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Dinheiro vivo, decreto morto
Saques em dinheiro para despesas com cartão corporativo representam 77% dos R$ 45,34 milhões gastos até julho
Lúcio Lambranho
Além de gastar somente nos primeiros sete meses de 2007 mais do que durante todo o ano passado com os cartões corporativos, o governo federal ainda viu 77,7% do total desses gastos serem sacados em espécie para o pagamento de despesas consideradas urgentes de mais de 6 mil servidores. É o que mostra um levantamento ao qual o Congresso em Foco teve acesso e que separou os gastos feitos com os cartões nas modalidades de saque em dinheiro e nas despesas pagas por meio de faturas.
Os saques em dinheiro como a principal forma de utilização do chamado Cartão de Pagamento do Governo Federal (CPGF) contrariam decreto assinado pelo presidente Lula no final de 2005. Trata-se do Decreto 5.635, de 26 de dezembro de 2005, publicado no Diário Oficial da União dois dias depois.
No dia seguinte à publicação, o Ministério do Planejamento divulgou comunicado à imprensa informando que o objetivo da medida era justamente "reduzir os saques em espécie e dar maior transparência e operacionalidade ao uso do cartão pelos órgãos."
O texto ainda explica as alterações determinadas pelo decreto após uma série de representações de parlamentares sobre o volume de gastos desses cartões pela Presidência da República: "O novo decreto determina que o pagamento com o cartão poderá ocorrer para aquisição de materiais e contratação de serviços enquadrados como suprimento de fundos, mesmo que não seja de entrega imediata, tais como pequenas compras de itens ou serviços não previstos ou não disponíveis. Decreto anterior de janeiro de 2005 definia que o cartão poderia ser utilizado para o pagamento de despesas com aquisição de materiais e contratação de serviços de pronto pagamento e entrega imediata, o que levava muitas vezes os servidores, portadores de cartões corporativos, a sacarem em espécie para a quitação dos serviços."
Os dados do levantamento obtido pelo Congresso em Foco (veja os gastos declarados) revelam que o decreto e as explicações divulgadas pelo Planejamento foram ignorados pelos ordenadores de despesas de 154 órgãos da administração federal, sem considerar as 14 secretarias vinculadas à Presidência da República.
Entre 1º de janeiro deste ano e o último dia 31 de julho, o Executivo gastou R$ 45,34 milhões com os cartões corporativos, despesa superior aos R$ 33 milhões registrados durante todo o ano passado. Do total gasto nos últimos sete meses, apenas 20,6% – R$ 9.367.920,09 – foram pagos com faturas dos cartões corporativos. Os R$ 35.976.505,66 restantes foram sacados na boca do caixa pelos 6.168 gestores desses cartões, distribuídos em toda a administração pública federal.
Improbidade administrativa
O deputado Gustavo Fruet (PSDB-PR) acredita que o descumprimento do decreto editado pelo próprio governo poderá gerar uma representação por improbidade administrativa ao Ministério Público Federal. "Enquanto não houver um método único para auditar esses cartões, todo o tipo de especulação vai continuar acontecendo. Eu também quero saber por que um servidor faz saques de quase R$ 100 mil. É preciso saber como esses gastos serão comprovados depois", avalia o deputado paranaense.
De fato, como diz o deputado, o maior saque feito foi de R$ 93 mil pela servidora do IBGE no Amazonas Edineia Macedo do Nascimento. De 1º de janeiro a 31 de julho, o IBGE fez saques no valor de R$ 21.163.649,11 – 60% do total gasto em todo o governo –, e mais R$ 1.433.335,64 em faturas com os cartões.
A Controladoria Geral da União (CGU) afirma que o crescimento no volume total de gastos com os cartões corporativos se deve justamente à realização do Censo Agropecuário pelo IBGE, mas reconhece a necessidade de o governo reduzir os saques em dinheiro (leia a íntegra da nota). "A CGU tem posição favorável a uma maior limitação dos saques em dinheiro. Isso já foi manifestado ao Ministério do Planejamento – que é o órgão competente para disciplinar a matéria, e lá o assunto vem sendo objeto de estudos", diz a Controladoria em nota enviada ao Congresso em Foco.
Segundo a assessoria de imprensa do Ministério do Planejamento, o Decreto 5.635 está em uso e sendo obedecido pelos órgãos da administração federal. “Todos os saques em dinheiro precisam ser justificados com a devida prestação de contas”, diz o comunicado. Ainda de acordo com a pasta, “o objetivo do decreto era regulamentar o uso dos cartões e fazer com que as pessoas usassem o saque em dinheiro somente se houvesse justificativas”.
Segundo a CGU, situações como a do IBGE explicam não só o crescimento do uso do cartão, como também a expansão do volume de saques, "já que se trata da realização de despesas em áreas rurais e de pequenas comunidades onde não funcionam as redes afiliadas aos cartões eletrônicos", afirma o comunicado.
TCU pede mais controle
O Tribunal de Contas da União (TCU) recomendou ao governo, ainda em acórdão de março deste ano, melhorias no sistema de controle e restrição aos saques para pagamentos de despesas. O voto do ministro Ubiratan Aguiar, relator de uma auditoria sobre o uso dos cartões da Presidência da República, mostra a preocupação do tribunal com a comprovação posterior dos gastos:
"Não poderia deixar de registrar que me chamou a atenção o elevado percentual de documentos fiscais com irregularidades – quase 35% (de um total de 648 notas examinadas, detectaram-se irregularidades em 226)."
A Secretaria de Administração da Presidência da República fez, nos últimos sete meses, um total de R$ 197.129,00 em saques e mais R$ 2.296.056,18 em faturas com os cartões corporativos. Apesar do volume menor de saques na Presidência, os técnicos do TCU revelam a dificuldade de comprovar os gastos quando as despesas são pagas a partir de saques como os cartões dos ordenadores de despesas em viagens presidenciais. Leia este trecho da auditoria:
"Portanto, os documentos de suporte afastariam, em princípio, a hipótese de que o serviço não tenha sido prestado. Contudo, ressalva-se que o pagamento foi realizado mediante saque em dinheiro, o que não comprova o pagamento direto à empresa."
O mesmo relatório, com as recomendações do ministro, foi encaminhado ao Ministério Público Federal. O caso está a cargo da procuradora Eliana Pires Rocha, da Procuradoria da República no Distrito Federal (PR-DF). O procedimento administrativo foi aberto, ainda em 2004, após representação do deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP), ouvidor-geral da Câmara.
“Esse saques são a materialização da improbidade administrativa e da irresponsabilidade com o dinheiro público”, acredita Sampaio. Segundo o deputado, na época da sua representação, que segundo o deputado foi acolhida e está em processo de investigação pela PR-DF, os cartões estavam sendo usados para compra de cerveja, chocolates e doces. “Os cartões foram criados para que o governo tivesse segurança de Estado, mas os saques simulam o uso indevido do dinheiro público. Já se foram quase quatro anos, mas será que a Polícia Federal não poderia ter dado uma atençãozinha para esse caso?”, critica o parlamentar do PSDB.
A Agência Brasileira de Inteligência (Abin), cujos gastos são protegidos devido à natureza reservada de suas atividades, só fez gastos na modalidade de saques em espécie, no valor total de R$ 7.407.221,00. Em apenas um cartão no nome da própria Abin como pessoa jurídica foram sacados R$ 7.207.344,00. Outros 51 servidores do órgão de inteligência do Executivo fizeram saques que variaram entre R$ 41.320,00 (o valor mais alto) e R$ 60,00 (o mais baixo).
Carros e hospedagem
No primeiro escalão do governo, a única titular de cartões desse tipo é a ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir). Pelos dados do levantamento, Matilde Ribeiro gastou R$ 112.444,09 na modalidade de fatura – e não de saques em espécie. Os gastos são referentes a despesas contraídas pela Seppir com aluguel de carros e hospedagem.
Também nas despesas da Secretaria, o Congresso em Foco identificou um saque no valor de R$ 1.830,00 no nome de José Roberto Rodrigues. A reportagem entrou contato com a Seppir para esclarecer os motivos desse saque, que não consta do portal da Transparência da CGU, onde estão declarados todos os gastos com os cartões corporativos do governo federal, e para saber por que esse gestor não está relacionado no site da Secretaria. Mas a assessoria não retornou o contato até o fechamento desta edição.
O deputado Augusto Carvalho (PPS-DF), autor de uma representação em 2004 que denunciou ao TCU irregularidades no uso dos cartões, classifica como "escárnio" os gastos a partir de saques em dinheiro na administração federal. "Confesso que estou estarrecido com esses valores de saques. É inacreditável e, pelo que entendi, o Ministério do Planejamento criou um factóide com o anúncio desse decreto, que não serviu para nada", disparou o deputado do PPS.
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