A Idade Média: Santo Tomás de Aquino faz o diálogo entre Teologia e Filosofia
Domingos Zamagna (*)
O que pode induzir alguém a estudar a filosofia de Santo Tomás de Aquino (1224-1274) nos dias de hoje? Que interesse pode suscitar aquele frade do século XIII? Que valor pode encontrar um leitor atual naqueles textos de penosa leitura? E que, ainda mais, aceitava a autoridade da Igreja medieval? Afinal, toda a sua obra não se move num mundo definitivamente (ultra)passado? A resposta a essas perguntas depende em primeiro lugar da nossa concepção de filosofia e de Idade Média.
A Filosofia
Ninguém mais ousa definir a Filosofia, já que tal definição varia de acordo com os filósofos, as correntes filosóficas e os períodos históricos. Existem bons dicionários que costumam narrar toda a história da acepção desse vocábulo e dessa ciência.
Mas a filosofia é uma disciplina insólita. De um lado ela tem muito de ciência, já que o filósofo, tal como o cientista, busca a verdade. Na filosofia e na ciência há descobertas a serem feitas. Os filósofos contemporâneos entendem certas coisas que seus colegas de outrora, mesmo os mais ilustres, não chegaram a compreender. O prazer do filósofo não há de ser diferente do prazer experimentado pelo cientista, porque ambos estão colaborando numa empresa contínua, comum e acumulativa. Cada pensador ambiciona colocar o tijolo da sua contribuição para a construção de um grande edifício. Por isso podemos dizer que a filosofia possui tantos atrativos quanto as ciências.
E não só quanto as ciências, mas também quanto as artes e as humanidades. O Professor Zeferino Vaz, artífice da Unicamp, costumava dizer que a cultura se faz pelo diálogo entre ciências, filosofia e artes. Excluir uma delas é condenar-se ao embotamento mental. Esse era o seu sonho de universidade, para substituir o modelo da universidade napoleônica que predominou durante muito tempo entre nós.
Não é incomum que algumas obras científicas fiquem superadas, mesmo que tenham sido geniais durante séculos. Nenhum estudante de matemática, de física ou de astronomia há de querer basear-se exclusivamente, por exemplo, no Almagesto de Ptolomeu ou nos Princípios matemáticos de Filosofia Natural de Newton, embora tais obras contenham ensinamentos que são válidos até hoje. Em matéria de cultura é muito difícil dizer o que é útil e o que não é útil. Assim também sucede em filosofia: não podemos reputar como perene a cosmologia de Aristóteles nem podemos querer prolongar no tempo e no espaço o que em Santo Tomás significa o inapelável condicionamento de uma época.
Quando lemos Homero ou Shakespeare, quando lemos Platão, Aristóteles, Agostinho ou Tomás de Aquino, não o fazemos somente pela curiosidade em face do antigo, mas porque descobrimos neles uma verdade que não passa com o tempo. André Malraux nos ensinou que a verdadeira cultura se faz ora pelo aprofundamento da comunhão, ora pelo cultivo da diferença.
A “Idade Média” que nunca existiu
Uma série de fatores estão convergindo para que os brasileiros superem uma idéia errônea acerca da Idade Média. A periodização da história ocidental em antiga, média e moderna é fruto dos preconceitos do alemão Christoph Keller, no final do século XVII. Atribuiu à Idade Média a pecha de ser uma “idade das trevas”. Após mil anos de esterilidade cultural, toda a criatividade foi creditada à Renascença do século XV. Ora, nenhuma pessoa medianamente informada pensa mais assim. Simplesmente porque jamais existiu essa Idade Média única e irreparavelmente arruinada, puro intervalo entre os humanismos antigo e renascentista. Até quem já teve a oportunidade de ler best-sellers como os de Umberto Eco sabem disso. Alguns deles, em versão cinematográfica, tornaram-se sucessos de bilheteria. A história do Ocidente é um único processo, uma continuidade marcada por sucessivos redescobrimentos dos valores da antiguidade. Até hoje estamos fazendo redescobrimentos da antiguidade. Cada geração descobre algo de novo na herança deixada pelos Gregos, pelos Romanos, pelos Árabes, pelos Judeus. Tivemos renascimentos nos séculos VII e VIII, no século XII, no século XIII...
O que parece surgir somente nos séculos XVI ou XVIII, valores aos quais costumamos dar o nome de modernos (espírito crítico, espírito científico, subjetivismo, individualismo, sentido de democracia, busca da liberdade, desenvolvimento técnico etc) quando os estudamos mais profundamente vemos que a maior parte deles não surgiu na Idade Moderna, surgiu muito tempo antes dos tempos modernos. Já nos séculos XII ou XIII podemos observar manifestações muito claras desses fenômenos. Numa palavra: os tempos modernos não se opõem aos tempos medievais, pois buscam os mesmos valores, apenas acelerando a evolução que já vinha se processando nos séculos anteriores.
Um pensador antigo e atual
Sob esse enfoque, nada mais estranho à verdade dos fatos do que considerar Santo Tomás de Aquino como pertencente a uma civilização diferente da nossa, pois ele viveu os mesmos valores da civilização atual, mas numa fase anterior.
O Professor José Comblin costuma fazer uma distinção entre os consumidores e os produtores ou criadores de civilização. Em todas as épocas há uma imensa maioria de pessoas que se contentam em viver passivamente a cultura na qual nasceram, são os consumidores de civilização. Eles se identificam com a etapa histórica em que vivem. Passada uma geração, acham-se superados. Já os produtores ou criadores de civilização são capazes de captar, no meio de todo o material que lhes proporciona o trato do tempo em que vivem, os princípios dinâmicos da civilização, os germes do futuro. São os que percebem melhor o espírito e os valores da cultura clássica antiga e os valores modernos. São os que contribuem eficazmente para que os homens superem os limites de seu próprio tempo.
Sob esse prisma, Santo Tomás de Aquino, embora vivendo em pleno século XIII, pode ser considerado um pensador atual, um pensador que tem algo de relevante para o homem de hoje. Pois dedicou-se a redescobrir a mensagem da antiguidade e, ao mesmo tempo, a desvendar – com impressionante liberdade – os fermentos do porvir. Sem se deixar absorver pelo seu tempo, conseguiu detectar e fazer crescer a modernidade que já se achava presente em seu tempo. Em que sentido? Por questão de espaço, vamos dar apenas dois exemplos.
Confiança na razão
Um dos mais fascinantes temas da história da filosofia é o percurso da entrada de Aristóteles no Ocidente. Para essa aventura muito contribuíram os árabes, os tradutores, as universidades, o acesso às bibliotecas gregas e orientais, o evangelismo dos mendicantes etc. O mundo cristão, que vivia em certa homogeneidade, é literalmente invadido pela filosofia aristotélica, colocando em risco um sistema até então bem protegido para que fé cristã não sofresse contradições. Alberto Magno e Tomás de Aquino começam a estudar e ensinar a doutrina de um filósofo não-cristão em Paris, Colônia, Viterbo, Nápoles, Roma e por todas as universidades, conventos e lugares em que passavam. Podemos imaginar o efeito da difusão da filosofia de Aristóteles junto aos cristãos, pois Aristóteles pregava a eternidade do mundo, do tempo e do movimento; negava a providência; ensinava que não existe alma individual imortal; que os indivíduos desaparecem com a morte; não existe livre-arbítrio... A ciência de Aristóteles desconhecia obviamente o que era dado como certo para o cristianismo, isto é, a autoridade da Bíblia e da Igreja.
