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domingo, abril 22, 2007

Carissimo Sponholz: sou profeta do passado, do futuro, ou do presente?



Correio Popular de Campinas

Publicada em 11/4/2007

Falta de caráter

ROBERTO ROMANO

“Falta de caráter!”. Tal expressão integrou a vida de todos os brasileiros que vieram ao mundo após a Segunda Guerra Mundial. Nos lábios dos genitores ou de pessoas mais antigas, tratava-se de um juízo ético tremendo, quando alguém fazia algo contrário ao que esperava de uma “pessoa de bem”. Falta de caráter a ingratidão, falta de caráter não pagar as dívidas, falta de caráter dizer coisas pesadas contra alguém e, no dia seguinte, abraçar e beijar o mesmo indivíduo, falta de caráter negar a palavra empenhada e assim por diante. A política, por sua vez, era tida como o lugar exato da falta de caráter. Os meneios dos demagogos, a sua constante traição mútua, os acertos e desacordos da véspera que se transformam em novos acertos e desacordos, tudo era mostra evidente de ausência de caráter. Um líder que indicasse ao público a desonestidade de outro, certamente seria julgado sem caráter se pedisse audiência ao mesmo sujeito objeto de seus vitupérios. Caráter e fé pública seguiam juntos, na velha figura do fio da barba. Como as mulheres não possuíam este último ornamento (salvo as que se exibiam no circo) outros signos eram delas exigidos, como o recato e a preservação da própria dignidade.

Hoje, os elementos mencionados acima estão fora de moda. A prova de que um homem tinha caráter, e de que era respeitável, seria dada na maneira pela qual era chamado na vida pública. Após a adolescência, ao ingressar no âmbito do trabalho, seu título era o de “senhor”. Quanto mais a idade o tomava, mais aquele título o definia. Um bandido nunca receberia o nome de “senhor”. O mesmo com a mulher: “senhora” era mostra de respeito importante. Hoje, idosos de ambos os sexos ficam indignados quando alguém os chama de “senhor” ou “senhora”. É a perda do caráter, perda já exposta com os detalhes constrangedores por Platão na República. Como os que encaneceram não suportam, por falta de caráter, a sua idade e responsabilidades efetivas, eles usam roupas, falas, trejeitos e tratamentos da juventude. Querem ser jovens, mas o efeito é ridículo, como se as suas faces exibissem ao mesmo tempo a parte horrível e a bela de Dorian Gray. Nada mais lamentável do que uma senhora que, ao ser assim tratada, solta gritinhos e reclamações do tipo “senhora está no céu”. Todos os mestres do indispensável decoro mostram a inconveniência de alguém agir em desacordo com o seu papel social e com sua idade. Os poetas sabem, muito bem, que não se pode admitir expressões como “pele rosada” para um general, pois elas servem apenas para o traseiro dos infantes e o rosto das donzelas. E também que não se pode falar de uma pessoa envelhecida como se faz com as crianças e adolescentes. Velhotes faceiros que seguem meninas, têm um só nome na sociedade. E tal nome não é delicado.

Richard Senett, um dos bons sociólogos norte-americanos de hoje, após publicar o excelente O declínio do homem público (São Paulo, Ed. Cia. das Letras), editou vários textos sobre o respeito, a solidariedade humana. Um dos seus escritos relevantes, no entanto, chama-se A corrosão do caráter. A palavra “corrosão” é bem achada: a perda do caráter dá-se de maneira lenta, numa contínua aquiescência, de um lado, e de uma vontade deliberada, de outro, das pessoas rumo à irresponsável insignificância. Quem não se respeita, não exige respeito. Quem não exige respeito, sempre aceita imperativos de acanalhamento social. E tais ocorrências não são naturais. Elas são definidas culturalmente. É bom recordar o enunciado do psicólogo Dessoir, citado por E. Mounier em monumental estudo sobre o tema: “o caráter abarca tudo o que, suprimido pelo pensamento, arrastaria consigo a identidade permanente do ser humano” (Mounier, E.: Traité du caractère). Quando se perde o respeito próprio, some o caráter. Ser humano é saber colocar-se enquanto fim absoluto da existência. Sempre que alguém se rebaixa ao papel de meio para fins alheios ou seus, perde a identidade. E se o indíviduo não respeita a humanidade que está nele (jovem, velha, masculina, feminina), não tem motivos para reclamar dos políticos sem caráter...

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