Excelente trabalho jornalístico. Em vermelho, sublinho a passagem da hipocrisia profissional, para dizer melhor, hipocrisia "de Estado".
Tristes tigres...
RR
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São Paulo, domingo, 20 de julho de 2008 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice Mônica Bergamo bergamo@folhasp.com.br
O juiz A coluna acompanhou um dia (tenso) do juiz Fausto Martin Sanctis, que já mandou prender o megatraficante Juan Carlos Abadía e os banqueiros Edemar Cid Ferreira e Daniel Dantas São 10h30 de quarta, 16, e De Sanctis começa um dos dias mais tensos de uma rotina profissional já cheia de confrontos no comando da 6ª Vara Criminal de SP. "Tem muita coisa acontecendo aqui hoje", diz ele. "Olha... tá difícil. Hoje, tá difícil!", afirma. O promotor Rodrigo De Grandis o aguarda. Delegados telefonam. Advogados lotam o corredor. Todos querem informações sobre a Operação Satiagraha, que prendeu Dantas, Naji Nahas e mais 15 pessoas na semana anterior. Logo mais, o juiz transformará Dantas em réu por tentar corromper um delegado. Logo mais, os advogados do banqueiro pedirão que o juiz se afaste do caso "pela falta de isenção, pelas entrevistas que deu, pelas declarações que formulou". Outros advogados já pediram -até agora, sem sucesso - o afastamento dele de processos. Foi assim no caso de Edemar Cid Ferreira, do Banco Santos, que ele mandou prender. Foi assim na investigação da parceria MSI/Corinthians, em que decretou a prisão do russo Boris Berezovski. "Sabedoras da jurisprudência das cortes superiores [que muitas vezes revertem a decisão da primeira instância], as pessoas vêm aqui desrespeitar o juiz. Olha, eu vou te contar... Já veio até um advogado me prender!" O tal advogado publicava em um site dados de um inquérito sigiloso. Foi impedido de consultar os autos. "Ele apareceu aqui e disse para a secretária: "Eu vim prender o doutor Sanctis". A sorte é que eu estava de férias." "Tem que acabar esse tipo de advocacia", diz Sanctis. "Te contei que teve um advogado que me chamou de burro?". Isso porque o juiz escreveu num despacho que determinada iniciativa "não visa a busca de prova" - sem crase. Escreveu o advogado: "Doutor em direito, o juiz Fausto não sabe que o verbo visar é transitivo indireto". Respondeu o juiz: "Agradeço a grande contribuição para o aperfeiçoamento de meu linguajar. Mas, pelos dicionários "Aurélio", "Michaelis" e "Houaiss", o verbo visar é indireto e direto também". "Eles querem provocar a emoção para depois pedir minha suspeição. É assim o tempo todo." [No caso, o verbo pedia crase.] A assistente chega, cochicha com ele. O juiz sai para a audiência na sala ao lado. No corredor da 6ª Vara, mais de dez advogados aguardam, há duas horas, por seu chamado. Circulam, falam ao celular."Não tem cadeira pra gente sentar, não tem nada. É um esculacho!", reclama um deles. Um grupo se junta em torno do bebedouro. "Cuidado! Vamos ser presos por formação de quadrilha para roubar água!", diz outro. "É um absurdo! O juiz tem que despachar de porta aberta. Mas, se a gente entrar lá, ele nos prende por invasão", reclama um terceiro. E outro: "É um mau-caráter, arbitrário, justiceiro". As portas se abrem. Alguns advogados entram. Sorriem para o juiz. "Doutor, parabéns pelo seu trabalho." "Eu não sou autoritário. Sou autoridade judicial", diz Sanctis. Sem almoçar -já são 16h- ele conta que até dividiu um queijo quente com um réu na audiência porque ele também estava "morto de fome". Sob fogo cruzado desde que mandou prender novamente Dantas depois que o STF mandara soltá-lo, o juiz tem sido acusado de não ter lá grande apreço pela defesa. "Isso não é verdade. O direito de defesa é basilar e consagrado em todo e qualquer país. Quantas buscas, quantas prisões já indeferi? Quantas pessoas já inocentei?" Só no processo