É claro que a primeira atitude da Igreja foi a de proibir esse ensino. Não somente os aristotélicos extremistas como Siger de Brabant, mas o próprio Santo Tomás foi objeto das iras do bispo de Paris e do arcebispo de Oxford. Tomás foi extremamente combatido por vários de seus colegas teólogos, mas ele, sempre afeito às polêmicas em torno de grandes causas, não esmoreceu. Não porque Aristóteles fosse de moda, mas por causa da qualidade da sua filosofia. Não pensou que nada teria a aprender com um pagão. Se havia erros em Aristóteles, tais erros só podiam proceder de uma infidelidade do autor ao método racional que ele próprio criara. Era preciso ler, estudar, comentar, seguir Aristóteles. Ele não oferecia nenhum perigo à fé cristã. Pelo contrário, a fé cristã só tinha a lucrar no contacto com todos os métodos racionais e todo uso autêntico da razão.Quais foram os precursores do racionalismo moderno: Abelardo, Anselmo, Bacon, Descartes, Kant? Tomás de Aquino, certamente, tem lugar privilegiado no meio dessa plêiade.
Diálogo entre fé e razão (Teologia e Filosofia)
Tomás de Aquino sempre creu firmemente no acordo de fundo de todas as formas e expressões da razão e da fé cristã. Pesquisador infatigável, nunca desprezou o pensamento dos que dele divergiam. Nunca nos artigos da Suma de Teologia, por exemplo, deixa de apresentar as “objeções” às suas teses; pelo contrário, procura elencá-las todas, examina-as, evoca o contexto em que foram expostas, dá-lhes respostas. Cita os Gregos (soretudo Aristóteles), Árabes, Judeus, os Latinos e, naturalmente, a Sagrada Escritura, os Santos Padres, os Concílios e outras autoridades da época. Crê que toda a verdade de todas as filosofias e de todas as sabedorias só podem ter uma procedência, Deus Criador. Étienne Gilson insiste em dizer que Santo Tomás é teólogo. Ele faz filosofia a serviço da sua fé.
Para ele, entretanto, não existe dupla verdade, uma da fé e outra da razão. A verdade jamais pode contradizer a verdade. Mas existem dois modos diferentes de conhecer: a razão aceita a verdade por causa de sua evidência intrínseca; a fé aceita a verdade por causa da autoridade de Deus revelante. Filosofia e Teologia são ciências diferentes, mas não são conflitantes, como se quis apregoar durante muitos séculos, sem que tal polêmica nos trouxesse qualquer forma de benefício. Até há muito pouco tempo, prevaleceu a separação daquilo que Santo Tomás quis unir: a razão humana foi se emancipando cada vez mais da Teologia, e a fé foi buscar asilo no obscurantismo, na emoção, no misticismo e em diversas formas de irracionalismo, moléstia aliás da qual nenhum cristão ainda pode se considerar vacinado.
Nem por isso a fé, para Santo Tomás, deixa de ser um ato de inteligência, um ato racional. Na linguagem técnica de suas obras ele analisa a estrutura do ato de fé.
Para ele o ato de adesão ou assentimento à verdade revelada não se deve ao fato de a vermos, mas porque Deus o disse. A adesão à verdade é um ato produzido ou “elicidado” pela inteligência, ainda que sob a ação determinante da vontade (movida pela graça), e não sob a ação do próprio objeto, que é inevidente. Em seguida a inteligência, aderindo com absoluta certeza ao objeto revelado, nele permanecendo “habitual” por imutável assentimento (o habitus é uma qualidade estável), continua a buscar e mover-se para adquirir ainda melhor conhecimento. A inteligência goza da certeza, mas não goza da visão; ela se sente segura, mas não satisfeita. Por isso, podemos dizer que a inteligência é “cativa” da fé, porque está fixa na fé, mas não por seu bem próprio e intrínseco, que é a evidência do objeto. É, contudo, um “cativeiro” que liberta, porque a protege e a faz aderir a Deus.
