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sexta-feira, julho 11, 2008

Um escrito sobre Elias Canetti, saído na Folha de São Paulo num passado não muito remoto, de minh autoria. Quando vejo os embates de hoje, no Judiciário brasileiro, lembro o teatro de Canetti...
RR




A mais terrível das peças escritas por Canetti é Comédia da Vaidade (Komödie der Eitelkeit). O título, de tradução complexa para o português (1), resume toda a história ética ocidental. Nela, o autor sintetiza, com precisão milimétrica, as grandes lições dos moralistas gregos e latinos, unindo-as rigorosamente às formas bíblicas. Dessas fontes, ele segue para a consciência moderna, identificada com o tempo dos relógios e dos espelhos. O texto começa com um "nós", repetido como ladainha hipnótica, e termina com a palavra "Eu", berrada no interior da massa anônima. O instrumento especular é "personagem" efetivo do trabalho.

O espelho reúne em si mesmo as idéias antitéticas, mas complementares, da sabedoria e da tolice. Como assinala Jurgis Baltrusaitis (2), ele foi utilizado enquanto emblema da virtude e sinal de loucura. Canetti explora ao máximo, com recursos novos, a velha imagem especular. Superfície polida, isto é, cultivada (3) nas escolas, do primário às universidades, e pelos meios de comunicação de massa, a consciência moderna, que se reflete no "público médio", é o máximo da tolice e da vaidade.

Na peça, os espelhos são continuados pelas fotografias, jogando Elias Canetti com o imenso acúmulo crítico da modernidade, o qual fortaleceu a recusa platônica das imagens. Basta que se lembre Baudelaire: com a fotografia, "a sociedade imunda selançou com ímpeto, como um Narciso solitário, para contemplar sua imagem trivial sobre a placa metálica. Uma loucura, um fanatismo extraordinário, se apossou de todos esses novos adoradores do sol" (4).

Um dos iniciadores da modernidade, mas dela crítico feroz, Rousseau retomou o platonismo contra imagens e o palco, numa peça teatral notável. Impossível amar a cidadania e mesmo satisfazer o erotismo entre homem e mulher, pensa o autor do "Contrato Social", sem abandonar o próprio ego: "(...) Quando amamos, não mais pensamos em nós mesmos" (5). A interdição dos espelhos e das fotos é recorrente ao longo da Comédia das Vaidades, retirando o autor deste motivo surpreendentes perspectivas da subjetividade vazia.

A crítica do narciso coletivo é uma arte que vem sendo aprimorada desde a Grécia (a referência de Canetti a Aristófanes e à linhagem dos grandes satíricos mostra-se decisiva), fincando raízes também na cultura bíblica. Vanitas vanitatum... et omniavanitas (6). Talvez nenhum refrão seja mais repetido -e no entanto mais eficaz para descrever a tolice humana, insuportável quando o intelecto reflete a si mesmo, entenebrecendo o mundo e seus fundamentos. A glória, a vanglória, o saber arrogante que se confunde com a ignorância, as análises de tudo isso foram potenciadas ao máximo no encontro, durante o helenismo, entre a cultura grega e a judaica. Renascença e Reforma, ambas mergulhando nas águas mais profundas da Grécia e do povo israelita, levantaram monumentos literários nos quais, até hoje, brilha a mais fina ironia já lançada sobre os habitantes irritadiços de Babel.

Poucos filósofos captaram de modo certeiro a tolice social como Montaigne. A vaidade, a levitas do vulgo estólido, é fonte de loucura e de tirania sem par. Contra ela, todos os recursos devem ser aplicados. Retomando a crítica do Górgias platônico à retórica, Montaigne constata o inescapável plano coletivo da vanité: "A tolice e a facilidade que encontramos no vulgo, e que o torna sujeito a ser manipulado e deformado pelas orelhas ao doce som dessa harmonia, sem pesar e conhecer a verdade das coisas pela força da razão, essa facilidade, digo, não se encontra tão facilmente em um só...." (7).

Lutero, na Bíblia que modelou a língua alemã, grafa a Vanitas (8) com o termo que irá definir o misto de desengano e gloríola das modernas subjetividades: Eitel (9). O vocábulo, a melancolia e a sátira que ele evoca, muito próximas da Loucura erasmiana, foram um ponto estratégico no teatro, na poesia, na prosa e nas artes barrocas, em especial na Alemanha: Du sihst/ wohin du sihst nur eitelkeit auff erden... (Para onde quer que olhes, vês apenas vaidade sobre a terra") (10). A experiência do Nada, o lote dos indivíduos e povos na terra e a crítica da Eitelkeit chegaram ao máximo, em termos literários, com o romantismo. O mundo moderno, instaurado pela Razão das Luzes, o progresso, as melhorias sociais e políticas, mas sobretudo a liberdade baseada no conhecimento científico, seriam apenas tolice epalavras soltas ao vento, Eitelkeit... (11).

