ROBERTO ROMANO
Jogo de alto risco e pouca ética
Antonio Delfim Neto - Jornal O Valor
22/01/2008
A tabela acima revela de forma crua o que sofreu o contribuinte brasileiro nos últimos 19 anos. Diante desse fantástico aumento da carga tributária que cresceu a 3,3% ao ano, enquanto a renda per capita crescia a 0,9%, e da contínua deterioração da qualidade dos serviços (segurança, justiça, saúde, educação, transportes etc.) fornecidos pela União, pelos Estados e pelos municípios, a sociedade brasileira internalizou dois sentimentos que lentamente estão gerando conseqüências:
1º ) que os serviços públicos brasileiros têm a mais alta relação custo/benefício do mundo e
2º ) que há, na verdade, dois Brasís: o das autoridades, das corporações da administração direta e das empresas estatais que se apropriaram do Estado. Seus afortunados habitantes tem bons salários, mais serviços públicos e muito melhor aposentadoria. Conseguiram isso controlando o outro Brasil: aquele no qual vive a esmagadora maioria dos que "ganham a vida honestamente" e existem apenas para servi-los...
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Carga tributária cresceu a 3,3% ao ano
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Enganam-se os que pensam que foram as políticas de redução da pobreza (que consome parcos recursos) ou as políticas que aumentam a igualdade de oportunidade (condição necessária para a sobrevivência da sociedade democrática) ou a generosa política assistencial-redistributiva estabelecida pela Constituição de 1988, as principais responsáveis pelo aumento da carga tributária. Tudo isso somado à eliminação do financiamento inflacionário (até 1994) talvez tivesse exigido um aumento da carga tributária de 24% para 28% ou 30% do PIB para garantir o equilíbrio fiscal definitivo. Essa seria uma carga aceitável para um país emergente pobre mas com sensibilidade social.
Pelo menos metade do aumento da carga tributária entre 1988 e 2007 se deve aos equívocos da política econômica, particularmente a do primeiro mandato de FHC quando, com uma taxa de juro real inacreditável, acumulamos uma enorme dívida interna atribuindo-a confortavelmente aos "esqueletos" deixados pelos outros... Felizmente as dificuldades daquele momento impuseram a convicção que boa parte das tarefas do Estado poderiam e deveriam ser transferidas para o setor privado e reguladas por agências que protegeriam os consumidores e garantiriam os investidores. Infelizmente o processo foi paralisado no meio do caminho e o governo Lula só recuperou a boa idéia (mas ainda não se conformou com ela) no seu segundo mandato.
Reconheçamos a seguinte situação que envolve os orçamentos e é um pouco mais do que hipotética.
Normalmente: 1º ) existe uma subestimação da receita da União pelo Executivo (e uma superestimação pelo Legislativo!); 2º ) existem despesas (ou aumento de despesas) "projetadas" (desejadas, mas não comprometidas) que podem ser eliminadas ou adiadas; 3º ) existem desperdícios substanciais (viagens, financiamentos "ad libitum" de ONGs que no Brasil são jaboticabas não governamentais financiadas pelo governo!); finalmente, 4º ) existe uma ineficiência visível, a olho nu, na gestão dos serviços públicos e no uso de recursos nas emendas parlamentares. Esses fatos só adquirem visibilidade quando um cataclisma, como o atual, exige uma freada de arrumação. Todo orçamento sob escrutínio cuidadoso admite (sem prejuízo sensível) algum enxugamento. O ideal é que se fizesse isso permanentemente, com um bom sistema de orçamentação que partisse de uma receita estimada em discussão pública transparente que o Executivo respeitaria na sua proposta original e que o Congresso não pudesse rever, o que não acontece.
Voltemos agora à pedestre realidade. O Congresso cortou R$ 40 bilhões de receita da CPMF e só aprovou a continuação da DRU (Desvinculação da Receita da União) sob o compromisso (exigência ou chantagem, uma vez que sua eliminação produziria o caos financeiro?) que o Executivo desse sua palavra que não proporia aumento compensatório de imposto. Este tem de conformar-se com o fato que vai ter que cortar, mas não tem plena certeza que poderá fazê-lo sem comprometer o equilíbrio fiscal e a continuidade da redução da relação dívida/PIB que são fundamentais para manter a estabilidade monetária a tanto custo conquistada. Suspeita-se que mesmo cortando fundo a despesa talvez seja necessária alguma compensação de receita. Para não deixar encerrar a oportunidade, realiza um movimento tático preventivo (aumenta o IOF e o CSSL) para eventualmente não tornar impossível aquele equilíbrio sem o qual morreria o "espírito do desenvolvimento" recém acordado. Sob tal ameaça renega a palavra empenhada sob chantagem e enfrenta dura condenação.
Mesmo correndo o risco de ser considerado um miserável pragmatista é preciso perguntar se é relevante invocar solução ética baseada em princípios apriorísticos que não levam em conta o custo da ação para esse jogo de altíssimo risco entre parceiros simetricamente pouco éticos (do ponto de vista dos "princípios"), cujas ações obedecem a um único "princípio": conservar ou conquistar o poder?
Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP