‘Golpes financeiros e jurídicos’ resultam da secular concentração de poder no Executivo
Escrito por Valéria Nader | |
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Golpes financeiros e jurídicos’ resultam da secular concentração de poder no Executivo |
Escrito por Valéria Nader | |
30-Jul-2008 | |
Cruzadas moralistas, quando muito salvacionistas, é o que parece estar resultando da intensa exposição midiática dos últimos episódios de corrupção descobertos em nosso país. Não seria preciso ir muito além?
O professor de Ética e Filosofia da Unicamp Roberto Romano, em magistral análise, retoma as origens seculares desses episódios que vêm se desenrolando ‘espetacularmente’. Se é no período FHC que começou a se pronunciar uma burguesia com forte caráter financeiro, cujos vínculos com o capitalismo internacional tornaram-se ainda mais diretos – um resultado da aceleração da ‘privataria’ -, a sua origem deve ser buscada bem mais remotamente, ainda sob a égide do Império.
Segundo Romano, nosso poder Executivo herdou as características de um poder moderador que foi transposto para o Brasil não como um poder neutro, mas como um poder superior aos demais. Além de irresponsável no sentido jurídico da palavra, concentrava em si todas as políticas públicas. Originou-se aí a tradição da promiscuidade público-privada e da onipotência do chefe do Executivo.
É assim que a atual crise mundial, que leva à privatização dos recursos públicos e à sua transferência para as mãos do capital financeiro, encontrou terreno tão fértil no Brasil. E é também por isso que a Polícia Federal, que deveria estar a serviço do Judiciário, transformou-se em precioso instrumento de propaganda do Executivo.
Confira abaixo.
Correio da Cidadania: Com a aceleração da implantação do neoliberalismo no país, especialmente a partir da era FHC, ascendeu ao poder uma nova burguesia, a qual, diversa daquela que predominou no período desenvolvimentista, possui forte caráter financeiro e tem vínculos ainda mais diretos com o capitalismo internacional. Qual o nexo que o escândalo ‘Daniel Dantas’ estabelece entre esse contexto e o atual estágio de desenvolvimento do capitalismo em nosso país?
Roberto Romano: Em primeiro lugar, não creio ser este um problema somente brasileiro, mas sim mundial, chegando-se a uma questão grave, a da soberania nacional. Há uma crise dos Estados, onde, para cada um deles, com suas histórias, está chegando um momento no qual não conseguem mais exercitar integralmente os três monopólios: o da força física, o da ordem jurídica e o dos impostos. Temos uma ‘quase quebra’ entre a sociedade e as máquinas estatais.
Com isso, o Estado, ao mesmo tempo em que precisa de recursos financeiros para manter suas atividades (por exemplo, os EUA precisam manter sua indústria armamentista, de tecnologia de ponta etc.), não tem de onde tirá-los, a não ser dos impostos, já altíssimos. Sendo assim, o favorecimento ao capital financeiro é uma fonte que, claro, traz um endividamento inédito, até para os próprios EUA. Para se auto-financiarem, os Estados se endividam cada vez mais junto ao capital financeiro.
E o que é oferecido em troca? Este ponto é complicado, pois, entre a lógica do capital financeiro e a social, há uma ruptura, não há uma continuidade imediata. Também temos o outro setor da economia, o da produção de alimentos. Note como na Rodada de Doha os Estados desenvolvidos não abrem mão dos subsídios, pois eles constituem uma maneira de os Estados se financiarem a si mesmos, não tanto uma questão eleitoral. Este é um aspecto da questão.
Podemos notar, assim, que se trata de uma crise mundial, que não pode ser definida apenas em termos ideológicos. A China é um país oficialmente comunista, porém está entrando nessa lógica de maneira acelerada. E aqui no Brasil, ela não é inaugurada somente no governo FHC. No período do Sarney já havia esse privilégio ao capital financeiro. O Plano Cruzado foi uma tentativa de salvar o Estado sem os remédios "heróicos" aplicados no período de FHC e de Lula, como, por exemplo, via a desestruturação dos direitos trabalhistas, dos salários, e a reforma da previdência.
