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quarta-feira, agosto 01, 2007

CORREIO POPULAR DE CAMPINAS, 01/08/2007.

Publicada em 1/8/2007

A REPÚBLICA DA HIPOCRISIA

Roberto Romano

Palavras são signos do pensamento, expressam percepções e atitudes. Não existe coincidência absoluta entre grafismos ou sons e a intimidade. É por semelhante motivo que Imanuel Kant chama o universo dos valores como o reino do “Noumeno”, termo que possui vários sentidos, em especial “razão, pensamento”. Kant opõe a ciência, na qual impera a visibilidade (o mundo “fenomênico” consciência. Ao contrário do objeto científico, que é medido, pesado, experimentado com instrumentos, valores só podem ser capturados pelo pensamento. E daí se patenteia a hipocrisia. Como ninguém pode ver o que um indivíduo pensa ou sente, é comum o emprego da aparência nos tratos humanos.

A moral respeita as leis do mundo físico. As regras da liberdade não são visíveis como os fenômenos. Não desobedecemos a concatenação material do universo, onde se move a nossa corporeidade. Mas está ao nosso alcance (a moral não depende da natureza), imprimir no mundo visível as marcas do agir livre e responsável. As palavras podem evidenciar mentiras ou verdades. Depende do nosso caráter, bom ou ruim, a característica do discurso que expomos ao coletivo que nos acolhe ou hostiliza. O indivíduo de caráter perverso pode falar verdades e bondades, mas elas não integram a sua alma. O de bom caráter, se perde momentâneamente o controle sobre si mesmo, enuncia coisas perversas. Como sua alma não é pervertida, o erro pode ser corrigido. De qualquer modo, o livre arbítrio é um juiz implacável para os dois tipos humanos, o hipócrita e o irado.

Qualquer pessoa, se dominada pelos pendores pessoais, pode representar a comédia do respeito à lei. A hipocrisia é brilho falso: Kant usa a palavra alemã Gleisnerei, poder de dissimular cujo antônimo é o vocábulo Glänzen, brilhante. A hipocrisia é brilho excessivo cujo alvo é o engano dos demais. Por este motivo, a propaganda do poder tomba na hipocrisia. Mas nenhum politico hipócrita (talvez eu cometa uma tautologia) escapa da própria consciência. Segundo Kant, um espetáculo pavoroso é o trazido pelo exame de consciência: “Nenhum homem desejará ter ocasião de o experimentar, nem desejará viver numa tal circunstância. Mas ele vive e não pode suportar ser indigno de viver diante de seus próprios olhos” (Crítica da Razão Prática). Suportar a si mesmo, sem nenhum auto-respeito, é o prêmio maldito de todo hipócrita. O jogo entre visível e invisível nos torna ao mesmo tempo habitantes do mundo físico e cidadãos do mundo moral, onde agimos com livres movimentos. É essa passagem que permite a Kant dizer, no fim da Crítica da Razão Prática, que admira duas coisas: “o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim”.

Na Renascença, era de mudanças radicais de comportamentos e saberes, foi possível pensar que a política deveria ser apenas e tão somente hipocrisia. Os imensos volumes escritos para justificar a Razão de Estado mostram uma face terrível do poder. A fama de Maquiavel e do maquiavelismo deve-se a esta percepção ética. Um clássico, neste sentido, é o livrinho de Torquato Acetto, Sobre a Dissimulação Honesta. Se nada é mais odioso do que a exibição do Ego de quem fala apenas de si e pensa apenas na primeira pessoa (a política do “isto é bom para mim, ou para nós”) nada é mais perigoso, numa república democrática, do que a hipocrisia e a pura aparência tomadas como razão de Estado. Prova? Vejam o Brasil, terra onde todos os atos do governo são definidos por João Santana, o mestre das aparências que regula os gestos do presidente quando se trata de afastar qualquer responsabilidade, como no desastre da TAM. Sim, em nosso país domina a política da hipocrisia. Resta esperar que Imanuel Kant tenha razão e os nossos poderosos, a começar do presidente, assistam, cedo ou tarde, o pavoroso espetáculo da sua própria consciência.

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