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terça-feira, agosto 07, 2007

Para refrescar a memoria dos que, ao repetir a propaganda palaciana, tombam no ridiculo.

Sobre golpes, alianças, corrupção, política econômica.

Como a palavra “golpe” foi muito usada em data recente, importa analisar os atos reais que ela indica. A Revolução Francêsa enxerta com sucesso o fantasma do golpismo na consciência moderna. Mas já em 1679 Gabriel Naudé escreve as Considerações Políticas sobre os Golpes de Estado, reunindo o ensino de Maquiavel e fatos históricos. Golpes de Estado antecedem a querela entre esquerda e direita.

Singular é a prática dos esquerdistas que, uma vez no poder, são tentados pela “governabilidade” e se aliam à direita. Se a técnica os favorece, eles julgam-na progressista e bem vinda. Em semelhante matéria não existem inocentes com carapuça vermelha. Não raro, a netinha ingênua carrega nas entranhas um devorador luporino. Tolo é quem se deixa enganar, no mundo “realista”, com as máscaras deste ou daquele partido.

A Revolução Francêsa foi enterrada em 27/07/1794. Naquele dia Robespierre e Saint-Just são atacados no Comitê de Salvação Pública. Palavra esquisita, Salvação Pública ! Já em Maquiavel e Montesquieu, os golpes de Estado são justificados em nome da saúde popular. “Salus populi suprema lex esto”.

Quando estavam em péssimos lençois, os líderes jacobinos apelaram para direita em busca de apoio. Como previsível, a direita refuga, vota contra eles, manda matar sem julgamento Robespierre e amigos.

A esquerda desejou um governo contra os “corruptos”. De nada lhe adianta cortar a cabeça dos moderados como Danton e guilhotinar parte da direita. Ela confia na aliança com a mesmíssima direita. Traição? Nem tanto porque Robespierre usa a dita aliança para matar os críticos do governo, sejam eles da esquerda, do centro e da direita.

Robespierre espera sinceramente que os direitistas apoiem o seu golpe mas perde tempo. Em 9 Termidor Saint Just é interrompido quando lê o relatório do Comitê de Salvação Pública. Robespierre pula em sua defesa. Elevam-se os gritos de “abaixo o tirano! Prendam-no!”. E temos a última súplica do “Incorruptível” à direita. Eis as suas frases : “Deputados da direita, homens de honra, homens de virtude, concedam-me a tribuna, pois os assassinos a recusam”. Enquanto ele berra, os deputados da direita decidem prendê-lo. No dia seguinte ele é morto com 21 assessores. Edificante? O historiador marxista Soboul fala em “contradições dos jacobinos”. É pouco para explicar a loucura dos que se julgam donos da esquerda e quiseram alianças com a direita.

Saint Just imagina que a esquerda só pode se manter pela virtude dos honestíssimos jacobinos ou pelo terror. Se a cambada rouba, vale a guilhotina. Mas Terror e Virtude são ineficazes. O primeiro, por razões apontadas na Ética e na Política de Spinoza : a violência da tirania toma a sociedade . O governo “forte” se isola e cai por mais que meios repressivos estejam ao seu dispôr. A virtude mostra poucos resultados, também por causas expostas nos textos de Spinoza: querer a razão sem paixões é tarefa de anjos, jamais de políticos. Opor a virtude contra o mundo corrompido é conversa mole para boi dormir, Marcos Valério que nos perdoe.

Último discurso de Robespierre : “La contre-révolution est dans l'administration des finances.” Linda frase, a contra-revolução está na administração das finanças. Brasileiro, você já ouviu algo semelhante? A contra-revolução, adianta Robespierre, “tem como alvo fomentar a agiotagem, abalar o crédito público ao desonrar a lealdade francêsa e favorecer os ricos credores, arruinar e desesperar os pobres, multiplicar os descontentes, despojar o povo dos bens nacionais e conduzir insensívelmente à ruina da fortuna pública. Quem são os administradores supremos de nossas finanças ? Os (…) larápios conhecidos (…). Para conseguir os seus intentos perniciosos, eles acham bom ligar-se ao Comitê de Salvação Pública, porque não duvidam que o Comitê, distraído por grandes trabalhos, adota em confiança, como tem ocorrido algumas vezes, os seus projetos. (…) A tesouraria nacional, dirigida por um contra-revolucionário (…) engaveta todas as despesas urgentes com o pretexto de um apego escrupuloso às formas, não paga ninguém com exceção dos aristocratas na mesma hora em que achaca os cidadãos com recusas, atrasos, provocações odiosas.A contra-revolução encontra-se em todas as partes da economia política.”. Perto da morte, a lucidez: onde reside a conspiração e a fonte dos golpes ? Nos gabinetes econômicos…

Últimas frases do Incorruptível: “Nasci para combater o crime, não para governá-lo. Ainda não chegou o tempo em que os homens de bem podem servir impunemente a pátria: os defensores da liberdade serão proscritos enquanto dominar a horda dos bandidos”. Belas e comoventes palavras.