Eu não diria, portanto, com muita tranqüilidade que se trata primeiramente de uma questão ideológica neoliberal, para além dos resultados. Acho que há uma lógica dos próprios Estados, que não estão conseguindo se manter como tais. Aí entram milhões de causas, desde econômicas até questões de crescimento da sociedade, que não mais se apresenta como aquela existente no começo do século XX. Salvo pequenas nações, as populações hoje estão na escala dos milhões. E essas pessoas precisam da segurança do Estado, de educação, de saúde e mais uma série de coisas.
Porém, ocorre que o Estado precisa escolher entre salvar a si mesmo ou servir à população. Como ele precisa de recursos para manter imensas burocracias e toda uma indústria (armamentista, tecnológica e outras), necessita fazer uma opção. Obviamente, essa opção não se dá em favor da saúde, da educação e da segurança da população. Sempre que o Estado puder economizar recursos, o fará. E seguirá fazendo essa parceria com o capital financeiro, o que lhe permite acumular dívidas cada vez maiores.
CC: É dessa lógica que proliferam situações como a que vivemos no país agora, onde o caso Daniel Dantas é, na verdade, apenas uma ponta de um iceberg?
RR: O escândalo, na verdade, é muito mal enfocado. Peguemos somente do ponto de vista do Congresso. Daniel Dantas possui uma bancada maior que a do próprio Lula.
Pode-se medir a importância de um personagem social pelos seus amigos, aliados e inimigos. Se somarmos esses três grupos, no que se refere a Dantas, no Congresso Nacional, vemos que é uma pessoa que o polariza por inteiro. E é evidente que um indivíduo totalmente responsável por uma série de desvios é um elo de uma cadeia muito mais ampla.
CC: Um elo de uma superestrutura que vem lá de trás, da formação do Estado nacional brasileiro.
RR: Exatamente. A centralização do poder no Rio de Janeiro, já no período do Império, no século 19, e a necessidade de manter um território imenso como o nosso fizeram com que o Estado precisasse se garantir. O primeiro ato de D. João VI no Brasil foi criar o Banco do Brasil, com a idéia de financiar o Estado brasileiro e emitir moeda sem lastro. Ou seja, já começaram ali os escândalos. Não por acaso, o Banco do Brasil foi à bancarrota logo depois. CC: Em suma, estamos diante de um ‘modus operandi’ secularmente arraigado.
RR: Exato. E o que é essa lógica? Temos uma dimensão espacial de Império, temos tamanho comparável aos EUA, à Europa inteira, à Rússia. Essa imensidão precisa de controle, armado e burocrático, o que obriga o Estado, dessa forma, a se financiar.
Como precisa fazer isso, ele açambarca, na velha tradição absolutista, os impostos nas mãos, e não os devolve aos municípios e estados. E aí temos esse conúbio do público e do privado.
Minha esposa, Maria Sylvia Carvalho Franco, mostra em seu livro "Homens livres na ordem escravocrata" que vereadores e o prefeito emprestarem dinheiro para os municípios fazerem obras era uma prática comum no século 19. E quando eles emprestavam esse dinheiro, havia dois efeitos muito deletérios. O primeiro é que a população via esses atos como favores, criando um forte impulso para a formação das oligarquias nacionais e regionais. O segundo é que o processo também se invertia: se a população emprestava quando o município precisava, por outro lado, quando a população precisava, o município também emprestava. Ou seja, a população podia se apossar do cofre público, já que era, em tese, favorecedora desse cofre.
CC: Armou-se, portanto, nesses primórdios, a arena para a promiscuidade público-privada?
