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domingo, julho 20, 2008



DUAS MANEIRAS DE FALAR SOBRE A MENTIRA E SOBRE O GOVERNO ATUAL.
VALE A COMPARAÇÃO.
RR

http://www.estadao.com.br/suplementos/not_sup105550,0.htm


domingo, 6 de janeiro de 2008


Breve ensaio sobre a mentira


Roberto Romano* - O Estado de S.Paulo


SÃO PAULO - Nos EUA existe um serviço oficial para fiscalizar a aplicação das leis e a obediência do governo à fé pública. Trata-se do GAO (Government Accountability Office). Ninguém afirma que naquela federação a palavra dos governantes segue padrões perfeitos, mas o princípio é mantido. No Brasil não existe nada semelhante, e a maioria dos políticos - sobretudo os que deixam a oposição e se instalam no poder - nem sequer imagina o significado da palavra empenhada. A prática usual é deixar de lado compromissos solenes tendo em vista interesses eleitorais e outros menos confessáveis.

Em nossa terra, a responsabilidade ética na administração é anulada pela propaganda política, pessoal ou partidária, e as instituições tornam-se meros instrumentos dos governantes. Aqui, autoridades dizem qualquer coisa que lhes permita vencer crises ou agradar a setores sociais. Elas afirmam algo hoje, e amanhã (literalmente, como no caso dos impostos agora aumentados), anunciam o contrário. Só existe fé pública se governantes e cidadãos acreditam sinceramente no Estado de direito. Recordemos o que diz a lógica sobre tal assunto de natureza ética. A sinceridade, afirma John Austin, é pressuposta na comunicação democrática (How to do things with words). Austin fala em "atos infortunados" para marcar os abusos da insinceridade: aconselhar com alvo torpe, culpabilizar o inocente, prometer e não querer cumprir, dessa fonte nasce a mentira. A grande definição da fala mendaz vem de Santo Agostinho : "Dizer o contrário do que se pensa, com intento de enganar".

Os partícipes da linguagem, como os que se dispõem a jogar xadrez, devem ter o intento efetivo de jogar xadrez, não dominó. Dizer o contrário do que se pensa significa manipular: eu minto, mas "eles" não podem perceber. Descoberta, a mentira deve recorrer a razões escusas. A verdade não precisa se desculpar. Se a política, como tudo na vida, é jogo regrado, trapaceiam os políticos que não respeitam as regras da accountability. E a trapaça não constrói um Estado democrático, porque neste último a palavra empenhada é a essência da política, ao contrario dos regimes ditatoriais.

A mentira torna-se mais danosa quando a competência linguística é assimétrica. No regime político contrário à liberdade, a licença para mentir permite considerar desiguais governantes e governados. O máximo dessa desigualdade ocorreu nos totalitarismos nazista e comunista. O Diário Oficial soviético chamava-se Pravda (Verdade), mas raramente alguma frase verdadeira surgia em suas páginas. Montaigne definiu a mentira como "valentia diante de Deus e covardia diante dos homens". A sua essência é a dominação tirânica, pois a cidadania não consegue recusar ou mesmo detectar o engodo. Fé pública e verdade são os esteios dos deveres, das leis, dos contratos. Por antítese conhecida na Novilingua (exposta por George Orwell e na qual guerra é paz, ódio é amor, etc.), os totalitarismos "nunca reivindicaram a si mesmos como prováveis, mas como verdadeiros", lembra Angela Valcárcel, em El Discurso de la Mentira (Madri, Alianza, 1988). O poder mentiroso se caracteriza por reivindicar para si mesmo o monopólio da verdade. É por semelhantes razões que o mundo político brasileiro começa mal o ano de 2008.