do Banco Santos, afirma, foram 13 absolvidos e dez condenados. "Mas, se prezo o direito de defesa, prezo também o direito do Estado de investigar e apurar a verdade." A assistente entra na sala. Cochicha. O juiz, que acabara de transformar Dantas em réu por tentativa de corromper um delegado, recebe a notícia de que os advogados do banqueiro oficializaram o pedido para que saia do caso. "Eu não abaixo a cabeça! Querem me tirar daqui? Podem me tirar. Mas vou sair com dignidade." Com os olhos marejados, leva uma das mãos ao rosto: "Em que país a gente vive?! É muito triste, meu Deus... é muito triste." O telefone toca. "Não, eu não vou dar entrevista coletiva. Cuidado! Estão querendo é dizer que quero aparecer." Desliga. "É uma guerra. Às vezes, eu me pergunto: vale a pena? Estou decepcionado! Nosso sistema foi concebido para não funcionar." É justamente a sua vontade de que as coisas "funcionem", "não para condenar, mas em busca da verdade real", diz, que gera tantos atritos com alguns advogados. "Eu sou um juiz ativo. Eu vou atrás." Há dois anos, por exemplo, ele determinou a transferência de obras de Edemar Cid Ferreira para o Memorial da América Latina. "Elas estavam num galpão, contaminadas por fungo! Liguei desesperadamente para o Memorial da América Latina. Me pediram um mês de prazo." Sem ter onde colocar as peças, o juiz andou "sala por sala" dos 17 andares do prédio da Justiça Federal, na região da avenida Paulista, em busca de um local para abrigá-las. "Não encontrava. Pensei: onde ficam os computadores? No subsolo. Lá tem ar-condicionado! Não quis nem saber: determinei judicialmente a transferência imediata das obras para o prédio. Elas depois foram para o Memorial. E hoje estão lá, para todo mundo ver." De Sanctis procura um documento sobre a mesa, onde 34 livros se misturam com pastas e papéis. Olha para a colunista, leva a mão ao peito. "Olha, obrigado pela força. Humildemente, eu agradeço. Estão me criticando só porque faço meu trabalho de juiz. Eu já não sei mais se dou entrevista, se não dou entrevista. Dizem que quero aparecer. Mas eu não falo de mim. Nem de casos concretos. Eu só gostaria encarecidamente que a imprensa retratasse a relevância do que ocorre aqui." Por razões de segurança, Sanctis diz estar "proibido de falar até da família". Conta o básico: passou a infância na Mooca. Estudou em escola pública. Fez direito na FMU e doutorado na USP. O pai era funcionário público; a mãe, dona-de-casa. Tem três irmãs. Já foi casado. Está solteiro. Gosta de ir a parques, de andar de bicicleta. Fez um curso recentemente sobre a Bíblia na Casa do Saber. Tem preguiça de ver filmes. Diz que, atualmente, só trabalha -na 6ª Vara, especializada em crimes financeiros, tramitam 500 ações penais e mil inquéritos. "Vão dizer que me dedico demais, que sou um apaixonado, que não tenho equilíbrio. Tudo é argumento contra mim. Tudo!" Despacha numa pequena sala com carpetes cinzas, paredes beges, cadeiras pretas, um ventilador e as bandeiras de SP e do Brasil. Acha a vista "linda", mas mantém as persianas sempre fechadas porque alguém pode filmá-lo de prédios vizinhos. No fim do expediente, aceitou o convite de um conhecido que jantava com amigos -entre outros, os apresentadores Amaury Jr. e Maria Cândida- no restaurante A Figueira. Na entrada, é abordado pelas pessoas, que querem tirar fotos. Um homem se aproxima. "O senhor se lembra de mim?" Silêncio. "Eu sou um dos réus do caso do Banco Santos." Tensão. O homem completa: "Fui absolvido pelo senhor". Os dois trocam cartões. E cada um vai para a sua mesa de jantar. Frases "Eu não abaixo a cabeça! Eu não abaixo a cabeça! Querem me tirar daqui? Podem me tirar. Mas vou sair com dignidadde." "É uma guerra. Às vezes eu me pergunto: vale a pena? Estou decepcionado! Nosso sistema foi concebido para não funcionar" |