RR: Claro, já tínhamos essa dialética, o que não mudou até hoje. O governo Lula continua arrecadando 70% dos impostos e não os distribuindo corretamente para estados e municípios. Quando se tem essa crise mundial dos Estados, que leva à privatização dos recursos públicos e à sua transferência para as mãos do capital financeiro, o Brasil apresenta terreno fértil para a sua propagação.
Vejamos que numa federação como a americana, em que os estados e municípios têm maior autonomia, é mais difícil para o governo assumir uma política escancaradamente pró-capital financeiro. Aqui, tem-se a concentração dos poderes no Executivo, que exerce uma ditadura praticamente permanente. Sendo assim, quando o presidente ou o ministro bate o martelo, não há quem ouse se levantar contra.
Dessa forma, quase todos os planos econômicos de "salvação" foram verdadeiros golpes de Estado em nosso país. Golpe de Estado não significa somente colocar soldados nas ruas espetacularmente e derrubar o presidente. Existem maneiras mais sutis, pode-se dar um golpe mudando, por exemplo, a estrutura jurídica. Quando existem operários, professores, trabalhadores, com direitos adquiridos de aposentadoria, e mudam-se as regras, está se mudando o direito da população, a norma do Estado. Está sendo dado um golpe.
CC: Seguindo um pouco essa trilha dos ‘golpes de Estado’ e da centralização de poder pelo Executivo, como o senhor enxerga a ação da Polícia Federal no escândalo Dantas? É reveladora de alguma ingerência abusiva do Estado na vida dos cidadãos?
RR: Acho que sim, pois é tradição do Estado brasileiro essa onipotência de seu chefe. O poder Executivo no Brasil herdou as características de um poder moderador, que, além de irresponsável no sentido jurídico da palavra, concentrava em si todas as políticas públicas.
Todos falam do lápis vermelho de D. Pedro II como se fosse piada, mas ele servia para que se interviesse no Legislativo, no Judiciário (e a Constituição de 1824 dava a ele poderes para mudar juízes e tudo mais), enfim, transformava-o num super-homem de Estado. Tal concentração faz com que se tenham os três monopólios tradicionais do Estado (da força física, da norma jurídica e dos impostos) concentrados nas mãos do Executivo. Isto é, não existe nenhuma política pública no Brasil compartilhada pelos três poderes. Tudo é decisão do Executivo. No caso desse monopólio da força física, o Executivo usa e abusa.
Portanto, a PF é um instrumento do Executivo federal que deveria estar a serviço do Judiciário. Como ela tem essa visão de hegemonia do Executivo, e os próprios integrantes dos outros poderes também, existe essa tentação permanente do presidente da República, do ministro da Justiça ou ainda da chefia da Polícia Federal (nesse caso é mais grave ainda, pois os integrantes da PF se julgam os próprios presidentes da República) de fortalecer, propagandear, as políticas do Executivo.
Dois fatos interessantes: quando a Folha de S. Paulo fez uma crítica, muito tênue, ao governo Collor, ele mandou a PF invadir o jornal. Foi um dos seus tremendos elementos de desgaste, inclusive. Já quando, no período do Plano Cruzado, era necessário manter a sua propaganda, colocavam-se delegados da PF prendendo boi pra cima e pra baixo.
Quer dizer, temos essa duplicação de funções da PF, que é ao mesmo tempo um instrumento mantenedor do monopólio da força física, preferencialmente na mão do Executivo, e também um instrumento de propaganda desse poder. É tudo meticulosamente feito para dar essa sensação, seja pela espetacularização, falta de respeito aos direitos individuais, humilhação dos presos etc.
Parece-me que, nesse caso, é evidente ser o descontrole da PF um sintoma do descontrole das relações do Estado brasileiro. Não existem três poderes harmônicos e soberanos agindo conjuntamente, mas sim uma hegemonia do Executivo sobre os outros dois.
CC: Acrescentaria ainda a esse ‘descontrole da PF’ a visão crítica de que a ação um tanto performática da polícia estaria enveredando por um perigoso caminho salvacionista, como se, ao prender corruptos, o problema da corrupção estivesse solucionado. Como encarar essa crítica? Enfrentar as ‘quadrilhas’ não é também importante no processo de luta?
