (forma colegiada e múltiplas posições ideológicas) e sua legitimidade, priorize a função legislativa, nem por isso se pode concluir pela necessidade de extirpar mecanismos excepcionais. Uma resposta imediata a situações críticas só pode ser unipessoal. E a ampla representatividade que colhe nas urnas remete, aqui, ao chefe de governo como o titular mais indicado dessa função.
O problema está na cultura jurídica e no amadurecimento das instituições democráticas. O sentimento de perplexidade que experimentamos é só um ícone da falta de maturidade.
Nesse contexto, enquanto houver um instituto que permita ao presidente "legislar" diretamente, ainda que com o rótulo de legislação "provisória", estará aberta a porta infernal da tentação, por melhor que sejam as salvaguardas construídas pela inteligência do Parlamento.
Só que, mantida fora de seu eixo natural, a medida provisória destoa do regime constitucional democrático em vigor, caracterizando a "fraude constitucional", quer dizer, o envergamento de institutos aos desígnios (muitos não confessáveis publicamente) das autoridades de plantão. Assistimos hoje a uma penalização do Congresso e uma usurpação de suas prioridades, o que conduz a um desequilíbrio entre os Poderes. Certamente não é o modelo da Constituição de 1988. Uma conscientização que corrija os desvios perpetrados nos últimos tempos será muito bem recebida pela democracia.
ANDRÉ RAMOS TAVARES , livre-docente em direito constitucional pela USP, professor da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e do Mackenzie, é diretor do Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais. É autor de "Curso de Direito Constitucional".
COMENTÁRIO:
COMPARE-SE A FALA DE HITLER, CITADA NO MEU ARTIGO ACIMA, COM A DE LULLA, HÁ BOM TEMPO, EM ENTREVISTA À FOLHA DE SÃO PAULO :
1) HITLER :
"A Constituição só fixa o terreno onde a luta se desenvolve, não o seu fim. Entramos nas instituições previstas pela lei e faremos assim de nosso partido o fator decisivo. Mas, quando tivermos constitucionalmente tal direito, daremos ao Estado a forma que julgamos boa" (citado por E. Calic: "Hitler sans Masque. Entretiens Hitler- Breiting").
2) LULLA:
“Não achamos que Parlamento é um fim, ele é um meio. E vamos tentar utilizá-lo até onde for possível. Na medida em que a gente perceber que pela via parlamentar, pela via puramente eleitoral, você não conseguirá o poder, eu assumo a responsabilidade de dizer à classe trabalhadora que ela tem que procurar outra via” (Entrevista à Folha de São Paulo, em dezembro de 1985).
A coincidência revela muito. Só quem não recorda (porque nunca estudou a história do passado e vive sob o tacão do presente, mesmerizado pela propaganda de Duda Mendonça/João Santana) compra a tese de Lulla democrata.
Roberto Romano
.
Hitler fala no Reichstag
Roberto Romano Moral e Ciência. A monstruosidade no sec. XVIII
Silence et Bruit. Roberto Romano
sábado, abril 05, 2008
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