A fé (oposta assim não ao conhecimento, como dirá Kant, mas ao conhecimento de visão, e à ciência propriamente dita, ou ao conhecimento de modo perfeito) é pois um conhecimento imperfeito quanto ao modo de conhecer – já que se funda sobre o testemunho de Deus e não sobre a evidência do objeto –, mas é um conhecimento verdadeiro e muito superior a toda ciência humana, por causa de sua certeza infalível, já que ela alcança a Deus segundo a sua própria essência. Por ela, diz Santo Tomás, é concedido ao ser humano entrar na participação do intelligere divinum, e considerar todas as coisas quasi oculo Dei.
A fé, enfim, tende à evidência e ao face a face com Deus, assim como o movimento tende ao seu termo. Por isso a fé comporta um movimento para a visão. Uma vez sobreelevado pela fé até à verdade divina, o intelecto é envolvido pelo dinamismo dos dons da inteligência e da sabedoria, e se faz discípulo do amor, para dar ao ser humano um antegozo desta verdade que ele conhece, mas que ele não pode, nesta terra, devorar pela visão.
Jacques Maritain advertiu que uma cultura que se declara inflexivelmente pós-metafísica terá dificuldades para acompanhar o pensamento tomista. Supondo que não haja mais espaço para intransigências no universo da cultura (nele incluindo, não é inútil recordá-lo, a vida universitária brasileira), seria anacrônico evitar o diálogo entre fé e razão, entre Teologia e Filosofia. Nunca, como hoje, a adesão a uma verdade dependeu tanto do caráter argumentativo. Para o que diz respeito à Teologia, se eu não estiver enganado, a Igreja Católica sempre elegeu Santo Tomás de Aquino como o seu mais abalizado intérprete (Doctor communis), o que vale tanto para a sua auto-interrogação quanto para a expressão, a partir de horizontes cada vez mais abrangentes – já que se trata de um tema de civilização e não meramente eclesiástico – da presença da fé na racionalidade ocidental. Esse diálogo já anda bastante adiantado em países mais civilizados que o nosso; entre nós está apenas começando.
(*) Domingos Zamagna é jornalista e professor de filosofia no Centro Universitário Unifai (São Paulo).
Domingos Zamagna (*)
O que pode induzir alguém a estudar a filosofia de Santo Tomás de Aquino (1224-1274) nos dias de hoje? Que interesse pode suscitar aquele frade do século XIII? Que valor pode encontrar um leitor atual naqueles textos de penosa leitura? E que, ainda mais, aceitava a autoridade da Igreja medieval? Afinal, toda a sua obra não se move num mundo definitivamente (ultra)passado? A resposta a essas perguntas depende em primeiro lugar da nossa concepção de filosofia e de Idade Média.
A Filosofia
Ninguém mais ousa definir a Filosofia, já que tal definição varia de acordo com os filósofos, as correntes filosóficas e os períodos históricos. Existem bons dicionários que costumam narrar toda a história da acepção desse vocábulo e dessa ciência.
Mas a filosofia é uma disciplina insólita. De um lado ela tem muito de ciência, já que o filósofo, tal como o cientista, busca a verdade. Na filosofia e na ciência há descobertas a serem feitas. Os filósofos contemporâneos entendem certas coisas que seus colegas de outrora, mesmo os mais ilustres, não chegaram a compreender. O prazer do filósofo não há de ser diferente do prazer experimentado pelo cientista, porque ambos estão colaborando numa empresa contínua, comum e acumulativa. Cada pensador ambiciona colocar o tijolo da sua contribuição para a construção de um grande edifício. Por isso podemos dizer que a filosofia possui tantos atrativos quanto as ciências.
E não só quanto as ciências, mas também quanto as artes e as humanidades. O Professor Zeferino Vaz, artífice da Unicamp, costumava dizer que a cultura se faz pelo diálogo entre ciências, filosofia e artes. Excluir uma delas é condenar-se ao embotamento mental. Esse era o seu sonho de universidade, para substituir o modelo da universidade napoleônica que predominou durante muito tempo entre nós.