RR: Nessa medida, acredito que a espetacularização do trabalho da polícia e sua transformação em propaganda do Executivo ajudam realmente a desviar o foco desse ponto mais fundamental.
Inclusive, no programa Roda Viva da TV Cultura do qual participei, disse algo no mesmo sentido, de que temos duas possibilidades de entender o processo de corrupção no mundo inteiro, e no Brasil particularmente.
A corrupção tem uma estrutura sincrônica e uma diacrônica. A primeira está em todos os setores da sociedade, incluindo até a Igreja, e é a possibilidade de apropriação de recursos coletivos por grupos ou indivíduos. Lembro-me, no caso da Igreja, por exemplo, quando a CRB (Conferência dos Religiosos do Brasil) foi prejudicada pelo seu tesoureiro, que roubou o dinheiro da conferência, fato que dificultou o processo de aposentadoria de vários religiosos. Mesmo dentro das igrejas, sempre há uma riqueza coletiva e, consequentemente, uma disputa por sua apropriação e aplicação.
Portanto, temos em todos os setores da sociedade essa facilidade de quem está na direção de algum organismo (religioso, político, esportivo) de se apropriar do fundo coletivo. Esse é o aspecto sincrônico, tudo ocorre ao mesmo tempo. Enquanto o Eurico Miranda mete a mão no dinheiro do Vasco, o Daniel Dantas está brincando em outro campo, e o bispo Edir Macedo, por sua vez, em outro, tudo sincronicamente. E o que é mais grave, com dutos entre estes setores. À medida que um grupo se torna poderoso, ele procura relações, passa recursos, troca favores e vai concretizando essa rede. Se fosse possível puxar por um novelo, traríamos o país todo pelo mesmo fio de lã. Esse aspecto sincrônico continua vigente e é muito difícil dizer que essa realidade mudará ao som de três cantigas.
Já o aspecto diacrônico é a tomada de consciência de aspectos dessa sincronia. O Ministério Público, a PF e a imprensa descobrem um escândalo: a partir daquele momento, tal escândalo passa a receber um foco privilegiado, que vai até certo ponto, para, posteriormente, cair quase que na impunidade. Ninguém sofre nada. O foro privilegiado, por exemplo, só existe por causa da corrupção. Depois de um tempo, aparece outro escândalo e, logo depois, mais um. Quer dizer, temos uma sucessão cronológica em termos diacrônicos que muitas vezes faz esquecer esse aspecto sincrônico, que é fundamental.
O que me parece fundamental é que a PF tem atuado quase exclusivamente na base da diacronia. Ela descobre um caso, depois outro, mas, se existe um trabalho que mapeia sincronicamente toda a questão, eu não conheço. Tenho muitas dúvidas, cujas respostas não existem. Não há condições tecnológicas para o mapeamento sincrônico, o que nos faz sentir impotentes. No meu entender, isso traz a nossa curiosidade, o ressentimento, o desejo de vingança. Ver o Maluf algemado dá um prazer muito grande, mas esquecemos que dois dias mais tarde ele estará solto e ficaremos sozinhos com o nosso prazer.
CC: Perde-se, desafortunadamente, portanto, a dimensão maior do problema.
RR: Exatamente. Parte-se não para a lógica racional, mas sim para a lógica das paixões. É o que a espetacularização faz, ela movimenta o ódio, o ressentimento, a inveja, essas paixões primárias de todo ser humano. No entanto, o problema continua lá. E depois vem o aspecto mais perverso, aquela pregação de que a democracia não resolve, que a impunidade existe e é absoluta, insuperável, e que, portanto, não vale a pena lutar contra a corrupção, pela justiça social, pelos valores, pois, afinal, todo mundo é corrompido, ‘salvo eu’.