A corrupção e as finanças determinam o verdadeiro golpe. Quando se pretende discutir o assunto, importa dizer o que se passa na economia. O que é confessado por Robespierre ? Os representantes das finanças foram acolhidos no Comitê de Salvação Pública. Segundo ele, os agentes financeiros “se insinuaram” no Comitê. Os virtuosos e distraídos do governo executam outras tarefas e não ouvem falar de corrupção. Conhecemos a história.

Os representantes das finanças não foram, entretanto, contrabandeados para o Comitê de Salvação Pública, mas alí admitidos pelos jacobinos. Na Comuna de Paris os sans cullottes reivindicam uma economia contra a propriedade. Mas os jacobinos a defendem. Roland, economista e ministro denuncia a "prodigalidade da Comuna que mantem o pão a 3 soldos à custa dos contribuintes". Mesmo o líder da esquerda, Saint-Just, "como economista ortodoxo" no debate sobre o comércio dos cereais "mostra que o único remédio para a carestia é reprimir a inflação" (Lefebvre). Brasileiro : você escutou algo assim por aqui?

Para resumir: os golpes termidorianos são definidos com antecedência na política econômica praticada pela esquerda no poder. Resta somar tudo: as finanças definem a opção econômica da esquerda e alianças à direita garantem tal política. Quando a radicalização das massas atinge o máximo, Robespierre é rifado pela direita a quem apelou visando a “governabilidade”. E vem a questão mais forte : quem desfere o golpe de misericórdia na esquerda? Segundo A. Badiou, “os termidorianos históricos não são os aristocratas exilados, os restauradores, ou mesmo os Girondinos. São as pessoas da base robespierrista da Convenção”. E Badiou traça o retrato do esquerdista termidoriano, sempre à procura de um cargo público onde é possível vender precárias convicções da esquerda, ganhar dinheiro na bacia das almas dos valores que impedem a governabilidade. O termidoriano provoca o golpe para se livrar da opinião pública incômoda e dos antigos companheiros ortodoxos.

Dos esquerdistas que vendem sua alma para as finanças e outros negócios, Badiou cita os casos evidentes de corrupção por aproveitamento dos cargos políticos: o dinheiro inglês que receberam, o lucro nas vendas dos bens nacionais, o açambarcamento dos grãos, a pilhagem militar, o fornecimento para os exércitos. Mesmo o comércio negreiro recebe “incentivos” termidoriano. Deduz Badiou a fraqueza da política e das chamadas “virtudes” morais contra o mercado e as finanças. Pode-se concordar ou não com o seu prognóstico, mas a sua diagnose é perfeita. Se ele me permitisse uma brincadeira, diria: o golpe é dado pelo conúbio da esquerda com a direita, desde que a esquerda —e a peça sempre se repete— pensa e age econômicamente como direita.

Ao prometer ética, justiça, transparência à população, a esquerda retoma o passado. Ela confirma o enunciado de Marx : “os homens fazem a sua história, mas não arbitrariamente em condições escolhidas por eles, mas em condições diretamente fornecidas como herança do passado. A tradição de todas as gerações mortas pesa muito no cérebro dos vivos”. Quem fala em golpes analise a história da esquerda e a crônica de suas alianças. Deti-me na Revolução Francêsa. Mas lembrem-se o Pacto assinado agosto de 1939, entre esquerda e direita. A inspeção do passado mostra que se as finanças governam a economia num governo “de esquerda” devemos exclamar diante da triste narrativa jacobina : De te fabula narratur. Os golpes vêm, me perdoem, da ex-querda no poder.

Notabibliográfica
1) Lefebvre, G. The French Revolution, from its origins to1793. Routledge & Kegan Paul,ColumbiaUniversityPress.
2)Soboul. Albert : La Revolution française, Paris, Gallimard.
3) Badiou, A. : “Qu´est-ce qu´un thermidorien ? In Kintzler, Catherine : La république et la Terreur. Paris. Kimé.

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