O Executivo federal não respeitou acordos com a oposição e deixou os contribuintes indignados com o ardil, para conseguir a DRU, de prometer não aumentar impostos. Ao proclamar que não aumentaria tributos devido à perda da CPMF, o governo disse "o contrário do que se pensava, com intento de enganar". Como as instituições civis dependem da confiança (isto é verdade no mercado, em vínculos financeiros, na indústria, nas relações familiares, culturais ou esportivas, etc.), quando os administradores do Estado não se comprometem com o que falam, semeiam desconfiança geral. Eles conseguem algum proveito com suas espertezas, mas os ganhos resultam na corrosão da fé pública, único sustento do Estado de direito. A lei é um complexo conjunto de palavras, cuja primeira virtude é ser aplicada universalmente. Quanto mais uma sociedade política respeita a fala dos seus legisladores e dos que executam os mandamentos soberanos, mais confiável ela é para quem a sustenta com impostos e a ela confia riquezas materiais e humanas.

Ao não cumprir sua palavra, o Executivo federal subverte o Estado. Também grave é o espetáculo oferecido por muitas Câmaras Municipais de São Paulo, onde foram aprovados aumentos que chegam a 179% nos salários de vereadores, prefeitos, vice-prefeitos e secretários municipais. Sempre é possível desculpar o executor das leis com argumentos plausíveis ou não. Mas os que produzem a norma legal são indesculpáveis se dilapidam os cofres e a fé pública. Nada mais eficaz para conseguir esse fim do que elevar os próprios vencimentos acima de qualquer medida ética. A mentira gera corrupção ampla quando ocorre assimetria de poderes entre os que mentem e os enganados. No Brasil e em São Paulo, políticos em demasia usam o poder apenas para alimentar o próprio bolso. E parolam para justificar o injustificável. "Deus não precisa da minha mentira", este é o antídoto indicado por Santo Agostinho contra a língua mendaz. Que os poderosos inimigos da ética nos poupem suas desculpas, pois elas insultam a inteligência dos contribuintes. Para terminar: muitos intelectuais improbos responderam positivamente ao rei Frederico e defenderam teses sobre a utilidade de enganar o povo. Não sabemos se receberam o prêmio merecido.


*Roberto Romano é professor titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP


Domingo, 20 de Julho de 2008 |

Sobre a mentira

Celso Lafer


Não é usual tratar da política na perspectiva da afirmação da verdade. Platão afirmou, na República, que a verdade merece ser estimada sobre todas as coisas, mas ressalvou que há circunstâncias em que a mentira pode ser útil, e não odiosa. Na política, a derrogação da verdade pela aceitação da mentira muito deve à clássica tradição do realismo que identifica no predomínio do conflito o cerne dos fatos políticos. Esta tradição trabalha a ação política como uma ação estratégica que requer, sem idealismos, uma praxeologia, vendo na realidade resistência e no poder, hostilidade. Neste contexto, política é guerra e, como diz o provérbio, "em tempos de guerra, mentiras por mar, mentiras por terra".

Recorrendo a metáforas do reino animal, Maquiavel aponta que o príncipe precisa ter, ao mesmo tempo, no exercício realista do poder, a força do leão e a astúcia ardilosa da raposa. Raposa, leão, assim como camaleão, serpente, polvo - metáforas que freqüentemente são utilizadas na descrição de políticos -, não podem, com propriedade, caracterizar o ser humano moral que obedece aos consagrados preceitos do "não matar" e do "não mentir", como lembra Norberto Bobbio.

No plano político, o realismo da força torna límpida, numa disputa, a bélica contraposição amigo-inimigo. Já o realismo da fraude é mais sutil, pois opera confundindo e aumentando a opacidade e a incerteza na arena política, como acentua Pier Paolo Portinaro. Maquiavel avalia que a fraude é mais importante do que a força para assegurar o poder e consolidá-lo. É por este motivo que a simulação, o segredo e a mentira são temas da doutrina da razão de Estado e a veracidade não é usualmente considerada uma virtude característica de governantes.