Este é o ponto que parece mais grave. Cria-se uma subjetividade inocente que é absolutamente hipócrita. É como considerarmos meia dúzia de familiares e amigos autênticos como santos e o resto do mundo, pecadores. E aí se duplica o prazer da punição, da humilhação. Tal receita, Savonarola já tentou em Florença, na época do Renascimento, e não deu certo. Aliás, ele acabou queimado. Os corruptos da sua época continuaram corruptos e muito importantes. Essa receita do justiciamento, e não da justiça, muitas vezes pregada, é bem ruim.
CC: Nesse sentido, o que o senhor pensa dessa ‘lista suja’ de candidatos, recém divulgada? Ela não é reveladora dessa ‘receita do justiciamento’?
RR: Considero essa lista um erro. Se temos um processo desses, no qual magistrados colocam a público uma lista, temos em última instância a denegação do direito do devido processo legal. Temos pessoas que estão sendo acusadas por erro burocrático, por distração, algo perfeitamente humano, ou por culpa de terceiros, quer dizer, a pessoa foi implicada num crime e não teve coragem ou tempo suficiente para cortar a coisa no momento certo.
E o que acontece? A democracia grega é sempre um exemplo para nós. Na Grécia, existia uma pena que era a da atimia, que vem de Timós, que se refere à coragem e à honra do ser humano. O cidadão acusado de atimia perdia todos os direitos civis e políticos. Não podia ser juiz, testemunha, nada. Podia ser morto que não haveria crime.
Essa pena podia atingir desde o sujeito que tinha de prestar contas e não o havia feito corretamente até o acusado de prostituir seu corpo, questão que na Grécia era referente ao homossexualismo masculino. Essas pessoas eram condenadas sem julgamento. Os juristas modernos dizem ser assustador terem existido culpados que recebiam pena sem passar pelo devido processo legal.
Portanto, essa questão da atimia ajudou poderosamente a corroer os laços internos da democracia grega. No momento em que qualquer um pode ser acusado de desonrado, todos podem. A partir disso, a amizade, o respeito, vão desaparecendo.
É evidente que nessa lista existem assassinos, ladrões do erário público etc., mas será que, com toda certeza – pois, num processo legal, não pode haver dúvida -, você diria que todos eles são corruptos e larápios do tesouro público? E aí vem a pergunta: onde está a justiça?
CC: Nessa linha, faria uma conexão com a ação do STF, que foi moralmente criticado, mas juridicamente considerado correto por muitos ao mandar soltar o banqueiro Dantas, face à falta de provas evidentes na justificativa da prisão preventiva. Em sua opinião, o ministro Gilmar Mendes agiu acertadamente?
RR: Eu acredito que sim. Como diria o advogado, com todo o respeito, não cabe ao juiz nem ao promotor público assumir esse papel de denúncia e quase de acusação pública de candidatos, como não cabe, coloco no mesmo barco, o que o Ministério Público acabou de fazer com o MST lá no Rio Grande do Sul.
Deve-se agir segundo fatos e levá-los até o direito. Leva-se o fato até o juiz, que, por sua vez, decide ser ele digno de louvor ou de sanções negativas. Não cabe ao MP essa atitude de punir um movimento social ou um corrupto antes da decisão judiciária. O sistema de justiça mínimo, essencial, tem três fases que de maneira alguma podem ser negligenciadas, sob pena de não termos mais justiça, ou de ficarmos com apenas uma caricatura dela. E essas três fases são a acusação, a defesa e um juiz mediador entre ambos. Se qualquer um destes elementos faltar ou abusar de suas prerrogativas, não há justiça.
Portanto, neste caso da lista suja, acho que está havendo uma falta de obediência ao múnus próprio dos juristas e juízes. No caso do MST, é a mesma coisa. São situações diferentes, mas a perda de rumo é muito similar.
CC: Associando esse ato do Ministério Público no Rio Grande do Sul à questão da ingerência do Estado, não teria sido omisso o governo Lula diante de uma ação tão ostensiva, ao contrário da prisão de Dantas, inicialmente avalizada pelo governo?
