VINICIUS ALBUQUERQUE
da Folha Online
Os Estados Unidos já tentam esvaziar qualquer esforço para retomar hoje as negociações da Rodada Doha, que discute a liberalização do comércio mundial, baseados em um comentário agressivo do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim. Ele comparou a resistência dos países ricos em negociar com a atitude do chefe da propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels.
Amorim lembrou que, em sua estratégia, Goebbels dizia que uma mentira contada muitas vezes acaba sendo aceita como verdade. Dada a sensibilidade do momento atual na economia global, em que se fala cada vez mais em protecionismo, um comentário desse tipo causou melindre àqueles que esperam qualquer desculpa para dificultar o processo de abertura.
Susan Schwab, a representante comercial dos EUA --e descendente de sobreviventes do holocausto-- foi a primeira a reagir, através de seu porta-voz Sean Spicer. Ela disse que "esse tipo de comentário maldoso não tem lugar nessas negociações". Amorim pediu desculpas ontem pela declaração. Mas o que tirou com uma mão, recolocou com outra, insistindo no conteúdo da idéia de Goebbels: "Mantenho: repetir uma distorção faz com que as pessoas acreditem que ela é a verdade".
Em um tom um pouco menos diplomático, mais crítico, Spicer disse que "no momento em que tentamos encontrar um resultado bem sucedido para as negociações, esse tipo de declaração é altamente infeliz". "Para alguém que é ministro de Relações Exteriores, ele devia estar mais atento para alguns pontos sensíveis."
Ele ainda afirmou: "[Amorim] fazer declarações desse tipo é incrivelmente errado. Elas são insultuosas."
Por mais inoportuno que tenha sido o comentário, as negociações comerciais já estavam estagnadas muito antes desse episódio. A obstrução de fato é causada pela dificuldade (ou desejo) que o governo norte-americano tem de enfrentar o lobby agrícola --um dos mais poderosos do país-- e cortar os subsídios aos produtores do país. Tanta atenção a um comentário mal colocado seria uma forma de desviar o foco do que realmente é o caso em Genebra: evitar que a rodada seja declarada oficialmente morta --como disse o prêmio Nobel de Economia de 2001, Joseph Stiglitz, em seu livro "Globalização: Como Dar Certo".
No sábado, Amorim disse que os líderes dos países ricos se baseiam em fórmulas diferentes de redução de alíquotas ao se referir às negociações, o que daria a entender que as concessões que poderão fazer em agricultura são muito maiores que as que os países em desenvolvimento estão dispostos a aceitar no capítulo industrial. "Essa é uma afirmação sob medida para aqueles que não querem fazer sua parte em agricultura", afirmou.
Ele disse ainda que é um "mito" a crença de que a questão agrícola já está fechada, e que a OMC só está à espera de que os países do Sul demonstrem sua boa vontade em relação aos produtos industrializados para que se alcance o acordo esperado. "Ainda resta muito a fazer na agricultura", ressaltou --prevendo que um fracasso da reunião ministerial iniciada hoje pode adiar a conclusão de um acordo de livre comércio em três ou quatro anos.
Repercussão
O diário americano "The Wall Street Journal" disse em um artigo que a declaração de Amorim é "absurda e realmente preocupante, vinda de um diplomata moderado".
Já o jornal americano "The New York Times" diz que a rodada está viva "através de aparelhos". O diário diz que a Índia e o Brasil "se recusam a reduzir suas tarifas devido ao medo das economias movidas a exportações, como a China".
O jornal "The New Zealand Herald" disse que a declaração de Amorim é "potencialmente um incidente diplomático". "O comentário motivou uma pronta resposta dos EUA, cuja representante comercial, Susan Schwab, é filha de sobreviventes do holocausto".