Sustentar a simulação e a mentira como expedientes usuais na arena política é desconhecer a importância estratégica que a confiança desempenha na pluralidade da interação humana democrática. A confiança requer a boa-fé que pressupõe a veracidade. O Talmude equipara a mentira à pior forma de roubo: "Existem sete classes de ladrões e a primeira é a daqueles que roubam a mente de seus semelhantes através de palavras mentirosas." O padre Antônio Vieira afirmou que a verdade é filha da justiça, porque a justiça dá a cada um o que é seu, ao contrário da mentira, porque esta "ou vos tira o que tendes ou vos dá o que não tendes". Montaigne observou que somente pela palavra é que somos homens e nos entendemos. Por isso mentir é um vício maldito. Impede o entendimento.

A proliferação generalizada da mentira, do segredo e da dissimulação - presentes nas incontáveis "versões" governamentais sobre tantos fatos despropositados, do "mensalão" à origem do dossiê das despesas de FHC - instiga uma reflexão sobre a mentira na prática política atual do nosso país.

Ao pensar sobre a mentira na política, Hannah Arendt parte da distinção proposta por Leibniz entre verdades da razão, que são necessárias, e verdades de fato, que são contingentes, o que faz com que o seu oposto seja possível. Realça que fatos e eventos constituem a efetiva textura do domínio político e da sua verdade.

Fatos e eventos são mais frágeis do que axiomas. Por isso estão sujeitos ao assédio do poder, pois os fatos não têm razão conclusiva para serem o que são; poderiam ter sido de outra forma em função de sua natureza contingente. Porque não são auto-evidentes, requerem o testemunho confiável para serem preservados. Esta é, observo eu, a dimensão política da proibição, nos Dez Mandamentos, do falso testemunho, reafirmada várias vezes nos Evangelhos.

O potencial da mentira na política tem a sua explicação na origem da palavra, que vem do latim mentire, que quer dizer inventar, de mens, mente, da raiz men, que, por oposição a corpo, designa a atividade de pensar. Explica Hannah Arendt que a ação requer imaginação, ou seja, a capacidade de pensar que as coisas podem ser diferentes do que são para serem mudadas. Entretanto, esta mesma imaginação, que permite contestar os fatos para se ter a iniciativa de transformá-los, permite desconsiderá-los, o que, em outras palavras, quer dizer que a capacidade de mudar fatos e negar fatos através da imaginação está inter-relacionada. Este é o vínculo, apontado pelo padre Antônio Vieira, entre os juízos temerários, formados na imaginação, e os falsos testemunhos, daí advindo a mentira como uma tentação que não conflita com a razão, porque as coisas poderiam ter sido como o mentiroso as conta.

Nesta tentação, impulsionada pelo realismo do poder, vem recorrentemente incidindo o governo Lula ao manipular fatos para confundir a arena política por meio da multiplicidade de "versões". Estas confirmam a observação de Montaigne de que a mentira, pela sua natureza, ao contrário da verdade, não tem apenas um rosto, mas "cem mil formas e um campo indefinido".

A verdade factual não é questão de opinião. Por isso mesmo a democracia, que pressupõe o respeito pela cidadania e o controle e a responsabilidade do poder, requer o direito dos governados a uma informação exata e honesta. A palavra dos governantes que mascara e esconde põe em questão o chão da vida política democrática dada pela verdade factual. Diante do camaleonismo das "versões", leva à apatia, ao cinismo, à indiferença que minam a confiança exigida pela democracia.

No livro do Êxodo (23, 7) está presente, com força, a exortação de se afastar da palavra mentirosa. Na exegese judaica desta exortação se aponta que nenhum ser humano consegue ser totalmente veraz. Por isso o mundo está dividido em dois grupos de pessoas: aquelas que estão próximas da mentira e aquelas que buscam dela se afastar. Deixo ao leitor a tarefa de qualificar o enquadramento de tantos membros do atual governo e de seus próximos.

Celso Lafer, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras, foi ministro das Relações Exteriores no governo FHC

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