RR: Neste caso, precisamos pensar novamente sob a ótica do Estado dirigido hegemonicamente pelo Executivo. Eu sou partidário do Estado democrático de direito, que significa não ser autônomo o Estado em relação à sociedade, mas sim a expressão da complexidade social, não podendo tornar-se superior e curador da sociedade. Mas temos a perda do Estado ligado aos três poderes, o que resulta exatamente nisso: o Estado curador e, dentro dele, um Executivo que possui a tutela de todo o resto.
Quando tal processo se dá, aparece a lógica da divisão e da facção. E não é por acaso que a PF se define como várias facções. No MP há também várias tendências e facções, vários partidos inclusive. Existem procuradores de esquerda, conservadores, de todo tipo, e o poder do presidente separado, concorrendo com eles para dominá-los, tratando essas questões, de Estado, como se fossem políticas e de facções.
Portanto, assim como pega bem junto à opinião pública e a setores mais conservadores, usando um termo brando, prender um Daniel Dantas (com o devido refluxo depois), não pega bem o presidente ir contra os promotores do Rio Grande do Sul. Este pensamento de que "o que é bom para mim, é bom para meu grupo, meu poder", escapa da lógica do bem coletivo, do Estado.
Nesse caso, sempre se louva e se admira a agilidade política de raciocínio do presidente Lula, que de fato é ágil. Mas note: nesses últimos tempos, muito raramente sua agilidade vai no sentido de promover o bem do Estado e da sociedade. Quase sempre é dirigida a manter a sobrevivência de si mesmo e de seu grupo político.
CC: Ou seja, mais uma vez, temos uma situação plenamente coerente sob a ótica do ‘modus operandi’ do Executivo.
RR: Exatamente. Elias Canetti, naquele magnífico livro "Massa e poder", caracteriza o poderoso como sobrevivente. Quer dizer, a partir do momento em que ele tem poder e o exerce, mandando prender, matar, enviando corpos à guerra, vai assumindo uma espécie de volúpia de eternidade, que é irreal, pois nenhum ser humano pode tê-la. Ele analisa muito bem a personalidade de Schreber, que é um juiz e tem esse devaneio de divindade, essa soberba, arrogância. O poderoso se alimenta da vida dos governados. Ou seja, "tudo que puder ser feito para que eu permaneça no poder, eu farei, e tudo aquilo que for prejudicial à permanência minha e do meu grupo, não farei". Isso me parece muito grave.
O mesmo presidente que põe na cabeça o boné do MST em Brasília, fazendo toda aquela encenação, cala-se quando acontece algo como o ocorrido no Rio Grande do Sul. O que poderia acontecer caso ele se manifestasse? Evidentemente, alguns setores diriam que está interferindo em outro poder, usando métodos do Chávez e tudo mais. Esse não é um problema nosso e nem da cidadania, mas sim do cidadão Luiz Inácio da Silva. Ele que deve assumir se vai ter um programa ou não.
Chegamos a esse ponto com o PT. Com a ‘Carta aos brasileiros’, ficamos sabendo que o PT entrou nessa lógica mundial de quebra da soberania dos Estados nacionais. Assumiu plenamente um retrocesso em relação a um programa defendido durante vinte anos. Houve uma quebra de confiança tremenda em relação ao público interno. Conseguiram, Palocci e cia., a confiança do investidor externo, leia-se capital financeiro, à custa da quebra da palavra com o cidadão interno.
Sempre gosto de dizer que ‘accountability’ significava na Inglaterra, nos EUA e na França confiança e prestação de contas ao cidadão que paga impostos e mantém o país. O governante que não desfruta da confiança de seus cidadãos tem uma palavra que não vale nada para ninguém. Nesse caso, tivemos a quebra da palavra que está no programa do PT até hoje. Por outro lado, há a propaganda para, digamos, remediar essa quebra da República. Portanto, é claro que a propaganda será ampliada, dando espaço para esses magos como Duda Mendonça, João Santana e outros.