Não é incomum que algumas obras científicas fiquem superadas, mesmo que tenham sido geniais durante séculos. Nenhum estudante de matemática, de física ou de astronomia há de querer basear-se exclusivamente, por exemplo, no Almagesto de Ptolomeu ou nos Princípios matemáticos de Filosofia Natural de Newton, embora tais obras contenham ensinamentos que são válidos até hoje. Em matéria de cultura é muito difícil dizer o que é útil e o que não é útil. Assim também sucede em filosofia: não podemos reputar como perene a cosmologia de Aristóteles nem podemos querer prolongar no tempo e no espaço o que em Santo Tomás significa o inapelável condicionamento de uma época.
Quando lemos Homero ou Shakespeare, quando lemos Platão, Aristóteles, Agostinho ou Tomás de Aquino, não o fazemos somente pela curiosidade em face do antigo, mas porque descobrimos neles uma verdade que não passa com o tempo. André Malraux nos ensinou que a verdadeira cultura se faz ora pelo aprofundamento da comunhão, ora pelo cultivo da diferença.
A “Idade Média” que nunca existiu
Uma série de fatores estão convergindo para que os brasileiros superem uma idéia errônea acerca da Idade Média. A periodização da história ocidental em antiga, média e moderna é fruto dos preconceitos do alemão Christoph Keller, no final do século XVII. Atribuiu à Idade Média a pecha de ser uma “idade das trevas”. Após mil anos de esterilidade cultural, toda a criatividade foi creditada à Renascença do século XV. Ora, nenhuma pessoa medianamente informada pensa mais assim. Simplesmente porque jamais existiu essa Idade Média única e irreparavelmente arruinada, puro intervalo entre os humanismos antigo e renascentista. Até quem já teve a oportunidade de ler best-sellers como os de Umberto Eco sabem disso. Alguns deles, em versão cinematográfica, tornaram-se sucessos de bilheteria. A história do Ocidente é um único processo, uma continuidade marcada por sucessivos redescobrimentos dos valores da antiguidade. Até hoje estamos fazendo redescobrimentos da antiguidade. Cada geração descobre algo de novo na herança deixada pelos Gregos, pelos Romanos, pelos Árabes, pelos Judeus. Tivemos renascimentos nos séculos VII e VIII, no século XII, no século XIII...
O que parece surgir somente nos séculos XVI ou XVIII, valores aos quais costumamos dar o nome de modernos (espírito crítico, espírito científico, subjetivismo, individualismo, sentido de democracia, busca da liberdade, desenvolvimento técnico etc) quando os estudamos mais profundamente vemos que a maior parte deles não surgiu na Idade Moderna, surgiu muito tempo antes dos tempos modernos. Já nos séculos XII ou XIII podemos observar manifestações muito claras desses fenômenos. Numa palavra: os tempos modernos não se opõem aos tempos medievais, pois buscam os mesmos valores, apenas acelerando a evolução que já vinha se processando nos séculos anteriores.
Um pensador antigo e atual
Sob esse enfoque, nada mais estranho à verdade dos fatos do que considerar Santo Tomás de Aquino como pertencente a uma civilização diferente da nossa, pois ele viveu os mesmos valores da civilização atual, mas numa fase anterior.
O Professor José Comblin costuma fazer uma distinção entre os consumidores e os produtores ou criadores de civilização. Em todas as épocas há uma imensa maioria de pessoas que se contentam em viver passivamente a cultura na qual nasceram, são os consumidores de civilização. Eles se identificam com a etapa histórica em que vivem. Passada uma geração, acham-se superados. Já os produtores ou criadores de civilização são capazes de captar, no meio de todo o material que lhes proporciona o trato do tempo em que vivem, os princípios dinâmicos da civilização, os germes do futuro. São os que percebem melhor o espírito e os valores da cultura clássica antiga e os valores modernos. São os que contribuem eficazmente para que os homens superem os limites de seu próprio tempo.
