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quarta-feira, abril 25, 2007

NÃO EXISTE CIÊNCIA RELIGIOSA

CORREIO POPULAR DE CAMPINAS, COLUNA DE ROBERTO ROMANO

Publicada em 25/4/2007

NÃO EXISTE CIÊNCIA RELIGIOSA

Roberto Romano

O Supremo Tribunal Federal reuniu cientistas em audiência pública, a primeira da instituição, para o exame de questões ligadas à ordem genética. Em artigos publicados nesta coluna afirmei que a formação dos juristas deixa a desejar nos dias atuais, em termos de ciência, tecnologia, humanidades. Fui chamado às falas por alguém que ostentou carteirinha de advogado para negar o meu diagnóstico. Felizmente os magistrados do STF reconhecem os limites de sua educação universitária. O resultado de sua iniciativa é positivo.

No evento ocorreu uma nota falha. Refiro-me ao Dr. Cláudio Fonteles, que apresentou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) motivadora do diálogo no STF. O jurista pertence à irmandade franciscana. Por seu convite, os cientistas vinculados à Igreja falaram na audiência. Na Folha de São Paulo, questionado sobre um suposto conflito de interesses de sua fé cristã com o mérito da ação, ele afirmou que a doutora M. Zatz, “o principal elemento de quem pensa diferentemente da gente, tem também uma ótica religiosa, na medida em que ela é judia e não nega o fato”. Disse mais o jurista: "Na religião judaica, a vida começa com o nascimento do ser vivo. Então, ao defender a posição dela, ela defende a posição religiosa dela, que é judia e que a gente tem de respeitar." Resposta da Dra. Zatz: “Desde o início da discussão sobre o uso de células-tronco embrionárias, apesar dos pontos de vista opostos, jamais tinha me defrontado com a tentativa de desqualificar meus argumentos com argumentos anti-semitas (...) Estou triste, porque isso contraria a tradição de tolerância e de respeito à diversidade religiosa que caracterizam este país. Posso garantir que minha defesa da pesquisa com células-tronco embrionárias está longe de ser motivada por razões religiosas. É por meus pacientes, para minorar o sofrimento deles.”

É cabível e honroso que o Dr. Fonteles defenda as teses da Igreja. Mas ele sofreu um escorregão grave ao justificar sua atitude (que no caso não consiste em conflito de interesses) ao atacar a pesquisadora, enraizando sua posição científica no campo religioso. O ex-procurador mostra não conhecer como ocorre a produção de conceitos e técnicas científicas. Um pesquisador ético não usa o sagrado como fonte teórica. Inexiste uma genética judaica, católica, islamita, budista ou quejandos. Existe genética, com seu aporte conceitual, métodos diferentes, verificações de fenômenos, etc. Quando efetiva um trabalho científico, o crente põe entre parênteses os dogmas de sua ordem religiosa. No STF, todos os que falaram possuem modos de operar estabelecidos em universidades. Ali se discutia o elemento ético e moral de uma decisão protocolar, sobre a natureza do material biológico a ser empregado. A diferença é relevante, pois nela são recolhidas posições ideológicas e religiosas em conflito. Porque vivemos, no dizer de Max Weber, o politeísmo dos valores, existem contradições, debates, etc. Mas não existe genética protestante, judaica ou católica.

Em todo debate a prudência é requerida. Ainda estão frescas na memória as reduções do pensamento científico às ideologias. A URSS produziu um saber “proletário” contra o “burguês”, com o charlatanismo de Lyssenko e a “genética”, cuja maior virtude foi jogar o Estado comunista na crise que decidiu, antes da morte oficial, o seu enterro. Na Alemanha, Carl Schmitt escreveu sobre Einstein, “que a publicidade de seus congêneres (os judeus, RR) ousou colocar ao lado de Cristo. (...) Quando ele especulava como relativista sobre os átomos, foi revelado que ele tinha ligações, em cada uma de suas fibras cerebrais, com o povo ao qual ele pertence, e com a situação política daquele povo”. (Os intelectuais alemães, in Westdeutscher Beobachter, 31/05/1933, citado por Yves Charles Zarka, Um détail nazi dans la pensée de Carl Schmitt). No debate público é preciso cautela com a redução da pesquisa à ideologia ou fé. Os exemplos, citados acima, servem para nos desviar de tentações menores, mas cujas consequências podem ser tremendas.

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