CC: Esta lógica ressaltada, com o descompasso entre os poderes a partir da tutela do Executivo - e também o descompasso intra-poderes, na medida em que a polícia manda prender, com o aval de instâncias inferiores do judiciário e do governo (mesmo com seu recuo posterior), e o supremo manda soltar -, caracteriza a seu ver um quadro de crise institucional?
RR: Benjamin Constant, o liberal francês, criou o Poder Moderador porque houve uma ditadura do Legislativo, a Jacobina, que deu no Robespierre, no Terror, no fim da Revolução Francesa e no retrocesso de suas conquistas. A escravidão, por exemplo, que tinha sido abolida, voltou, além de outros fatos semelhantes.
Como resultado dessa ditadura do Legislativo e como reação contrária, tivemos a ditadura do Executivo, com Napoleão. Assim, quando passou o reinado de Napoleão, Constant pensou em um poder moderador que servisse para coordenar os três, evitando hegemonia de um ou outro. Poderia ser exercido por um rei, presidente da república etc., pois seria um poder neutro, capaz de resolver esse excesso de poder de um em detrimento de outro, exatamente para evitar uma ditadura.
O poder moderador foi transposto para o Brasil e aplicado não como um poder neutro, mas como um poder superior aos demais. Na carta de 1824, a idéia de poder moderador é a de um poder superior aos demais.
Existem distintos modelos de Estado: o ditatorial (que pode ser de um grupo ou indivíduo), o liberal-democrático, o liberal, o totalitário, enfim, modelos não faltam. No entanto, se temos uma proposta de Estado republicana e democrática, devemos ter os três poderes contrabalançados. Caso contrário, podemos sofrer com a ditadura de um deles.
Ora, no nosso caso, temos o poder Executivo hegemônico, usando as prerrogativas de um poder moderador-superior, interferindo na vida dos outros poderes e, como resultado, chegamos à reação desses outros contra ele. E nosso modelo é pior ainda, pois os deputados e senadores não são nada mais nada menos que representantes das oligarquias regionais encarregados de trazer recursos para suas regiões. O que temos no Congresso, no relacionamento do Executivo com o Legislativo? Ou chantagem, do tipo "se não passar verbas para a Bahia, não votamos no seu projeto", ou cooptação de deputados e senadores pelo Executivo. Não temos outro modelo. Isso exalta a corrupção, gera insegurança institucional permanente.
A Inglaterra está em crise como nós, mas lá podemos contar com o papel de cada um dos poderes. Lá, o poder Judiciário depende do Parlamento e não existe supremo tribunal. O poder do povo, representado no parlamento, é superior ao poder judiciário.
Dessa forma, o cidadão e o próprio político têm uma expectativa de performance no poder. Aqui, o Executivo legisla, através das medidas provisórias. Com isso, abre para o Legislativo as possibilidades da chantagem ou da cooptação. E diante de tais leis, que não emanam do Legislativo, o que pode fazer o Judiciário? Ele não carrega uma expectativa de comportamento político, enquanto poder de Estado. Ele julga caso a caso.
De certo modo, voltamos àquilo que Max Weber chamou de justiça do Cádi, a Constituição está lá para ser adorada, mas o que decide é o caso a caso, o dia-a-dia. Assim, não se cria uma expectativa de comportamento e de esperança; o cidadão comum que queira entrar com processo não sabe o que será depois, porque não tem expectativa.
Nessa onda de ‘autoritarismo’, tem-se algo que nem no período da ditadura existia, essa inédita invasão de escritórios de advocacia. Este também é um ponto deletério no meu entender. Fui preso político e não tenho notícia de escritórios de advogados invadidos pelas forças repressivas. Na época, a ditadura torturava, desconhecia os direitos dos presos, atenuava ao máximo as prerrogativas dos advogados, que não podiam realizar visitas na hora em que queriam, entre outras ilegalidades. Mas entrar num escritório de advocacia para pegar papéis é algo que está se tornando inédito.