Sob esse prisma, Santo Tomás de Aquino, embora vivendo em pleno século XIII, pode ser considerado um pensador atual, um pensador que tem algo de relevante para o homem de hoje. Pois dedicou-se a redescobrir a mensagem da antiguidade e, ao mesmo tempo, a desvendar – com impressionante liberdade – os fermentos do porvir. Sem se deixar absorver pelo seu tempo, conseguiu detectar e fazer crescer a modernidade que já se achava presente em seu tempo. Em que sentido? Por questão de espaço, vamos dar apenas dois exemplos.
Confiança na razão
Um dos mais fascinantes temas da história da filosofia é o percurso da entrada de Aristóteles no Ocidente. Para essa aventura muito contribuíram os árabes, os tradutores, as universidades, o acesso às bibliotecas gregas e orientais, o evangelismo dos mendicantes etc. O mundo cristão, que vivia em certa homogeneidade, é literalmente invadido pela filosofia aristotélica, colocando em risco um sistema até então bem protegido para que fé cristã não sofresse contradições. Alberto Magno e Tomás de Aquino começam a estudar e ensinar a doutrina de um filósofo não-cristão em Paris, Colônia, Viterbo, Nápoles, Roma e por todas as universidades, conventos e lugares em que passavam. Podemos imaginar o efeito da difusão da filosofia de Aristóteles junto aos cristãos, pois Aristóteles pregava a eternidade do mundo, do tempo e do movimento; negava a providência; ensinava que não existe alma individual imortal; que os indivíduos desaparecem com a morte; não existe livre-arbítrio... A ciência de Aristóteles desconhecia obviamente o que era dado como certo para o cristianismo, isto é, a autoridade da Bíblia e da Igreja.
É claro que a primeira atitude da Igreja foi a de proibir esse ensino. Não somente os aristotélicos extremistas como Siger de Brabant, mas o próprio Santo Tomás foi objeto das iras do bispo de Paris e do arcebispo de Oxford. Tomás foi extremamente combatido por vários de seus colegas teólogos, mas ele, sempre afeito às polêmicas em torno de grandes causas, não esmoreceu. Não porque Aristóteles fosse de moda, mas por causa da qualidade da sua filosofia. Não pensou que nada teria a aprender com um pagão. Se havia erros em Aristóteles, tais erros só podiam proceder de uma infidelidade do autor ao método racional que ele próprio criara. Era preciso ler, estudar, comentar, seguir Aristóteles. Ele não oferecia nenhum perigo à fé cristã. Pelo contrário, a fé cristã só tinha a lucrar no contacto com todos os métodos racionais e todo uso autêntico da razão.Quais foram os precursores do racionalismo moderno: Abelardo, Anselmo, Bacon, Descartes, Kant? Tomás de Aquino, certamente, tem lugar privilegiado no meio dessa plêiade.
Diálogo entre fé e razão (Teologia e Filosofia)
Tomás de Aquino sempre creu firmemente no acordo de fundo de todas as formas e expressões da razão e da fé cristã. Pesquisador infatigável, nunca desprezou o pensamento dos que dele divergiam. Nunca nos artigos da Suma de Teologia, por exemplo, deixa de apresentar as “objeções” às suas teses; pelo contrário, procura elencá-las todas, examina-as, evoca o contexto em que foram expostas, dá-lhes respostas. Cita os Gregos (soretudo Aristóteles), Árabes, Judeus, os Latinos e, naturalmente, a Sagrada Escritura, os Santos Padres, os Concílios e outras autoridades da época. Crê que toda a verdade de todas as filosofias e de todas as sabedorias só podem ter uma procedência, Deus Criador. Étienne Gilson insiste em dizer que Santo Tomás é teólogo. Ele faz filosofia a serviço da sua fé.