Hegel, o pensador que mais gravemente nivela os indivíduos, prendendo as subjetividades particulares ao "belo" Todo, captura, por meio de uma pilhagem do Sobrinho de Rameau diderotiano, a tolice na cultura massificada. Para que se efetive a pretensão do indivíduo ao genial autocentramento narcísico, como no caso do músico vagabundo que "empilhava e embaralhava 30 árias italianas, francesas, trágicas, cômicas, de todo tipo de personagem", é necessário que nada mais no espírito coletivo seja estável e sólido. A individualidade autocentrada é um corrosivoque ameaça os liames sociais. A consciência do Ego representa apenas "a tolice que só escuta a si mesma". O mundo moderno é sandice e loucura, e o indivíduo, seu filho e genitor ao mesmo tempo, é simples Eitelkeit (12).

Em semelhante mundo, como num espelho mágico, tudo aparece de cabeça para baixo, invertido e pervertido, explicitando-se como "um Eu que é um Nós". Lendo-se a Comédia da Vaidade, é possível notar que tal itinerário é refeito, mas agora sem nenhuma promessa hegeliana de repouso conciliador ou epifania do Absoluto racional, no divino Estado que tudo corrigiria, da visão especulativa aos menores atos.

Notas:
1. A tradução francesa, Comédie des Vanités, por exemplo, ajuda bastante a entender a polissemia, árdua em português, carregada pelo termo alemão, como veremos adiante.
2. Le Miroir, Révélations, Science-Fiction et Fallacies, Paris, Seuil, 1978.
3. Hegel foi o grande profeta desse "cultivo" que realiza o polimento dos indivíduos, transformando-os em espelhos do coletivo, o universal. "Pela mediação da noção hegeliana de gênero, somos enviados a uma concepção bem determinada do que deve ser a "formação" do homem: na linha de Hegel, ela só poderia ser um "aplainamento", um apagar de todas as diferenças que separam os indivíduos, estes turbulentos, sempre rebeldes à boa totalização ética", Gérard Lebrun, "Surhomme etHomme Total", in Revista Manuscrito, vol. 11, nº 1, 1978.
4. "Salon de 1859", in Oeuvres Complètes, Paris, Laffont, 1980, págs. 748-9.
5. "Narcise, ou l'Amant de Lui-Même", in Oeuvres Complètes de Rousseau, Paris, Gallimard, La Pléiade, vol. 2, pág. 1.018.
6. Esse poema deslumbrante e desalentado foi refeito em nossa língua por Haroldo de Campos, revestindo o Eclesiastes com a roupagem hebraica que define sua diferença diante da tradição latina. "Vanitas", ou "Névoa-nada", remete à triste reserva diante da estultice humana. Leia-se o esplêndido ensaio de Campos, no volume 1, em que foi publicada sua tradução. Cf. Campos, H: Qoélet - O Que Sabe: Eclesiastes, São Paulo, Perspectiva, 1990, em especial a pág. 35, em que o tradutor indica a presença, no texto, de importantes traços irônicos.
7. "De la Vanité des Paroles", "Essais", in Oeuvres Complètes, Paris, Gallimard, La Pléiade, 1962, pág. 293.
8. Vanitas, que por sua vez reproduz na língua latina a palavra mate, a loucura ou erro, falsidade, sandice, fala supérflua e superficial, donde o mataiotes grafado na Septuaginta (Cf. Deutsche Bibelgesellschaft Stuttgart, 1979, pág. 238).
9. Es ist alles ganz eitel..., in Lutherbibel erklärt, Die Heilige Schrift in der Übersetzung Martin Luthers, Deutsche Bibelgesellschaft, Stuttgart, 1987, pág. 1.002.
10. Andreas Gryphius, Es ist alles eitell".
11. "Hinos à Noite", de Novalis, especialmente o de número cinco, espelham esta crítica às Luzes, de modo impiedoso. Cf. Roberto Romano, Conservadorismo Romântico - Origem do Totalitarismo, São Paulo, Unesp, 1997, 2ª ed., pág. 130.
12. G.W.F. Hegel, Phänomenologie des Geistes". Werke in zwanzig Bänden, F.A.M. Suhrkamp, 1970, vol. 3, págs. 386-387.

Roberto Romano é professor de ética e filosofia política na
Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor de
"Conservadorismo Romântico" (Ed. Unesp), entre outros. Este
texto foi extraído do prefácio ao livro "Canetti - O Teatro
Terrível" (Ed. Perspectiva), que deve ser lançado no dia 20 de
junho.

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