O pior é que vejo o ministro Tarso Genro dizendo que o presidente da República está com o projeto que garante a inviolabilidade dos escritórios aprovado pelo Legislativo, mas que, se ele e Lula perceberem que haverá uma facilitação do crime, vetam o projeto. Isso é o fim do mundo. Vindo de uma cabeça jurídica como a do Tarso Genro, parece-me um retrocesso pior que a Carta aos brasileiros.
O PT conta com militantes que foram presos durante a ditadura e que são presos ainda hoje. Possui toda uma ala de setores mais radicais que precisam de advogados. Essas pessoas vão ficar com qual tipo de advogado? Com aquele permitido pelo Executivo? Isso para mim tem um nome: escancaramento a toda ditadura futura. Acho isso muito, muito, perigoso.
CC: Estamos, portanto, diante de novos e sorrateiros golpes de Estado?
RR: É isso mesmo. Veja, é próprio das ditaduras mais virulentas que o advogado seja desprezado, assim como o espírito de defesa. Lembro-me do livro de Graciliano Ramos, "Memórias do cárcere", em que havia um advogado que se acreditava como tal, que pensava existirem leis respeitadas. Quando ele é preso e atravessa o pátio do quartel, ao chegar do outro lado, já não acredita em nada disso, pois é próprio da ditadura corroer a confiança no direito e na justiça. Tenho muito medo desse tipo de conseqüência.
Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.
Colaborou o jornalista Gabriel Brito.
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E para complemento da entrevista acima, segue a notícia da Folha de São Paulo:
São Paulo, quinta-feira, 31 de julho de 2008
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Gasto do setor público com juros é o maior em 17 anos
Valor desembolsado aumentou 11,6% e chegou a R$ 88 bi no primeiro semestre
Crescimento se deve à alta da inflação e da Selic e aos prejuízos do BC em operações no mercado de câmbio; cai relação entre dívida e PIB
NEY HAYASHI DA CRUZ
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Outro fator a impulsionar os gastos com juros é o prejuízo que o BC tem com o chamado "swap cambial reverso", operação feita no mercado financeiro que corresponde a uma compra futura de dólares. Com o dólar em constante queda, essas aquisições feitas pelo BC resultam em perdas que são contabilizadas como despesas com juros. No primeiro semestre, o prejuízo acumulado com as operações de "swap" somaram R$ 4,8 bilhões. Para Carlos Thadeu de Freitas, economista da CNC (Confederação Nacional do Comércio) e ex-diretor do BC, esse tipo de transação deveria ser abandonada devido ao seu elevado custo fiscal. "Essa política deveria ser repensada, porque, do jeito que está, é prejuízo certo [para o governo]", afirma Freitas.
Para Newton Rosa, economista-chefe da Sul América Investimentos, a situação das contas públicas no atual cenário de alta da Selic só não é pior porque, atualmente, a parcela da dívida pública corrigida pela taxa básica da economia é menor do que já foi no passado.
Isso se deve ao maior peso que papéis prefixados têm na dívida. No mês passado, o endividamento do setor público chegou a R$ 1,180 trilhão, sendo que 37,6% desse valor corresponde a títulos prefixados. Em dezembro de 2003, essa parcela era de apenas 1,5%.
Significa que, no caso de uma alta da Selic, a dívida não sobe tanto, pois os juros pagos pelos papéis prefixados são determinados no momento da emissão. "Esse tipo de preocupação existe, mas não é tão grande quanto foi no passado", diz Rosa.
A própria dívida pública é, hoje, menor do que foi há alguns anos. No mês passado, equivalia a 40,4% do PIB (Produto Interno Bruto), nível mais baixo registrado pelas estatísticas do BC desde 1998. Em dezembro de 2002, essa proporção estava em 50,5%.