Para ele, entretanto, não existe dupla verdade, uma da fé e outra da razão. A verdade jamais pode contradizer a verdade. Mas existem dois modos diferentes de conhecer: a razão aceita a verdade por causa de sua evidência intrínseca; a fé aceita a verdade por causa da autoridade de Deus revelante. Filosofia e Teologia são ciências diferentes, mas não são conflitantes, como se quis apregoar durante muitos séculos, sem que tal polêmica nos trouxesse qualquer forma de benefício. Até há muito pouco tempo, prevaleceu a separação daquilo que Santo Tomás quis unir: a razão humana foi se emancipando cada vez mais da Teologia, e a fé foi buscar asilo no obscurantismo, na emoção, no misticismo e em diversas formas de irracionalismo, moléstia aliás da qual nenhum cristão ainda pode se considerar vacinado.
Nem por isso a fé, para Santo Tomás, deixa de ser um ato de inteligência, um ato racional. Na linguagem técnica de suas obras ele analisa a estrutura do ato de fé.
Para ele o ato de adesão ou assentimento à verdade revelada não se deve ao fato de a vermos, mas porque Deus o disse. A adesão à verdade é um ato produzido ou “elicidado” pela inteligência, ainda que sob a ação determinante da vontade (movida pela graça), e não sob a ação do próprio objeto, que é inevidente. Em seguida a inteligência, aderindo com absoluta certeza ao objeto revelado, nele permanecendo “habitual” por imutável assentimento (o habitus é uma qualidade estável), continua a buscar e mover-se para adquirir ainda melhor conhecimento. A inteligência goza da certeza, mas não goza da visão; ela se sente segura, mas não satisfeita. Por isso, podemos dizer que a inteligência é “cativa” da fé, porque está fixa na fé, mas não por seu bem próprio e intrínseco, que é a evidência do objeto. É, contudo, um “cativeiro” que liberta, porque a protege e a faz aderir a Deus.
A fé (oposta assim não ao conhecimento, como dirá Kant, mas ao conhecimento de visão, e à ciência propriamente dita, ou ao conhecimento de modo perfeito) é pois um conhecimento imperfeito quanto ao modo de conhecer – já que se funda sobre o testemunho de Deus e não sobre a evidência do objeto –, mas é um conhecimento verdadeiro e muito superior a toda ciência humana, por causa de sua certeza infalível, já que ela alcança a Deus segundo a sua própria essência. Por ela, diz Santo Tomás, é concedido ao ser humano entrar na participação do intelligere divinum, e considerar todas as coisas quasi oculo Dei.
A fé, enfim, tende à evidência e ao face a face com Deus, assim como o movimento tende ao seu termo. Por isso a fé comporta um movimento para a visão. Uma vez sobreelevado pela fé até à verdade divina, o intelecto é envolvido pelo dinamismo dos dons da inteligência e da sabedoria, e se faz discípulo do amor, para dar ao ser humano um antegozo desta verdade que ele conhece, mas que ele não pode, nesta terra, devorar pela visão.
Jacques Maritain advertiu que uma cultura que se declara inflexivelmente pós-metafísica terá dificuldades para acompanhar o pensamento tomista. Supondo que não haja mais espaço para intransigências no universo da cultura (nele incluindo, não é inútil recordá-lo, a vida universitária brasileira), seria anacrônico evitar o diálogo entre fé e razão, entre Teologia e Filosofia. Nunca, como hoje, a adesão a uma verdade dependeu tanto do caráter argumentativo. Para o que diz respeito à Teologia, se eu não estiver enganado, a Igreja Católica sempre elegeu Santo Tomás de Aquino como o seu mais abalizado intérprete (Doctor communis), o que vale tanto para a sua auto-interrogação quanto para a expressão, a partir de horizontes cada vez mais abrangentes – já que se trata de um tema de civilização e não meramente eclesiástico – da presença da fé na racionalidade ocidental. Esse diálogo já anda bastante adiantado em países mais civilizados que o nosso; entre nós está apenas começando.
(*) Domingos Zamagna é jornalista e professor de filosofia no Centro Universitário Unifai (São Paulo).