Powered By Blogger

terça-feira, janeiro 01, 2008

Publicada no Correio Popular de Campinas em 2/1/2008

Notas sobre a Spe Salvi (final)

Roberto Romano

A lembrança de Ernst Bloch no artigo anterior indica que a ideologia marxista se orienta para o mileranismo e se firma como escolástica para justificar um regime onde brilha a razão de Estado mas some a crítica da razão. Não é fácil uniformizar os intelectos militantes. O lado apologético se afirma na Zhdanovshchina que domina a ordem política entre 1946 e 1953. A partir de 1946 Zdhanov, o sicofanta oficial da URSS, denuncia Anna Akhmatova, Prokofiev, Shostakovich, Eisenstein, Aleksandrov. O periódico Voprosy filosofii (Problemas de Filosofia) e a Academia de Ciências da URSS decretam a correta filosofia “do ponto de vista marxista”. O filósofo Alekxandrov é acusado por Zhdanov por escrever uma História da Filosofia Ocidental Européia sem efetivar “as tarefas da filosofia”. Cito Zhdanov: “o camarada Aleksandrov considera possível dizer alguma coisa boa sobre muitos filósofos do passado. Quanto mais eminente o burguês filósofo, maior lisonja lhe é oferecida. Tudo isso mostra que o camarada Aleksandrov, talvez sem ter consciência, ele próprio é presa dos historiadores burgueses, os quais partem da tese de que todo filósofo é primeiramente e sobretudo um associado na profissão e apenas secundariamente um adversário. Tais concepções, caso aceitas entre nós, conduzirão inevitavelmente ao objetivismo, à subserviência diante dos filósofos burgueses com o exagero de seus méritos, o que priva nossa filosofia do seu espírito ofensivo, militante”. (Citado por Miller, A. "The annexation of a Philosophe. Diderot in Soviet Criticism", Diderot Studies, 15). Em similares “tarefas” da ciência, filosofia, arte, cultura, ainda hoje se esgotam os saberes militantes. E, claro, na destruição física ou moral dos “adversários”. Não é de espantar que Lyssenko seja o ícone do obscurantismo que leva a URSS e seus dependentes ao cemitério dos sistemas políticos de nefasta memória.

Diante do marxismo oficial (o único a existir, apesar dos pretensos “dissidentes” como G. Lukács), nada mais lógico do que o desejo de ler algo além das tarefas exigidas pelos dirigentes. Para reavivar a fé romântica do marxismo (apresentei o tema nos livros Conservadorismo romântico e Corpo e Cristal, Marx romântico) Bloch afirma em O princípio Esperança que a utopia é palavra usada para nomear a consciência apocalíptica. Utopias como a de Morus não teriam atrativos emocionais (seu “racionalismo” é demasiado...). Para conceder fervor à utopia, escreve Bloch, acrescentemos visões judaicas e cristãs do Apocalipse, onde se manifesta a esperança de transcendência. O Apocalipse manifesta o Absoluto, velho anseio dos que sucederam Kant, de Hegel aos jovens-hegelianos. Desde o seu livro sobre Tomas Münzer, no qual o monge comunista é visto com simpatia, nosso autor aplica ao marxismo o entusiasmo quiliasta. O pensamento de Marx, segundo Bloch, deve se transformar, de fria doutrina econômica e política, em “sonho do Absoluto”. O espírito da utopia é cantado como “o poder da busca e do fim das condições sob as quais os homem foi oprimido como ser desprezível ou esquecido, para remodelar o planeta. E também como vocação, criação e advento forçado do Reino”. Para toda a passagem, ler H. Mayer ("Ernst Bloch, Utopie, Literatur" in Deutsches utopisches Denken im 20. Jahrhundert e também Kl. Vondung (The Apocalypse in Germany. Univ. of Missouri Press. 2000). Se o quiliasta não empolgou os chefes de seu partido, conquistou bons amigos (alguns incômodos) entre cristãos, ansiosos pelo sopro carismático contra as carcomidas doutrinas sociais e políticas, para uso dos fiéis militantes.

Não por acaso os temas de Bloch foram assumidos (ou pilhados) por religiosos. O Princípio Esperança de Bloch se transforma, num milagre místico, na Teologia da Esperança de J.Moltmann. Alí, o militante comunista (impaciente e à espera da sociedade comunista sem males) é transubstanciado no cristão que não aceita o mal entre os homens. Desta ambigüidade entre as duas militâncias, surge a doutrina pastoral da Spes Salvi. É bom que os cristãos tenham rumo próprio. Mas também é certo recordar que o uso da esperança alheia pode conduzir a descaminhos. “Spe salvi facti sumus”, diz São Paulo (Romanos 8, 24). Amém...

Arquivo do blog